Nos últimos dias, lembrei a manhã em que minha mãe me chamou para ajudá-la na cozinha. Estava visivelmente perturbada por uma notícia que vieram lhe contar. Um político local cometera não sei que desatino e por isso ela ficara revoltada. Sua voz tremia, da nobre cólera dos justos, como diria Quintana. Poucas vezes a vi daquele jeito, ela, que raramente saía de casa e se mantinha discreta e distante da vida pública. 

Sei muito bem por que relembrei aquele episódio da infância: havia lido um monte de notícias políticas na internet. Foram, e continuam sendo, tão nefastas que senti falta da indignação desinteressada de minha mãe, que ressurgiu para me socorrer.    

 

Já que a memória trazia de volta a antiga casa da família, lembrei também do meu pai, que, nos momentos difíceis, repetia uma frase atribuída a Santa Teresa: “Tudo passa!” Quando ele falava isso, eu já sabia: o velho entrara em enrascada, remoía os dissabores. E assim pude suportar o noticiário. 

Entre os afazeres, as lembranças de minha mãe e do meu pai me acompanharam e fui tecendo com elas uma rede de impressões e raciocínios, nem sempre lógicos, procurando compreender e encontrar sentido para o que estava acontecendo comigo, enquanto membro, como vou dizer?, da sociedade. É curioso porque, tendo lido um pouco e visto alguma coisa na vida, não procurei refúgio nos livros, mas nos meus pais, que já se foram. 

Em verdade, na indignação pura de minha mãe, reside uma ética, também pura, que certamente ela não aprendeu nos livros, pelo menos não nos conhecidos como tais, pois há livros que não são feitos de papel e estão aí para a gente ler, com suas folhas cheias de significados.  

Pensando essas coisas, veio na minha mente um artigo que li há pouco tempo sobre a mentira, ou melhor, sobre a ética na política, ou a mentira na res publica. O autor diz que a mentira põe em risco princípios e compromete resultados. Larguei o artigo. Só fez aumentar meu sofrimento. Melhor ler livros abertos e pensar na minha mãe e no meu pai. 

 É muito difícil haver uma sociedade minimante saudável sem observância dos princípios éticos universais. Não de um código moral aprisionador, com suas noções de pecado e virtude absoluta, cheio de regras criadas mais para o controle do que para a convivência inspiradora entre seres humanos. Na ética, a verdade brilha sem esforço, pelo simples fato de existir. Mas a política transformou-se no reino da mentira, se a julgarmos pelo festival de grossuras e outras coisas impublicáveis que assola o país. 

Evito julgar meu país e as pessoas exclusivamente pelo que sai na internet e na televisão. Vejo ao meu redor pessoas honestas, que não aparecem na mídia. Na acepção machadiana, pertencem ao país real, possuidor dos melhores instintos. O que se vê na política é o país oficial, caricato e burlesco. Mas isso também não resolve a situação, a não ser que a encaremos como teatro de bufões. 

Para consolo e autoconsumo, tenho repetido, como um mantra, a afirmação do meu pai: tudo passa! Essa política vai passar, como passaram os ditadores, os falsos profetas, os canastrões da ópera-bufa. O problema é que, enquanto não passa, a gente sofre. O que falta acontecer? Talvez tenhamos que chegar ao fundo do poço, para nos darmos conta de que estamos na escuridão? Foi para isso que adquirimos a forma humana? 

Pode ser que o leitor me considere edipiano, mas o fato é que termino a crônica, relembrando outra vez minha mãe, que gostava de ler, embalando-se de leve na rede, sob o gemido quase inaudível do armador. Os livros não alteraram sua ética simples e inabalável, completada na espiritualidade de meu pai, que um dia, tendo eu saído de casa, escreveu-me numa carta, com letra impecável: tudo passa, meu filho, só uma coisa não cansa. O quê, meu pai? Procure. Procure. 

 

Rogério Newton é poeta, cronista e romancista. Publicou Ruínas da Memória (1994), Pescadores da Tribo (2001), Último Round (2003), Conversa Escrita N´água (2006), Grão (2011), No Coração da Noite Estrelada (2015) e Crônica dos Enigmas de Oeiras. (2017). Escreve em Revestrés desde o primeiro número.

Publicada em Revestrés#42 – julho-agosto de 2019.

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