Dezembro era, de longe, o melhor mês para mim. Começavam as férias. Abria-se, largo, o horizonte da vida. Os dedos do inverno surgiam entre as frestas do tempo. Meu aniversário, pouco antes do Natal, fazia sentir-me especial. Os dias vinham e iam, fluindo. No de Santa Luzia, enterrávamos sementes de arroz nas latinhas de manteiga. As hastes finas brotavam da areia úmida e enfeitavam o berço de Natal, como chamávamos o presépio. Na véspera, os meninos de minha rua íamos buscar andré-miúdo nas encostas dos morros, nos confins do Canela. Voltávamos sobraçando galhos e folhas daquela pequena árvore cheia de aromas. À tarde, eu ajudava minha mãe na montagem do berço, que pontificava na casa até o Dia de Reis. A noite insinuava-se e ficava festiva, iluminada. Minha irmã mais velha punha canções na radiola. Na igreja havia missa. Ao contrário do meu pai, sempre atento às metáforas, não me lembro de nenhuma palavra do padre.

Depois vinha a visitação dos berços. Percorríamos as ruas tortas e entrávamos nas casas onde havia presépio, feitos com pedras úmidas e areia fina dos morros. Alguns com criatividade e primor: patinhos no espelho do lago, céu brilhando, animais, pastores circundando o Menino, olhos cheios de ternura. Havia berços mal-feitos, nós mangávamos a valer. Meus amigos exultavam com os presépios grandes, eu também, mas me detinha com carinho especial diante dos mais humildes e ficava pensando longamente a maneira como os donos da casa o haviam criado. Numa casa perto do riacho, um berço famoso. Saíamos de lá, arriscando olhar na direção da casa das mulheres noturnas.

Depois que meus pais partiram e tudo se modificou ou se perdeu, uma pequena caixa de papelão ficou comigo. Como uma arca, ainda guarda o tesouro: imagens, búzios, conchas, uns poucos grãos de areia e o indelével cheiro de andré-miúdo.

No Natal, o menino ressuscita dos escombros das eras e reinventa o berço. Do regaço da memória retira a silenciosa presença da mãe, pedras, areia, aromas. Por teimosia, estratégia de sobrevivência ou humilde amor, reconstrói o pequeno reino encantado que nunca terá fim.

(Crônica publicada na Revestrés#28 – dezembro de 2016 / janeiro de 2017)