Saí da livraria na hora de fechar. Começou a chover e isso não tem nada a ver com o fato de eu ter ido lá. Posso assegurar: não havia ninguém esperando a chuva, pois estamos no bêerreobró, em que impera a luz de fogo do sol, tempo no qual tudo pode acontecer, menos cair água. Mas, contra todos os prognósticos, choveu. As moças apagaram a luz, fecharam a porta de vidro, e dentro da loja só ficaram os livros, talvez dormindo, e as imagens dos santos na vitrine, disputando espaço com as publicações, com amplas chances de vencerem.

A porta cerrada a chave, a livraria na escuridão, eu sob a marquise, olhando os pingos cairem e a água rapidamente escorrer pelo asfalto da avenida, como um riacho veloz. Os autos esmagavam as poças, as luzes dos faróis penetravam a obscuridade. Os motoristas pareciam alegres ou atônitos. Buzinavam. De repente, tudo se transformou. A cidade não era a mesma. O tempo ficou úmido e cheiroso. Sem aviso prévio, entramos em outro capítulo e parecíamos personagens dentro de uma história criada pela noite e pela chuva.

Logo voltei a folhear o livro de cidades inventadas. Tinham nomes esquisitos, poéticos. O autor as concebera na imaginação e nas letras impecáveis das páginas já amarelecidas. O livro voltara para a estante. Mas as cidades de palavras e de espanto continuavam vivas em algum lugar daquele território situado entre os volumes adormecidos, a chuva, a marquise, a avenida e outros personagens noturnos. Por isso, cheguei a cogitar se Teresina não era também uma cidade inventada. Fui pensando e gostando da ideia. E me sentindo mais livre: não estava mais obrigado a vê-la e pressenti-la real.

Como não matei a charada antes? Foi preciso a chuva salvífica, a marquise-observatório e um livro impossível para decifrar o enigma, sem que aparentemente o tenha buscado. Por isso decidi: a partir de agora, como as cidades, vou me inventar. Não serei mais eu mesmo. Não precisarei conviver comigo, mas com outro que recrio. E está resolvida a questão. Mas a coisa não para aí, eis que convido o leitor para urdir a revista que ele pensa ter nas mãos e essa crônica, sem pedir permissão a Cronos. E tramar a si mesmo. Se quiser, terá à disposição a chuva, a noite, o livro, a marquise e a livraria com porta de vidro e santos na vitrine.

Você deve estar curioso para saber como são as cidades inventadas. Podem ser “um amontoado de casas velhas no meio de um deserto”. Ou casas novas de um lugar de avenidas asfaltadas, no vale outrora fértil entre dois rios. Nas tardes de verão, pode-se ouvir o rumor das águas, mesmo que o barulho dos autos e a inquietação provocada pelo sol não deixem escutar essas coisas. Opção irresistível é mergulhar no leito de fogo e voltar com os olhos e a pele queimados, a língua a proferir desvarios.

Digo pra você, leitor: as cidades inventadas existem, não só na imaginação. Se você tiver alguma dúvida, olhe em volta como tudo são criações. Até as doses de acaso. Agentes nem tanto secretos estão cuidando disso desde que o mundo é mundo. Se o segredo for revelado, as pessoas vão querer ser livres e desenredar-se dos palpos de aranha.

De minha parte, tenho a convicção de que contribuo para esse estado de coisas. Invento crônicas. Entrego-as ao leitor como se oferece brinquedos a uma criança.

(Publicada na Revestrés#22 – Setembro/Outubro 2015)