De São Paulo chega a notícia de que Carmen Gonzalez vai publicar seu primeiro livro de poemas, O Segredo dos Bogarins, sobre o qual não resisto em falar aqui, preparando o leitor para receber essa poeta sensível. 

Com poucas aparições em livros coletivos ou revistas, essa piauiense de Barras do Maratoan pertence à tradição lírica brasileira que chegou a esta quadra de tempo com liberdade para a fragmentação dos versos livres e brancos, agrupados em estrofações que obedecem mais ao impulso de vida e ao pulsar dos poemas do que às regras, se é que podemos falar em regras numa época em que cada poeta inaugura sua própria poética. 

Em seu lirismo, construído sobre a concisão, a delicadeza desabrocha sob a luz sempre diáfana. E as palavras respiram numa escritura cuidadosamente tecida, onde tempo e memória estão de mãos dadas. 

Não sou voraz 

à mesa da linguagem, 

ela confessa num dos instantes em que reflete sobre o ofício poético. 

Concisão, delicadeza, ausência de voracidade vinculam a trajetória de Carmen Gonzalez à modernidade. Alguns poemas sugerem a técnica de composição do haicai, que tanto influenciou certa vertente da poesia lírica brasileira, especialmente a partir da década de 70 do século passado. Acresça-se a isso a temática da natureza, presente em sua poesia de forma fundante. Não que ela faça haicais no sentido estrito do termo, mas é que o espírito e alguns elementos de construção iluminam seus poemas, que muitas vezes traduzem epifânicos instantes de contemplação ou denúncia: 

A chuva no telhado 

e sua cantiga de barro 

tão antiga quanto os oleiros 

e a fome de seus filhos. 

Imagens, comparações e metáforas predominam em seus poemas, nos quais o fio da memória se desnovela em enigmas e enredos antigos, ligados a um tempo-espaço poético personalíssimo, mas social também, ancorado numa casa de fogareiro na cozinha, arroz de leite e beijus na mesa, misturados ao canto das pipiras, gotas de chuva no telhado, mangueiras em flor, bogarins e chananas, 

flechas de luz 

atiradas pelo sol. 

Contribuem para a humanidade da poesia personagens redivivos, como Lúcia Beré, Dona Zizi e a mãe, que lhe penteia os cabelos, sob a luz daqueles dias. E uma mulher, que pode ser a autora ou qualquer uma de alta voz feminina: 

Uma mulher prepara sentimentos 

macerados com odores de bogarins, 

sua mãos penetram a vida 

e trazem dores oferecidas ao segredo. 

Uma mulher que sonha com o amor 

enquanto lava os seus cabelos. 

Os elementos da memória e da paisagem natural e familiar do próximo e distante Piauí são por assim dizer a matéria prima para a construção dos poemas, o que não basta para se fazer poesia. Carmen Gonzalez sabe disso. Ela aprendeu desde cedo, na leitura dos poetas que tanto ama e que marcaram sua vida e na militância poética solitária, de poucas publicações, que uma poeta não se faz só com versos. 

Não se faz só com flores e piabinhas de prata enfeitando os pés das lavadeiras. Faz-se também em carne viva, que é a carne dos que amam e sofrem em vigília, guardando a solidão de pobres e ricos, vendo o enforcado que cai, e a terra a exalar seus mortos. 

Quem faz um poema como Última Estação – 

A salvação sempre 

está escondida 

onde está a ferida, 

lá é o lugar, 

a praça do mundo 

onde pátrias fedem a mijo. 

Danem-se as chananas! 

Morram os bogarins! 

A minha flor é a loucura. – 

não veio aqui para brincadeira, não vai correr com os versos debaixo do braço, embora não seja a loucura, e sim a lucidez que banha ou permeia seu livro, como as mãos úmidas do Maratoan semeiam ovas de peixe na manhã entranhada de luz. 

Diz Orides Fontela, no poema Rebeca: 

A moça de cântaros e seu 

gesto essencial: dar água. 

Esse é um poema-pílula perfeitamente aplicável à Carmen Gonzalez, cujo gesto essencial é dar a boa água da poesia aos sedentos desta era bárbara, porém poética. 

Publicado em Revestrés#40 – março-abril de 2019.