Dona Chica se benzera, pois o Rasga-mortalha pousara no telhado da casa vizinha e contra o maldito pássaro não tinha jeito, não tinha prece e não existia santo no mundo que afastasse a inevitável morte. Entrou rapidamente em sua casa e recolhera, entre suas imagens de arte santeira, um terço. Não podia ser! Será que aconteceria? A vizinha era tão nova, afirmara ter uns trinta e poucos anos, embora todos na rua (que já
contavam seus sessenta natais) fossem mais novos que a mentirosa. Não importa a idade, a morte sempre nos abala. Fora tirar suas dúvidas. Posicionou-se para verificar mais de perto a ave, conquanto seus olhos já não eram tão precisos assim e o visto não era desvisto, pois mesmo falhos, eles confirmaram: era o pássaro Rasga-mortalha.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fez ela o sinal da cruz três vezes e correu para seu quarto, suas mãos tremiam. Uma vizinha tão gentil, avó exemplar, pensou. Com exceção daquele domingo, quando deixara seu neto correr perto do cachorro… Era verdade que todos se distraíam, mas não proteger o cãozinho do neto traquino era uma verdadeira irresponsabilidade. Mesmo assim, era uma boa mulher e excelente esposa, sempre trabalhando para manter a casa organizada e o marido satisfeito, apesar de atrasar no preparo das refeições. Lembrara-se de que a vizinha não comungara desde a semana passada, então, nem adiantariamsuas preces. Por quais motivos ela não fora na missa de domingo?

Esquivou-se do pensamento, pois Dona Chica lembrou-se que o padre clamava pelos afastados de Deus, as ovelhas negras, os pecadores. E orou defronte ao seu pequeno altar adornado com rosas rubras e velas que iluminavam a imagem de São Pedro, esculpida em madeira, comprada no Centro de Artesanato e que, segundo o vendedor, era uma peça rara de Mestre Dezinho, um verdadeiro tesouro. Orgulhou-se. Aquele maldito pássaro nunca, em nome de Deus, pousaria em seu telhado. Andou em círculos pela sala, nenhum murmurinho, ninguém batera em seu portão, será que seria ela a pessoa que encontraria o corpo de sua adorável amiga? Chorou, pois não queria perdê-la; mesmo assim, tinha que lidar com a dor. Os ponteiros de seu relógio passavam lentamente. O marido da defunta chegaria a qualquer momento e ela teria que dar a trágica notícia, todavia, só aconteceria se a rebelde partisse logo do mundo dos vivos. Sempre assim, sempre ela fora essa mulher de atrasar, até na hora do fim resistira. Olhou pela janela, o pássaro ainda descansava no telhado, provavelmente encontrara dificuldades para tragar a alma de sua vítima.

Ensaiara, naquele instante, seu discurso, todas suas reações, sabia como seria a missa de sétimo dia, previa as ações do viúvo, só não sabia se o pássaro se lembrara de sua missão. Refletiu alguns segundos, assustou-se ao imaginar que o Rasga-mortalha quisesse outra alma, talvez, a do marido da futura defunta, homem robusto e de boa índole. Pegou seu lenço e se desfez em prantos, não podia imaginar sua amiga sem seu tão carinhoso marido que se deleitava nas curvas das morenas e pintava na pele da esposa os hematomas de seu machismo. Quem sabe, o certo seria avisá-la, preveni-la para que pudesse superar tão logo o cadáver do seu cônjuge chegasse à sua casa?

O Sol cansado se desprendia do céu, as nuvens que se aglutinavam formando mistos de cores perdiam o brilho, a brisa dançava com as pétalas de flores e os pássaros, como doidos, circulavam pelo céu anunciando o término do dia. Dona Chica preparou um cafezinho bem quente para tomar, preveniu-se e tratou logo de triplicar a quantidade da bebida para suprir o futuro velório. Há alguns anos não se tinha notícias trágicas na rua, comentavam suas amigas, felizes e esperançosas, tentando negar os sintomas da finitude. Contudo, todas ficavam espreitando, pois notícia de morte circula rapidamente e rende boas conversas durante semanas. Lá fora, nas calçadas, as amigas já estavam acomodadas em suas cadeiras, todas de forma quase que sincrônica saíam de seu abrigo com o instrumento de seu ofício (a boca) e descansavam seus corpos para afiarem suas
línguas com suas malignas e lúdicas suposições.

Foi até a janela, o cobrador das almas havia desaparecido, será se desistira de capturar sua vítima? Esperar demasiadamente traz consigo consequências, ou seja, menos almas para recolher e, com certeza, teria uma cota diária para atingir. Lá se foi voando o assunto da semana, talvez, do mês, se outro mais urgente não surgisse. Olhou por cima do ombro. Três jarras de café, café para três dias feitos numa noite. ‘Espera’, gritou mentalmente. Como assim ele voou? Nem tudo era visto pelos vivos, o Rasga-mortalha era só um aviso, ele tinha, lá embaixo das penas, seus segredos… Quem sabe, ele já estivesse agindo dentro da casa vizinha, silenciosamente depositando a alma da amiga em seu sombrio bico? Alegrou-se novamente e riu, mas conteve o impulso. Rezou mais um pouco, pediu paciência para ficar atenta aos mais sutis ruídos, pois como a vizinha estava sozinha, ninguém escutaria seus pedidos de socorro, sua queda ou seu último suspiro. Nada comove mais que o derradeiro suspiro. Tomou outra xícara de café, seus lábios pararam de tremer, escutou um tímido murmurinho nascendo lá na rua e a escuridão já se apoderara da abobada celeste onde a Lua reinava. Caçou, até
onde sua janela permitia-lhe, por sinais de chuva, em vão. Distraiu-se com as tímidas estrelas, lembrara-se das frondosas árvores que no pretérito coloriam o horizonte quando as mortes eram mais frequentes. Talvez, a modernidade trouxesse consigo a longevidade ou os hodiernos estivessem mais resistentes.

Alguém gritara além das fronteiras de sua casa, Dona Chica se alegrou e os ecos dos murmurinhos lhe deram a certeza da fatalidade. Correu até a rua e logo viu uma pequena aglomeração na porta de uma das vizinhas. O traiçoeiro Rasga-mortalha atacou outra pessoa, cortara a frágil ligação que mantinha o infeliz no mundo, antecipou. Tentou penetrar na barreira de curiosos, descobriu que uma dona caíra, mas infelizmente estava bem. Saiu decepcionada, cabisbaixa e pensativa. Uniu-se às “companheiras de trabalho” e, sem muita demora, lá vinha sua vizinha, a maldita que desafiara o Rasga-mortalha, como sempre com um copo de cajuína na mão, que ela mesma produzia (quase palatável e vez por outra jurava ter visto resíduos na bebida rústica). Dona Chica produzia as melhores cajuínas, eram douradas como ouro, de um doce que as pessoas de bom paladar elogiavam.

A vizinha, que dispensa apresentação, sentou-se e sorveu algumas gotas da bebida rude que teimava chamar de cajuína. Dona Chica encarou irritada a vizinha, quis agredi-la, terminar o que o pássaro não concretizou. Engoliu os palavrões, tácita, escutando a saudável colega e pensou que o problema pudesse ser de “fábrica”, afinal, não era um pássaro forte, não parecia ser um mensageiro de longa data, por isso mesmo
reclamaria em suas orações uma melhor seleção dessas criaturas. A vizinha perguntara
se tinha café, Dona Chica respirou profundamente e falou com os dentes cerrados que
sim, tinha café, muito café, café para suprir um velório.

Dona Chica prestava atenção em cada suspiro de dor da “ex-defunta”, eram alarmes falsos. Não se fazia mais Rasga-mortalhas como antigamente, sussurrou. Despediram-se e entraram em suas casas. O cheiro de café se elevara além dos lares. Dona Chica ficou inerte quando terminou de passar a chave na fechadura do portão,
estava estática e de olhos arregalados diante da grande sombra formada pelo Rasga-mortalha que pousara bem no canto do telhado de sua casa.

Alisson Matheus Soares de Sousa Carvalho, escritor e artista visual de Teresina. Redator do
projeto Geleia Total. Participou da Coletânea de Contos Caçuá (2019) e da antologia Afrofuturista “O futuro é Nosso” (2020).

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