As vozes nos altofalantes. As luzes acesas. De repente, um arrepio em lugar indefinido do corpo, uma sensação de esmagamento. Chegou cedo para o check-in, talvez nem estivesse aberto ainda. O vôo sequer aparecia no painel. Isso não era problema. Sabia esperar. Para matar o tempo, poderia pedir um lanche e ficar comendo devagar. Mas não sentia vontade. 

Aquelas pessoas passando, algumas elegantemente vestidas, outras nem tanto, com suas malas, sacolas e mochilas, nenhuma delas carregava na bolsa de alça apoiada sobre o ombro o que ela conscientemente trazia, agora apertando o braço e sentindo o contato mais próximo. Reconheceu-se diferenciada no meio da multidão. Uma mulher com uma missão. 

Ouviu nitidamente o ruído das rodinhas da mala deslizando sobre o assoalho brilhante, misturado à cadência dos passos. Mudou a posição da bolsa para o lado esquerdo. Sentiu o vértice da caixinha metálica entre as costelas, como se quisesse perfurar o coração. 

Ninguém lhe cumprimentava, ela também não falava com ninguém. Era melhor assim. Estava perfeito. A solidão era sua única companheira, necessária, como um remédio de ervas. Encontrou um lugar e sentou. Se alguém a observasse, poderia descrevê-la como uma mulher de olhos profundos, vasta cabeleira, antes completamente negra, gestos lentos, quase medidos. 

Ainda faltava muito para o avião sair. Voltou a observar os passageiros. Nenhum deles, nenhuma daquelas mulheres, possuía o que ela carregava.  

Depois do check-in, dirigiu-se ao portão de embarque. Ainda faltava muito para o avião sair. Seria a primeira da fila. Levaria a cabo a missão com toda a força da alma. Com toda a força leve. Voltou a observar os passageiros. Nenhum deles, nenhuma daquelas mulheres, possuía o que ela carregava. Tinha certeza. 

Dentro do avião, procurou o assento, afivelou o cinto, apertou mais uma vez a bolsa contra o peito e fechou os olhos num longo suspiro. Ficou assim, ouvindo a movimentação dos passageiros se acomodando nos lugares. Permaneceu com os olhos fechados. Os outros pensariam que estava dormindo, mas estava muito desperta, sentindo profundamente.  

O amor dentro da caixinha metálica. Por isso o apertava mais no coração. Naquele mesmo dia, no final da tarde, ou na manhã do dia seguinte, se despediria dele. Despedir-se não era a palavra, pois estavam unidos por um pacto mútuo e eterno. Quando a aeronave desprendeu-se do chão, entrou em outro território e duas lágrimas brotaram dos olhos.  

E assim continuou a viagem. Seria longa, mas naquele instante o tempo não existia. Nos momentos em que abriu os olhos, foi somente para contemplar as nuvens. Seria muito bom se pudesse desincumbir-se nas nuvens. Mas não! Seu amor havia dado as instruções antes de partir e dissera exatamente em que lugar isso deveria ocorrer. 

Desembarcou em Teresina à tarde. Não convinha ir logo. Melhor dormir no hotel e chamar um taxi.  

Na manhã banhada de luz, chegou a Amarante. Caminhou na direção do rio, sem nenhuma pressa, vivendo cada instante, para o lugar que ele mostrara dez anos antes, quando lhe apresentou a cidade. 

Reviu as ruas de pedra, os casarões, a brisa que soprava das serras e chegava até eles, de mãos dadas. Ouviu os poemas que saiam de sua boca. Os olhos brilhavam e era outra vez menino descalço nas ruas da memória. 

É verdade que sentia dor, mas desejou que os ponteiros do relógio girassem mais devagar. As ruas debaixo dos pés faziam-na balançar como um barco. Era a vertigem do rio, que ao mesmo tempo ansiava e temia. Caminhar. Caminhar. E envolver a margem com os passos. Sentir a brisa no rosto e quem sabe sorrir, olhando os barcos atravessarem para o outro lado. 

Antes chegou a pensar que pudesse se perder, ficar em dúvida sobre o lugar exato, de não ter coragem. Mas os próprios passos a guiaram e principalmente ele, que a esperava, sem ânsia, com absoluta calma, entre a pedra, as árvores e o rio soberano, onde o menino mergulhava e se sentia livre e feliz. 

Meu amor, entrego tuas cinzas e te celebro, pois estás vivo, como as águas do rio.  

Rogério Newton é poeta, cronista e romancista. Publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2203), Conversa Escrita N`água (2006), Grão (2011), No Coração da Noite Estrelada(2015) e Crônicas dos Enigmas de Oeiras (2017). Escreve para Revestrés desde a edição 1.

Publicado em Revestrés#39 – janeiro-fevereiro de 2019.