Meu filho seguia para Barra Grande e então me deu uma vontade irresistível de ir pra lá também. Estava pesado, posso dizer, triste, e só de pensar no mar, no vento e no sol, me senti mais aliviado do fardo invisível sobre os ombros.

Peguei o ônibus meia-noite. Ele, a companheira e os sobrinhos estavam me esperando na rodoviária. Pegamos o asfalto, não mais a estrada esburacada que conheci anos atrás. Quando chegamos a Barra Grande, o sol estava bem aceso. Deixamos nossas coisas na pousada e fomos logo para a praia, caminhando.

Foi um reencontro feliz, após séculos sem colocar os pés naquele lugar da costa que considero o melhor de todos que conheço. Rumei para a Barrinha, sem me importar com o sol fortíssimo, pois a vontade de caminhar era maior, na direção do desconhecido. Na altura do cemitério, que fica sobre uma colina de areia, parei e mergulhei nas águas, com cuidado, pois há ali muitas pedras.

Depois segui para o campo santo. Queria contemplar o cenário de um ponto elevado. Não se assuste o leitor: o cemitério da praia não é lúgubre e sombrio como os da cidade. Para mim, é um recanto poético de simplicidade e despojamento. Um lugar lindo de morrer. Os corpos são enterrados na areia, com a cabeça voltada para o mar. Não há calçadas ou muro. Uma cerca bem feita de paus rústicos, encostados um no outro, define os seus limites, se é que os há para os mortos.

Sem pressa, percorri a vereda que ladeia a elevação, ornada de flores amarelas e lilases. Ao ver, aqui e ali, ao longo do caminho, bosta seca de vaca, entre a areia, o matinho verde e as flores, lágrimas começaram a cair. Não me pergunte por quê. Olhando a beleza incomparável da paisagem e sentindo minha presença solitária no meio dela, eu só tinha vontade de chorar, e o fiz copiosamente.

Ao chegar em frente à cancela de madeira, percebi que o ferrolho, corroído pela maresia, quebrara-se. Um pedaço de cordão grosso atava a peça rústica a uma estaca da cerca. Não sem antes passar longos minutos contemplando seu interior, pedi permissão para entrar. Parece que uma voz me dizia: “ __ Entre, meu filho, a casa é sua. Nada disso pertence aos vivos ou aos mortos”. Tirei os chinelos, pois não é lícito adentrar lugar sagrado, a não ser descalço.

Não sei quanto tempo demorei. Não foi muito. O sol estava tinindo. O vento fazia música nas frondes das carnaubeiras. A areia estendia-se até as pedras da praia, onde o mar azul era o soberano na maré incrivelmente baixa. Havia uma barraca de palha ensombrando uma canoa. Fui até lá e fiquei protegido do sol abrasador, com os meus pensamentos ou com os pensamentos que vinham até mim, sem eu saber exatamente a origem. Não sentia o que pudesse chamar de tempo.

No dia seguinte, acordei ainda escuro. Lua e estrelas cintilavam, mas só até surgirem a barra do dia e o sol arrebatador. Andei até próximo à Sardinha e retornei pela parte em que o mar se comunica com a terra, avançando por entre as carnaubeiras e as pequenas dunas cobertas de mato rasteiro. Enterrava com prazer os pés na lama escura, povoada de seres do mar e de conchas belíssimas. Continuava o percurso de volta, rente ao cercado de um condomínio meio oculto pelas árvores, quando me deparei de novo com o cemitério, exatamente na outra entrada, situada no lado oposto ao que tinha estado no dia anterior.

Havia ali a sombra aconchegante de uma árvore cujo nome desconheço. Entrei e me sentei no tapete da relva, para descansar e desfrutar da companhia dos mortos, que, como diz uma canção, “não se levantam mais”. Depois pensei: “Que bobagem! Mortos não há. O que existem ali são restos do que outrora foram corpos. Almas que os habitaram são imperecíveis e estão em outros lugares”. Não me pergunte onde, pois não sei.

É certo que os mortos, ou pelo menos suas sepulturas, compunham a paisagem, mas o que eu desfrutava mesmo era a vida, que se desenrolava perante mim. Não havia nada que não fizesse sentido e que não fosse intrinsecamente belo. Os paus transversais da cerca eram como seres abraçados, em perfeita fraternidade. A toda hora, pássaros pousavam nos galhos da árvore ou passavam cortando o céu. Tudo aquilo parecia real e intangível ao mesmo tempo.

Nos instantes finais do entardecer, em que o dia se misturava com a noite, reses do guardador de rebanhos descansavam ao longo do caminho. Vez em quando, chocalhos soavam.

Mortos não se erguem, mas homens, mulheres e crianças sepultos ali me cumularam de verdades imorredouras. Sem vê-los, ouvi-los ou tocá-los, ofereceram a mim seu evangelho aberto com tudo que eu precisava saber sobre a vida e a morte.

(Crônica publicada na Revestrés#32 – Agosto/Setembro 2017)