A conteceu de outro dia eu sentir que estava me dissolvendo. Como foi isso?, indagará o leitor que me conhece, e mais ainda o que não me conhece. Ou não farão pergunta alguma, ocupados em afazeres mais promissores que as dissoluções.

Mas digo: senti-me dissolver. Acordei de madrugada ouvindo a chuva. Saltei da cama: era uma chuva de ventos fortes e pingos grossos. Pouco a pouco, o vento amainou e ficou o aguaceiro caindo durante uma eternidade. Todos dormiam em casa, e só eu testemunhava a chuva, como fazia quando era menino. Sabe a alegria que às vezes a gente sente e não sabe de onde vem? Eu estava sentindo e conhecia a origem: a chuva!

Quando o dia nasceu, o tempo estava limpo. Saí para caminhar, pois era irresistível fazê-lo. O ar estava úmido e cheiroso, as ruas com água ainda escorrendo perto do meio-fio. Caminhei resolutamente por minha rua na direção do nascente. E a medida que andava e desviava das poças, sentia agilidade nos pés e o velho peito aberto, sem nenhuma ferida. Senti vontade de cumprimentar a todos sorrindo, mas como não havia ninguém na rua àquela hora, acenava para os postes, os muros, as árvores dos jardins e das calçadas, o sol que estava nascendo, o céu de nuvens claras agora e o pássaro cantando no fio elétrico.

E fui andando nas velhas e conhecidas ruas, cantando baixinho para não espantar meu coração e para o canto se integrar, sem afetações, na realidade. Não era o caso, nem eu precisava pedir licença para cantar. Para mim bastava uma meia voz ou murmúrio, pois sabia que o universo estava me ouvindo, e não precisava fazer esforço para isso acontecer. Tudo fazia sentido. Não havia fora, tudo estava e era dentro, uma coisa só.

Foi aí que comecei a querer e a sentir me repartir, e também não fazia esforço, era só um querer e sentir misturados, repartidos e inteiros. Sentia que pisava o asfalto ou o calçamento de pedras irregulares. Na verdade, eu flutuava na concretude das coisas urbanas, debaixo do sol, que me convidava: – Vem, meu filho, este é teu reino! Não há paraísos distantes!

Era de novo menino, sem deixar de ser adulto, sem deixar de ser mortal, que não há criação nem morte perante o sol e a rua, quando estes são vias para tráfegos imponderáveis. Quando cheguei perto da cajazeira, que a construtora do edifício não cortou, cujos galhos ensombram a rua de um lado a outro e deixam pepitas amarelas sobre o asfalto, deslizei as mãos sobre o tronco enrugado e olhei para cima, a ver, além da folhagem, o céu. Minha mente nunca parecia ter sido algum dia macaco bêbado mordido por escorpião. Estava me dissolvendo.

E passei na mais linda casa desta cidade, toda branca, cercada de verde, cujos donos nunca vi, nem quase nunca vi ninguém, a não ser, uma vez, o caseiro varrendo folhas mortas na calçada. Essa casa cometeu a audácia de permanecer com sua mureta e sua poesia na rua amedrontada. Passo na frente dela, vindo dos jasmins e das buganvílias. A sensação deliciosa se amplia. Edifícios e casas e árvores e ruas parecem um quadro móvel e vivo de pintor epifânico. Caminho e me dissolvo entre as gotículas da névoa.

(Crônica publicada na Revestrés#30 – Abril/Maio 2017)