(Participaram dessa entrevista: Wellington Soares, Samária Andrade, Demetrios Galvão, André Gonçalves)
José Salgado Santos é nome de arquivista, não de poeta. A dica teria vindo de Torquato Neto, ao conhecer o escritor, jornalista e compositor maranhense em Teresina, no início dos anos 70, quando este tinha então cerca de 20 anos. Há pouco alfabetizado, o jovem José Salgado trabalhava como repórter no Jornal O Dia e foi entrevistar Torquato – um encontro que lhe traria grandes influências (como a provocativa estada de Torquato Neto pelo Piauí, pouco antes de sua morte, tem dado repetidas mostras). Salgado mudou de nome, se interessou pelos poetas de vanguarda e foi embora para o Rio de Janeiro – com muito mais coragem que planos.
“Eu era aquele menino que não tinha voz, chegado do interior do Maranhão, que não dominava a língua nem a urbanidade” afirma, referindo-se à época em que se mudou para Teresina. Filho temporão de pai comerciante, Moacyr dos Santos, e mãe camponesa, Raimunda Salgado, ele nasceu na zona rural, a uma hora de Caxias, a maior cidade das proximidades. “Você não tinha acesso ao mundo moderno. Vivíamos num obscurantismo medieval”.
Com a preocupação de garantir estudo aos filhos, Dona Raimunda segue para Teresina com Salgado e filhos de outra união. Na capital piauiense, são enfim alfabetizados. Somente depois Salgado e um irmão mais velho procuram um cartório, em Caxias, onde se registram. “Eu precisava trabalhar e ganhar dinheiro como adulto”.
No povoado de Cana Brava das Moças, Maranhão – “eu vivi em Macondo” – o menino se encantava pelos campos cheios de plantações de arroz, pela literatura de cordel, tambor de crioula e outras manifestações culturais e religiosas. Mas queria mesmo era mexer com as palavras. Gosta de lapidá-las. “Eu não publico um poema antes de lê-lo e reescrevê-lo uma centena de vezes”. E dá dicas! Sobre versos: “Você tem que encontrar as tônicas”. Sobre composição: “Tem que haver arejamento na construção do texto, de modo que ele possa ser cantável e as pessoas possam memorizá-lo”.
Vivendo há mais tempo no Rio de Janeiro, Salgado mora num bairro de nome também poético: Laranjeiras. Ele iniciou o curso de jornalismo na PUC, mas nunca o concluiu. Tem prêmios em literatura e composições gravadas por grandes estrelas da música nacional: Paulinho da Viola, Ivan Lins, Ney Matogrosso, Zizi Possi, Elba Ramalho, Alcione e muitos outros. Elogiado pela crítica e traduzido para o inglês, italiano, francês, alemão, sueco e, em breve, japonês, afirma que até hoje não consegue ganhar dinheiro com poesia. Vive em especial das conferências que ministra pelo Brasil e pelo mundo. Descoberto por universidades americanas, tem feito palestras e, seu texto, virado objeto de estudo. Nos últimos anos já esteve em mais de 50 universidades americanas, como Harvard e Yale, onde recebe cerca de US$ 1 mil por palestra.
Nega que seja vaidoso, mas é escorregadio quando se pergunta a sua idade. “Eu sou de 1953, então é só somar (risos)”. Quando percebe que vamos fazer fotos, saca os óculos escuros e ensaia algo menos despojado. “Quase nunca gosto de minhas fotos”, diria depois.
Salgado Maranhão costuma ser cordial, sorridente e quase sempre aparece de camisa jeans, “por pura praticidade”, garante. “Se vou a lugares que exigem roupas formais, eu me ajusto à situação, vestir bem é estar adequado àquilo que o ambiente exige”, ensina.
“Graças a facilidades tecnológicas, não existe mais mundo distante. As melhores e piores coisas que acontecem no mundo estão próximas da gente”- filosofa. Olha para gravador e pergunta: “Já começou?”.
André – Tendo aprendido a ler somente aos 15 anos, o que significa para você, como poeta, o fato de alguém não saber ler?
Salgado Maranhão – É muito grave, mas, no meu caso, os primeiros anos de minha vida eu trabalhei na enxada como qualquer camponês. Quando cheguei a Teresina vinha com um enorme apetite de saber. Passado tanto tempo, penso que essa demora em iniciar os estudos formais já não me faz a menor falta, porque minha experiência de vida se encontrou com a experiência dos livros. Então a minha vida anterior à leitura, ao invés de criar algum problema, somou-se ao que alcancei depois. Quando eu descobri os livros, esse era o meu lazer. Eu vi a seção de poesia na Biblioteca Pública de Teresina e disse: “é aqui!”. E fui lendo espontaneamente, Camões, Gonçalves Dias, Guerra Junqueiro, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, entre outros. Quando você tem foco transforma o tempo cronológico em tempo produtivo.
Wellington – A cantora Maria Bethânia defende que as escolas precisam de mais poesia. O que você acha disso?
SM – O ensino no Brasil, com raras exceções, está todo instrumentalizado. É pensado para o concurso, o emprego, a conquista do espaço econômico, e não pelo prazer do conhecimento. O ensino e o trabalho se distanciaram do saber e, naturalmente, da poesia, que sumiu do currículo escolar! A forma como se ensina poesia não traz satisfação ao aluno. E literatura é para se ter prazer! A escola, operando para a sobrevivência e não para a vivência, valoriza mais a narrativa que o discurso poético, porque a narrativa tem começo, meio e fim. Ela se presta mais às manipulações, diz o que se deve fazer, como se deve pensar, enquanto a poesia não nos tutela, nos deixa no meio do mar, sem bússola, sobre um pedaço de tábua, para encontrarmos nosso próprio destino.
Demetrios – Quando a educação brasileira se sistematiza com Getúlio Vargas, a partir da década de 30, acontece um aumento dessa dimensão instrumental. Talvez seja mais fácil pensar no problema que a falta de poesia provoca, como a produção de uma sociedade embrutecida. Nesse sentido é correto pensar a poesia e a existência sensível como um ato extremamente político?
André – E nesse momento contemporâneo, de certo embate entre conservadorismos que se pensava adormecidos e as ideias de humanismo, qual o papel da poesia?
SM – A poesia é o discurso que mais alto fala à grandeza da língua, que mais tem a dizer porque não é um discurso raso. É indireto. As metáforas, metonímias, elipses, por exemplo, nos dizem além do que pode ser dito. A poesia me empurrou para um outro mundo. Eu, aquele menino de uma pobre região rural que não tinha voz, chegado do interior do Maranhão, que não dominava a língua nem os códigos da urbanidade, tive um imenso choque cultural! E só a poesia podia dizer o que eu queria, com as suas lacunas, com os seus silêncios. Eu penso que uma das grandezas da poesia é a dificuldade de transformá-la em mercadoria. Você não vê em nenhum jornal alguém anunciando: “procura-se um poeta”, “vagas para poeta”, “paga-se bom salário” – eu estou procurando isso há mais de 30 anos e nunca achei (risos). No sistema capitalista, onde tudo é vendido, a poesia consegue se manter e nunca foi tão divulgada. No entanto continua a existir uma ausência da poesia nos lugares de negócios.
Nos EUA, um livro
de poemas pode valer
como uma monografia.
Aqui você faz um curso
de letras e não sai
poeta. Ao contrário,
às vezes você embota.
Samária – Com a valorização do produtivismo e a cobrança por resultados, qual o espaço da utopia?
SM – Se não tivermos utopia, estamos perdidos! Você pode ter casa confortável, carro de última geração, todos os bens de consumo, mas em tudo que vivemos, ainda que por caminhos tortuosos, buscamos a utopia. O espaço dela está sempre aberto, mesmo quando não sabemos como chegar a ele. A poesia, a música, as artes em geral, buscam a utopia porque não nos basta comer, morar, existir. Queremos saber por que e para quê existimos. Queremos a felicidade. São as coisas mais impalpáveis e inconceituáveis que mais nos interessam e que buscamos permanentemente.
Wellington – Com a experiência de levar seus textos às universidades americanas e europeias você percebe uma relação diferente desses países com a poesia?
SM – A poesia é algo para poucos, a diferença é que eles oferecem condições para que a maioria tenha acesso. Eu já palestrei em mais de 50 universidades nos Estados Unidos e lá existe uma cadeira, na grade curricular, de escrita criativa, de modo que um livro de poemas pode valer uma monografia. Aqui, você faz um curso de letras e não sai poeta. Ao contrário, às vezes você embota, porque só estuda textos teóricos, que se preocupam apenas com a análise. Você passa a analisar o voo enquanto poderia estar voando. A poesia é o voo, a crítica é o freio do voo. Isso não significa que um poeta não deva ter senso crítico, que não deva trabalhar o seu poema. O primeiro momento da escrita é o da epifania, o segundo é o da carpintaria. Eu não publico um poema antes de lê-lo e reescrevê-lo uma centena de vezes. Achar uma palavra melhor, às vezes mudar apenas uma vírgula, e sentir o efeito que isso provoca. Se você pesquisar os arquivos de João Cabral de Melo Neto, ou de Drummond, ou de Guimarães Rosa, vai ver tudo rasurado. Você precisa ter tempo para ler e dizer: “ah, tá aqui! Eu passei perto e não tinha achado a palavra exata”. Escrever é um trabalho extremamente meticuloso, quanto melhor seja a escrita.
Demetrios – Eu já vi você falando em “alargar as margens da língua”. Quando um poeta consegue isso?
SM – Na língua do dia a dia – “me dá um café aí”, – “chama um taxi pra mim”, você nem presta atenção no que está falando. Mas na hora em que você fala um verso de Drummond aparece a beleza da língua. É na poesia que a língua se mostra de modo sublime, mesmo quando fala de coisas simples. O meu trabalho como poeta é sair do corriqueiro, alargar a dimensão da língua, esticando-a na sua beleza e expressividade. O poeta é um criador de línguas. Guimarães Rosa, que era um prosador com enorme consciência do valor do poético, trabalhava com as palavras que já estavam dorminhocas, já não tinham força semântica, mas, junto a outras, ganhavam vida nova. Mallarmé dizia que poesia se faz com palavras. Mas se o poeta não tiver uma história pessoal relevante e uma sensibilidade para observar acima da média, ele terá apenas palavras. E palavras todos às têm, elas estão nos dicionários, nas gramáticas. O poeta tem que dizer coisas que a pele do discurso – que são as palavras – está esperando que sejam ditas. Quando as palavras caem nas mãos de um dos grandes, você diz: “poxa, essas palavras estavam ai, trombando comigo, e não davam esse efeito!”.
Samária – Hoje o escritor divide o seu tempo entre a escrita e a participação em conferências, feiras e salões de livros. Do que você mais gosta?
SM – Esses encontros já existiam principalmente na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil, eles aparecem nos últimos 15 anos e são oportunidades do escritor e do professor atuarem juntos. O professor estimula no aluno o gosto pela literatura e o escritor o prazer de escrever, a vontade de se parecer com aquele escritor. Eu adoro essa proximidade, a troca, a possibilidade de várias leituras do que eu escrevo. O importante não é o que a minha poesia fala para mim, mas o que ela fala para o leitor. Quanto maior a poesia mais ela tem múltiplas possibilidades de leituras.
André – Jorge Luis Borges dizia que o livro é o instrumento mais encantador e o mais assombroso já inventado, porque tudo o que o homem cria é uma extensão física do corpo, e o livro é uma extensão da imaginação. Com a chegada dos e-books, blogs, sites, que tipo de transformação acontece com o livro? Ele perde espaço ou a palavra independe do suporte?
SM – O livro já foi papiro, em pedra, em couro – e era o livro; porque o livro é maior que o seu suporte. Particularmente, gosto do livro em papel, porque gosto da sua corporalidade, do seu cheiro. Eu acho que os suportes vão coexistir. O que importa é a possibilidade que o livro nos oferece. O livro mudou o meu destino, minha pele, minha vida, me deu acesso a um diálogo comigo e com o mundo. Mudou meu olhar, meu jeito de andar. Porque o livro conversa com a gente – porque você pergunta e ele responde – daí a grandeza da Bíblia, do Alcorão, que atravessam milênios. Às vezes, eu fico encolhido na minha casa como se quisesse entrar dentro dele. Estando com um bom livro eu não tenho solidão.
Wellington – Existe uma discussão sobre a qualidade da letra de música enquanto poesia. Para você, que trafega entre poesia e música, letra de música é poesia?
SM – Nós, nordestinos, temos uma convivência com a literatura de cordel – que é música e poesia – desde cedo: nas feiras, mercados. O nordestino fala em heptassílabo (verso de sete sílabas métricas). Quando cheguei a Teresina e, mais tarde, conheci o Torquato (Neto), descobri os poetas da Tropicália e eles tiveram grande influência sobre a minha formação. Eu tinha lido muita poesia clássica. Mas Torquato me conectou com a vanguarda. Isso também me levou para a letra de música. A música popular brasileira tem grande poesia desde o começo do século XX, com Orestes Barbosa, Noel Rosa, Mário Lago, entre outros. Depois, a geração de Cartola, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho, também fazia poesia de alto nível em suas canções. E quando Vinicius de Moraes entrou para a música, deu um upgrade e uma legitimidade ainda maior nas letras da canção brasileira. A geração da Tropicália aprendeu com Vinicius. Era uma geração que lia muita poesia e incorporou a qualidade dessa poética às suas canções, aí então já não havia muita diferença entre a poesia das letras e do livro. Quando Orestes Barbosa e Silvio Caldas diziam:”tu pisavas nos astros distraída, sem saber que a ventura desta vida é a cabrocha, o luar e o violão” – isso é, simplesmente, maravilhoso! Ou quando Cartola dizia “semente de amor sei que sou desde nascença” – isso é um alexandrino perfeito! Como já nos disse Murilo Mendes: a poesia – como o vento – sopra onde quer. Se o poeta estiver na canção ela estará lá. Naturalmente nem tudo o que está na música popular é poesia.
Alguns poetas
da minha geração
nunca aprenderam
o que é um verso.
Muitos escrevem
frases pensando
que são versos e o
elemento poético
perde a força.
Samária – Isso já ocorreu com algum poema seu? Alguma música lhe surpreendeu e se revelou como uma elaboração diferente do que você imaginava?
SM – Pode acontecer de um jeito ou de outro, nem sempre eu autorizo que um poema meu seja gravado com uma música que eu não concordo. Mas, em geral os meus parceiros fazem músicas que me agradam muito. Um poema, para virar canção, precisa ter ritmo interno que comporte a melodia, as tônicas têm que estar nos lugares certos, mesmo que seja um conjunto de palavras complexas como, normalmente, são as músicas do Caetano. De modo geral, tem que haver arejamento nos versos, na construção do texto, que possa ser cantável, que as pessoas possam memorizá-lo. Eu trabalho pondo a letra na melodia, como faço com Herman Torres, José Américo Bastos e Elton Medeiros. Já com Paulinho da Viola, Ivan Lins e Vital Farias eu faço a letra e eles musicam.
Demetrios – Sabendo que cada tempo tem suas novidades, o que tem chamado tua atenção no cenário literário contemporâneo?
SM – Quando eu comecei a escrever, a poesia brasileira estava entre dois parâmetros: a poética da tradição – os parnasianos, que ainda perduravam nos estados mais afastados, como Maranhão e Piauí – os sonetistas. Eu próprio aprendi muito com os praticantes dessa tradição e, claro, com os poetas mais modernos, que me ensinaram a técnica do verso. Alguns poetas da minha geração, por não terem passado por essa vivência, nunca aprenderam, verdadeiramente o que é um verso. Muitos escrevem frases pensando que são versos e o elemento poético perde a força. A minha geração foi muito bombardeada por conceitos de vanguarda, que diziam: “isso é velho”, “o verso está morto”, etc. E eu me perguntava: será que eu estou fazendo o novo? Hoje os poetas têm mais facilidade em achar um caminho, porque houve um alargamento de possibilidades. Caíram as cercas dos conceitos estanques e tudo se mistura. Me impressiona a liberdade de fazer que se tem hoje. Maiakovski dizia que, ao fim de uma geração, de cem poetas sobram cinco. A quantidade aos poucos vai gerando a qualidade. É preciso que as pessoas estejam livres para fazer. Se houver talento o erro vira acerto. Mario de Andrade aconselhou Drummond a tirar os gerúndios, mas Vinicius os usou fartamente de maneira genial! E ai? Se você for genial pode fazer o que quiser. Se não houver verdadeiro talento, vai seguir regrinhas e vai pensar que tá inventando e tá se repetindo.
Wellington – A sua poesia tem uma preocupação social, aborda injustiça e desigualdades. Como você vê o Maranhão, governado por um comunista, num momento em que alguns setores falam em volta do governo militar?
SM – Para um poeta como eu, que vive da utopia, não tem governo que me satisfaça. Fui do PC do B, no Rio de Janeiro, quando eu era estudante e me inscrevi no PT desde a fundação. Sempre lutei contra ditaduras. Mas entendo que as gerações precisam ser ensinadas permanentemente, os que não viveram os momentos mais sofridos, esquecem. No período da ditadura nós jamais poderíamos fazer uma reunião como essa aqui! Eu morei numa casa de estudantes, no Rio, e nós desconfiávamos dos nossos próprios companheiros o tempo todo. Cabe a quem viveu fazer o papel da pedagogia permanente. Hoje meu único partido é a poesia.
Wellington – Você acha que nossos governantes têm tratado bem nossos autores?
SM – Os governos de direita ou esquerda não demonstram nenhum interesse pela literatura. O que mudou, nos últimos tempos foram as possibilidades de produção, está mais fácil para um escritor publicar seus trabalhos, pelo desenvolvimento dos meios, das técnicas de impressão, mas os governos ainda não compreendem bem o papel social da literatura. Aqui no Piauí, particularmente, tudo é feito com a mais absoluta dificuldade. Está aí o professor Cineas Santos que não nos deixa mentir, há 50 anos faz cultura nesta terra dando murro em ponta de faca. O que eu vi no primeiro mundo é incrível: eles querem os seus melhores e o melhor dos outros. Investem em coisas que não tem nenhum retorno imediato. E quando se avalia o ranking das maiores invenções do mundo, quem é que está lá? São sempre eles. Eles inventam, vendem para nós, que somos só os leitores de bula, comprando o que os outros fazem. Nós não investimos em cabeças pensantes, qualquer que seja a área. Nas universidades americanas há professores que vivem de resenhar livros de autores brasileiros para a Biblioteca do Congresso Americano. Eles querem saber que tipo de poesia estamos escrevendo. Mas aqui, institucionalmente falando, nós não damos a mínima para a poesia.
Wellington – Você tem sonho de pertencer a Academia Brasileira de Letras?
SM – Se me desejarem lá – e esse desejo não é de fora para dentro, mas de dentro para fora – eu posso pensar nisso. Mas nesse momento a única coisa que me move é escrever a melhor poesia que eu puder. Quanto a ir para a Academia eu acho que é uma consequência da minha afirmação na literatura. Há certos momentos em que alguns nomes estão maduros, preenchem certo equilíbrio na Casa, aí eles chamam. Muita gente se candidata sem esperar esse “time”, e aí não funciona, mesmo para pessoas que mereceriam estar lá.
André – Em matéria recente do Jornal O Globo, a repórter diz que você é vaidoso e não revela a idade. Por quê?
SM – Eu sou de novembro de 1953, então é só somar (risos). Eu nem sei a idade que eu tenho, porque nem sei de fato se sou de 1953. Como fui eu quem me registrei aos 16 anos, em Caxias (Maranhão), aumentei minha idade. Eu precisava trabalhar e ganhar dinheiro como adulto. Quando fui me alistar no Exército pesava menos que um bode, 42 quilos. Era tão pequeno que um Capitão disse: “esse aí não aguenta nem um fuzil”. Mas não tem a menor importância, podem botar a idade que vocês quiserem.
Wellington – O Salgado poeta nos parece uma pessoa realizada, ainda que a vida de um poeta nunca esteja completa, né? E na vida amorosa, você se sente realizado?
SM – Eu sou guloso por crescimento pessoal, sou muito inquieto, nunca me sinto realizado. Sempre acho que estou atrasado para coisas que eu ainda quero fazer. Eu penso: “meu Deus, eu podia tá fazendo muito mais!”. No amor, tenho amado bastante, fui casado mais de uma vez, tenho um filho (de 25 anos, que estuda engenharia elétrica e toca sax) e sou um eterno apaixonado. Sou como Vinicius: gosto de estar apaixonado, porque estando apaixonado a poesia monta em mim, eu escrevo muito. Certa vez comecei a escrever um livro num momento de separação e fui a Paris, muito triste, soterrado de poesia. Lá conheci uma francesa linda, me apaixonei e escrevi “A Pelagem da Tigra”. Eu andava na Champs Élysées e os poemas caíam na minha cabeça. Às vezes, o que não dá certo, dá poesia, porque o sofrimento nos estica a sensibilidade, nos põe de cara com o absoluto, e a poesia gosta disso. Aquele que não sofreu, vai dizer o que da vida?
Samária – Do que você sente saudade?
SM – De mim mesmo, de tanta coisa que eu nem sei o quê. Às vezes, de coisas tão sofridas de minha infância no interior do Maranhão. Não pensem que o sofrimento não lhe possa deixar saudades, porque, estranhamente, a gente sente saudades de tudo que viveu com intensidade. Eu sinto saudades de coisas em épocas quando não havia nenhuma possibilidade de esperança. Até os meus 15 anos, eu nunca tinha visto sequer um automóvel, morando a uma hora de Caxias. Minha comunidade vivia num obscurantismo medieval. Tinham coisas boas, como os cantadores repentistas, por exemplo, as danças populares e também coisas muito difíceis como a falta de acesso à educação escolar e à vida moderna. Às vezes, eu tenho saudades das noites sem luz elétrica, do luar, dos vagalumes, dos campos de arroz maduro, amarelinhos: quando o arroz tá maduro tem um aroma maravilhoso! Eu digo num poema: “passei a infância correndo atrás do sol, pés descalços pelos matagais, por entre cascavéis e beija-flores. Cedo aprendi o milagre das sementes: minha mãe abria a terra e eu semeava os milharais, os campos de arroz e as colheitas. Vim crescendo com a sarça hostil, sobre a memória de crânios sem nome. Quanto à poesia, foi se alojando aos poucos nos latifúndios do coração, e se tenho as mãos especializadas na confeitaria das palavras, vem da herança natural do ofício de criar e engravidar as plantas” (Autorretrato). Eu sinto saudades dessa relação com a natureza. Isto está dentro de mim e faz diferença na minha sintaxe. Quando eu corro para escrever um poema, todo esse inconsciente de um mundo extraordinário e mítico – que eu vivi em “Macondo” – vem para minha poesia. A torteza da minha sintaxe vem dessa vivência. É importante que o poeta tenha um tanque de palavras inaugurais, um fundo de poço de onde possa tirar suas esquisitices extraordinárias.
Demetrios – Isso me lembra uma questão: na última década uma certa estética que ganhou uma dimensão forte propõe tirar o “eu”, o autor do texto. Essa perspectiva é também a ideia de tirar o sentimento do texto. O que você acha disso?
SM – Isso é fórmula. A poesia ama formas e odeia fórmulas. Toda vez que você cria uma fórmula ela já se esgotou em si mesma. Todo poeta é um grito, um jeito de fazer. Os conceitos que preconizaram padrões estanques, como tirar o sentimento do texto, com o tempo se mostraram redutores e as pessoas perderam o interesse. A arte é feita para ser consumida pelas pessoas, e as pessoas têm sentimentos. Discuto muito essas coisas com Carlos Dimuro que, além de curador da minha obra, é um excelente poeta. O que funciona na construção não é o seco, mas o úmido. Se você põe tijolo sobre tijolo, mas não coloca argamassa no meio, não cola. O problema é que as pessoas passam do ponto, né? Mas isso também não pode ser fórmula. Se você achar um jeito de fazer diferente e ficar belo, vira estilo.
Demetrios – Se ficar de pé? … (risos)
SM – Sim! Aí você diz: “Olha aí: sem argamassa também funciona!”. Na época de João Cabral de Melo Neto, todo mundo queria ser João Cabral, mas só sobrou ele. Todo mundo queria ser Drummond, e só sobrou Drummond. Cada poeta é uma forma.
(Publicada na edição #19, maio/jun de 2015)