Dois dos meus filhos semearam as esposas. Os rebentos nascerão em setembro. Até aí, tudo bem: o nascer faz parte da vida – e o morrer também. O que me intriga é por que as duas crianças resolveram vir ao mundo neste momento difícil da Humanidade. Digo isso, mas não tenho certeza se, da invisibilidade de onde provém, elas tiveram a opção de escolha. Seja como for, já pulsam nas barrigas das mães, e um dia chorarão, porque é próprio de todos chorar e sorrir na terra amarga e doce do mundo.   

Sei da dor, da incerteza, da crise aguda, mas digo: aterrissem sem medo, estaremos de braços abertos e sorriso imenso para recebê-los. Não esconderemos a encruzilhada, nem maquiaremos a realidade que se apresenta com todos os seus tentáculos e promessas. Podem vir: o mundo não é só isso que se vê. Com o pouco que aprendi, posso lhes dizer que é possível caminhar e, pé ante pé, ver o que está atrás do véu e da fumaça desses tempos medonhos e cheios de fúria. 

Vocês dois nos encontrarão no dilema de decidir se queremos viver ou morrer, simples assim, sem outra opção ou meio termo. E que formidável que vocês decidiram pela vida, senão não teriam vindo ao mundo nesta hora agônica, porém cheia de luz, pois o sol nunca deixou de nascer todos os dias e de enviar seus raios para sábios e tolos. Entendo: vocês vieram para viver e nos alimentar com sua fome de vida, e por isso minha alegria é maior. Vocês querem nos ajudar, e o que colho de luz, partilho com vocês. 

Podem vir: o mundo não é só isso que se vê. Com o pouco que aprendi, posso lhes dizer que é possível caminhar e, pé ante pé, ver o que está atrás do véu e da fumaça desses tempos”

Podem se achegar, sem susto. Vocês compreenderão no momento certo por que estão destinados a testemunhar este piscar de olhos da Criação, no qual não somos mais os mesmos, nem estamos de férias. Há tantas coisas rondando o ar no espetáculo de variedades que é o mundo, com sua beleza e fealdade. Muitos acham que a feiura está vencendo. Mostrarei a vocês que não. Como isso se dará fica em segredo. 

Há tantos espelhos quebrados e cacos de vidro no chão. E mesmo que continuem a existir muros, fossos e credos, é possível ser feliz, mas aí vocês terão que lutar. Quem vai ensiná-los? Quem vai dizer-lhes que sem luta não há vida, e que vocês deverão lutar para construir outra sociedade, porque a atual entrou em colapso e é preciso construir outro mundo, com outra economia, outra política, outros relacionamentos interpessoais, outras possibilidades de amar e ser amado. 

Vocês, como nós, são passageiros de um caminho difícil, e farão parte da vanguarda que virá abrindo veredas com as tochas acesas. E sua tarefa será, nada mais nada menos, salvar a Humanidade. Por isso, vocês serão ativistas, lutarão bravamente sem descanso, todos os dias e noites, unindo-se a outros como vocês, como o mesmo ideal e a mesma força construtiva. Ninguém os deterá. 

Ao chegarem neste mundo, vocês vão dar de cara e respirar o ar revolto, mas virão com o “pasmo essencial das crianças ao nascer” e encontrarão aqui os que também não perderam essa condição nem sua verdadeira natureza, a qual não se perde nunca e continua a existir e dar as cartas para os que estão no jogo. Portanto, vamos jogar, meus netinhos, e descobrir o que há nesse esconde-esconde. 

Agonia rima com poesia, como fez Ouránis: 

Parem agora de tocar o aviso de perigo, 

calem o grito histérico, lamentoso da sirene, 

e deixem o leme confiado às mãos da tempestade; 

o mais terrível naufrágio seria nos salvarmos!  

Salvarmos para voltarmos à mesma vidinha, sem “sentir o acicate de nenhum desejo ardente”? Isso, meus netinhos, vocês não farão, pois não lhes faltarão audácia para abandonar a velha “trilha estreita e plana”. Estarei aqui para testemunhar e viver com vocês a oportunidade dourada de sermos “brinquedos das ondas bravias”. 

Neste momento em que lhes saúdo e dou as boas vindas, só me lembro dos poetas e dos mestres a quem lhes apresentarei e dos que vocês já sabem ou conhecerão pelos próprios movimentos de suas almas. Repito: venham sem medo! Para lhes alegrar e selar este batismo de fogo e de água, digo, como Whitman, que não há palavra capaz de traduzir o quanto me sinto em paz perante Deus e a morte. 

***

Rogério Newton é poeta, cronista, romancista. Publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2003), Conversa escrita n´água (2006), Grão (2011), No coração da noite estrelada (2015) e Crônicas dos enigmas de Oeiras (2017).

Texto publicado em Revestrés#46, que pode ser baixada ou lida gratuitamente: 

https://revistarevestres.com.br/edicaoonline/ (pdf para baixar)

https://issuu.com/revestresdigital/docs/revestres46_web (para ler online)

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