Foi difícil segurar a emoção ao ver a exposição Fernando Costa: da Santa Ceia e Outros Avulsos, na galeria do Mercado Velho, em Teresina. Mesmo sendo uma pequena mostra, despertou em mim a memória do autor e do tempo em que viveu entre nós.  

Conheci-o através de Cineas Santos, numa de nossas idas à coroa do Rio Parnaíba para jogar futebol. Entrei no fusca e estava lá o Fernando, aparentemente alheio ao que se passava ao redor, cantarolando baixinho. Mas foi simpatia à primeira vista. Na areia úmida do Rio Grande dos Tapuias mostrou que era um craque.   

 

Quando Cineas formou o time da Livraria Corisco, tive a honra de compor algumas vezes com Fernando o miolo da zaga. Era uma tranquilidade e uma inspiração jogar com ele.  Uma vez fomos com Cineas e o poeta William Soares para a semana santa em São Raimundo Nonato. Além de passear numa área de açude e desfrutar das regalias de Dona Purcina, jogávamos futebol à tarde. Na época, morava na cidade um padre que fora jogador profissional na Espanha. Ele ficou impressionado com a qualidade do futebol de Fernando, que, se quisesse, poderia ter sido atleta profissional. Talento não lhe faltava. E uma enorme elegância. Mas não seria aquele o seu destino: já havia feito na arte o mergulho sem volta.   

Naquela época – início dos anos 1980 -, Fernando Costa vivia o que alguns ainda hoje denominam “primeira fase” de sua obra, à qual, genericamente, emprestam vinculações explícitas com a realidade, o que denota a ausência de esforços conceituais para dimensioná-la, já que, em princípio, relações com o mundo circundante toda arte possui.  Como são escassos os estudos sobre sua obra, a “segunda fase” seriam as produções que advieram após a ida de Fernando para São Paulo, em meados dos anos 1980, a partir da qual pinturas, desenhos e gravuras teriam adquirido tendências abstratas. 

Seja que classificações lhe dêem, as produções de Fernando, desde o início, possuem uma grande força expressiva, como são exemplos o Auto-Retrato e a Ceia, talvez os dois únicos óleos sobre tela da “primeira fase” que fazem parte da exposição. Não vou me permitir analisá-las criticamente porque não sou crítico de arte ou de qualquer outra coisa. Mas não posso deixar de expressar a minha emoção ao reencontrá-las, eu que as via e admirava sempre que ia à casa de Fernando e de seus pais, na Primavera. Os dois quadros dividiam com outros o espaço da parede da pequena sala de visitas. É uma sensação diferente ver as mesmas obras em ambiente familiar e na exposição formal. 

Os dois quadros dividiam com outros o espaço da parede da pequena sala de visitas. É uma sensação diferente ver as mesmas obras em ambiente familiar e na exposição formal. 

Não sabia que Fernando havia denominado sua tela de Santa Ceia, mas Guga Carvalho, organizador da exposição, assegurou-me que sim. Por sua qualidade artística, aquela Ceia foi escolhida para ser encarte do primeiro número da revista Pulsar, em 1998. Sabendo da admiração e amizade entre Fernando e Nonato Oliveira, assim que foi editada, entreguei a este um exemplar da revista. Ao ver o encarte, Nonato ficou visivelmente emocionado: “– Fernando fez esta Ceia na minha casa!”. 

Tempo em que Fernando fez uma boa imersão no profissionalismo foi o da Oficina de Arte, criada, em 1981, por ele, Cineas Santos, Albert Piauí e Paulo Machado. Funcionava em frente à casa da família do poeta Ramsés Ramos. Lá trabalhei como aprendiz de tipógrafo e fui testemunha da intensa produção de Fernando. Em xilogravura, ele fez as capas dos livros editados pela Oficina de Arte e de muitos autores da geração. Sempre foi um deleite para mim, e ao mesmo tempo um espanto, ver sua extraordinária habilidade em cortar as borrachas para xilogravuras, que eram coladas na madeira e em seguida levadas para a impressão, considerada primitiva comparada aos modernos equipamentos de hoje. Mas aquela impressão rústica parece que lhe dava mais sentido estético. 

Como é comum acontecer com artistas muito talentosos, Fernando saiu de sua terra, fato que se deu em meados de 1980. “Um bom menino perdeu-se um dia”, podemos relembrar a letra da canção de Torquato Neto e a similitude dos desfechos trágicos. O que Fernando viveu em São Paulo significou uma mudança notável em sua arte, cujos horizontes se ampliaram. As produções datadas da época em que viveu naquela cidade são enigmas que reivindicam decifrações não redutoras. Isso porque não há fronteiras em sua arte, cuja densidade sugere diálogos profundos, mais perguntas inquietantes e reflexões artísticas do que respostas. 

O período paulistano durou pouco, talvez nem dois anos, e quase custou-lhe a vida. Fernando ficou com a saúde deplorável e foi colocado em um avião de volta para Teresina. Foi duro vê-lo naquele estado. Mas sua recuperação foi espantosa. Reencontrei-o dias depois no ateliê de Nonato Oliveira, que na época era meu vizinho na Av. Barão de Gurguéia. Fernando estava pintando uma tela onde o azul era fundamental, iluminado entre outras cores e linhas, que em nada remetiam a algum conteúdo, digamos, realista. E o melhor: havia recuperado o peso e sorria. 

 Parecia reintegrado à vida da cidade e à fauna de homens e mulheres humanos e desumanos. Para todos nós que éramos próximos soava mais ou menos tranquilizador ver sua inquietação criativa traduzindo-se em obras, que nunca deixou de produzir até perto do momento fatal.  

Como para todos a vida é bela-louca-sarabanda-corrupio, para Fernando Costa deveria ser também, talvez aumentada por uma voltagem secreta e indecifrável. Isso senti mais forte depois da viagem que só me trouxe de volta a Teresina dias após o carnaval de 1987. Eu não sabia de nada e meu irmão Paulo Gutemberg me deu a notícia, que agora sinto-a transfigurada entre os arcos da galeria.  

Reencontrando os trabalhos de Fernando Costa e sentindo de novo sua presença, chego a pensar que o burburinho de pessoas entrando e saindo do Mercado Velho nada tem a ver com sua obra ou com sua vida. Mas logo me rendo à compreensão de que tudo faz parte da vida e da morte, que, de mãos dadas, dançam em todas as direções. 

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Rogério Newton é poeta, cronista e romancista. Publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2003), Conversa Escrita N´água (2006), Grão (2011), No Coração da Noite Estrelada (2015) e Crônica dos Enigmas de Oeiras. (2017). Escreve em Revestrés desde o primeiro número.

Publicada em Revestrés#44 – novembro-dezembro de 2019.

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