O riacho corria entre quintas úmidas. A Casa da Bica situava-se no topo de uma pequena elevação. Era de uma cor indefinível e estava sempre fechada. Eu tinha vontade de saber o que ocultava. Devia guardar instrumentos que se usam na roça e no curral e silos para estocagem de grãos. Ou, simplesmente, um reino de penumbra e poeira. 

Aos meus olhos, era enorme. Muitas vezes, depois de um mergulho, sentava-me na calçada alta para olhar a paisagem e ficar vendo quem passava, indo ou vindo da cidade. O vento morno secava os cabelos.  

Contaram-me que em um dos quartos um homem passava tempos recluso. Estudantes em pesquisa teriam encontrado argolas de ferro. Isso aumentava o mistério e o temor.    

Famosos eram os frutos do pomar, apreciados por todos. Mangueiras ensombravam as margens do riacho, como a Mãe dos Viventes.  

– Menino, vai na Bica buscar manga-rosa! 

A Bica! Por que esse nome? Não sei exatamente, mas posso imaginar. Havia água abundante o ano inteiro. Na estação das chuvas, era difícil atravessar o riacho, no ponto do caminho comum a quem desejasse ir ou vir de outras quintas ou do bairro situado próximo aos morros do Urubu, da Cruz e da Sociedade. 

A construção, que dominava a paisagem, deu lugar a uma casa sem graça, pintada de branco. Um morador e sua família davam-lhe vida. Ele tirava o leite das vacas e levava de moto para a cidade. Mas a paisagem continuava bonita: o curral, as roças verdes de capim, os irrigadores girando… Gotículas brilhavam à luz do sol. Isso também desapareceu: um loteamento engoliu o curral e as roças. Para abrir ruas, o trator despejou piçarra quase dentro do riacho. 

Mas a servidão de passagem continua entre as cercas e pode-se caminhar por ela e passar em frente da casa em cujos fundos existiu a Forquilha do Rio, onde o Riacho dos Negros desaguava no Riacho Mocha. Era um dos lugares preferidos das lavadeiras. Não nos vamos deter aí: os riachos estão secos e só há lavadeiras na memória. 

Devemos prosseguir pelo caminho entre as quintas, atravessar o Riacho dos Negros na direção da Malhada Alta e encontrar Vicente Camarço, o último sobrevivente a resistir no curral, ao lado da casa parcialmente em ruínas. Pode-se sentar no matinho rasteiro e contemplar a lagoa que secou e a roça de milho e de arroz. 

O caminho de areia torna-se pedregoso nas proximidades do sítio Laranjeiras. A casa baixa está sempre fechada. No inverno, vicejam o bamburral, a jitirana e o mata-pasto na frente da morada. No estio, uma faixa verde de árvores contrasta com a vegetação cinza: embora sem mais água a correr, o Mocha mantém a umidade permanente do lugar, onde pés de buriti e mangueiras se agitam com o vento e os pássaros que bicam os frutos.

Depois das Laranjeiras, a vegetação é um pouco mais densa nos dois lados da servidão de passagem. As árvores altas formam um túnel verde. Nesse ponto, é preciso ir um pouco mais devagar: há flores de várias cores, libélulas, abelhas, pássaros, borboletas, aranhas tecendo… Você pode se sentar no chão ou numa pedra e contemplar o esplendor do sol filtrado pela folhagem. Se a posição dos astros está propícia, é possível também ver a lua no céu azul, em plena luz do dia.  

Na Fazenda Primavera, ainda há lugares úmidos no leito do riacho. Mas não há corrente, a não ser quando chove forte, e assim mesmo por um dia ou dois. O açude Soizão represou as águas nas nascentes azuis. E não solta. 

O apreciador de plantas e de outros seres vai parar muitas vezes e olhar, por exemplo, os pés de jatobá e os pentes-de-macaco. Se quiser, pode pegar uma vereda lateral e subir pequeno morro, só pelo prazer da aventura e para desbravar o Desconhecido. E depois voltar para a sombra do túnel verde e ficar em silêncio, ouvindo as vozes da natureza. 

Depois de mais um jatobazeiro, que braços humanos não conseguem abarcar, chega-se à Fazenda Maracangalha. Esse o fim da jornada. Depois de descansar um pouco, é hora de voltar pela mesma via, apreciando as maravilhas, como a lua no céu da manhã. 

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Rogério Newton é poeta, cronista, romancista. Publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2003), Conversa escrita n´água (2006), Grão (2011), No coração da noite estrelada (2015) e Crônicas dos enigmas de Oeiras (2017).

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Publicado na Revestrés#50. 

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