Eu ainda alcancei uma senhora, lá pelos 75 anos, pegando roupa na casa de meus pais, em Parnaíba, pra lavar no cais do rio. Era a Luiza, lavadeira, mulher bonita e ex-prostituta, de olhos vivos, um ser humano marcado pelo destino, invisível aos olhos da cidade. Foi minha mãe que contou parte da vida dela, de seu sofrimento e da sina de prostituição. Meu pai tinha um armazém, no cais do porto, onde por vezes eu ia pescar. E essa senhora morava num barraco imundo, miserável, que conheci ao procurá-la, a pedido da mamãe, toda vez que deixava de apanhar a roupa suja de nossa família.

Foto | Maurício Pokemon

Sua história e de outras mulheres do cais, bem como as lembranças guardadas na memória, inspiraram a escrita do Beira rio beira vida, eu já residindo no Rio de Janeiro. Naquela época, lecionava numa escola da cidade, e essa idosa acaba se tornando a personagem principal do livro, encarnando um pouco das três mulheres da narrativa: Cremilda, sua mãe, ela e Mundoca, a filha que rompe a saga da prostituição familiar. São mulheres que viviam à margem da sociedade, levando não uma vida plena, como deve ser, mas na beirada do desenvolvimento econômico. Uma trama que denuncia o preconceito e a exclusão social daquele tempo, anos 1950, e que perdura até hoje, daí a atualidade do livro. Não só em relação a Parnaíba como de qualquer lugar, dentro e fora do país. Luíza é resultado dessa combinação de pobreza e prostituição, sendo vítima desse estado de coisas.

A repercussão da obra foi muito boa, incluindo o Prêmio Walmap/1965, patrocinado pelo Jornal O Globo, de melhor romance do ano, além de uma grana de 2 milhões de cruzeiros, valor recebido das mãos do grande escritor mineiro Guimarães Rosa. Com ela, abro a Tetralogia piauiense, ciclo de caráter telúrico, homenagem que presto à terra natal. Publicada por várias editoras ao longo dessas décadas, entre elas Ediouro e Edições O Cruzeiro, continua no mercado atualmente pela Entrelivros, editora piauiense. Beira rio beira vida é um livro pelo qual tenho um enorme carinho e guardo num cantinho especial de minha carreira literária. 

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Assis Brasil é romancista, cronista, crítico literário e jornalista, nascido em Parnaíba, Piauí, e com intensa participação na imprensa e na literatura brasileiras. Foi colunista literário do Jornal do Brasil e da Revista O Cruzeiro, e crítico literário do Jornal do Brasil, Diário de Notícias, Correio da Manhã e O Globo, entre outros. Tem 133 livros publicados, entre eles os romances Beira Rio Beira Vida e Os que bebem como os cães. Pertence à Academia Piauiense de Letras, onde é o quarto ocupante da cadeira 36.

Publicado na Revestrés#44 – novembro-dezembro de 2019.

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