Tive sorte em nascer cego do olho direito. Cresci por ângulos surpreendentes. Até os sete anos, a criança que eu era entendia ser normal não ver com um dos olhos: se temos dois, é para caso falte um mesmo. Nessa época, meu tio me deu um revólver de brinquedo. Como sou destro, mirava com o olho esquerdo e minha família achou muito esquisito. – “Não, tu tem que mirar assim…” – “Mas com esse olho aí eu não vejo, não”. Eles se desesperaram. Eu descobria que tinha lesão no nervo óptico e fiquei cabreiro de cegar do outro olho. Nasceu um medo do que eu achava natural. Talvez tal experiência tenha me sensibilizado ao tema da cegueira. Escrevi poemas em páginas pretas tratando do truvo (linda palavra, mais escura que turvo).
Há uns sete anos, ainda compondo na banda Validuaté, Quaresma conversou comigo sobre o escuro, brincando, como se a luz fosse pouca comparada ao tanto de blecaute no universo. E me disse – “faz uma letra sobre isso”. Acabei escrevendo o poema O Escuro, dialogando com a música O Silêncio, de Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes. Na canção, eles dizem: o silêncio foi a primeira coisa que existiu. Mas comecei a pensar que essa primeira coisa seria silêncio e escuro tão juntos que eram de fato um esculêncio, ou um silenscuro. Iniciei assim: o que surgiu primeiro e criou tudo / uns dizem o silêncio, outros o escuro. E dei à luz outra percepção em mais uma parceria com Quaresma. A letra da música é a primeira parte do poema, desdobrando-se no bonito clipe lançado recentemente.
Passei 12 anos na Validuaté. Saí em 2016, mas as ondas sonoras da nossa amizade continuarão viajando indefinidamente nesse breuniverso em que vivemos.
O Escuro
Letra: Thiago E. e Música: Zé Quaresma
o que surgiu primeiro e criou tudo
uns dizem o silêncio – outros o escuro
não foi o boom de big bang de brilho puro
se foi uma explosão chamada deus
as coisas, corpo, cosmo e o que nasceu
têm bem menos de luz e mais de breu
repara o natural nesse universo
basta piscar e a noite vem pra perto
no céu matéria escura por completo
o sol e um dia só vai se apagar
com tanta lâmpada engana a lua a noite cá
a luz porém cumpre seu prazo pra durar, pra durar
em breve o truvo volta pro seu ponto
mostrando o breuniverso em que me encontro
somente o escuro fica, infindo, assombro
repara o natural nesse universo
basta piscar e a noite vem pra perto
no céu matéria escura por completo
Para ver o clipe O Escuro: www.youtube.com/validuate
Com banda Validuaté e Bia Magalhães
Thigo E. é poeta e compositor. Publicou Cabeça de sol em cima do trem (livro e disco). Integrou a banda Validuaté. Foi coeditor da revista Acrobata. Participou de várias antologias, entre elas, Garganta (organizada por Sérgio Cohn), Sobre poesia, ainda (organizada por Tarso de Melo) e É agora como nunca (organizada por Adriana Calcanhotto).
Publicado na Revestrés#40 – março-abril de 2019.