img_0369-copia“O que vocês vão fazer com essa sumidade?”. A pergunta vem da simpática senhora que chega quando nos apresentamos na portaria do prédio onde mora Ferreira Gullar. O poeta, crítico de arte e cronista vive ali desde 1979. A esquina, a uma quadra da praia, é movimentada. O térreo é ocupado por lojas variadas: meias, móveis usados, freezers e uma pequena lanchonete que vende açaí. “É uma honra morar no mesmo prédio que ele” – continua a senhora – “Digam que a Vovó Leda, do 606, mandou um abraço”. A simpatia da Vovó Leda dissipa uma certa apreensão que nos acompanhava.

Ferreira Gullar mora sozinho. É ele mesmo quem abre a porta para nos receber. Assim como era a sua voz grave e objetiva nas ligações que fizemos. A diarista Maria das Dores cuida da casa do escritor apenas duas vezes por semana. Somente para despachá-la ele interrompe cerca de duas horas de conversa conosco. Gullar namora a poeta Cláudia Ahimsa, 34 anos mais jovem, a quem se refere como “minha companheira”. Moram em apartamentos separados, ele em Copacabana e ela no Flamengo. Conheceram-se na feira de livros de Frankfurt, Alemanha, numa época em que Gullar andava desanimado com as perdas contabilizadas: a morte da mulher, a atriz Thereza Aragão; a morte do filho caçula Marcos e a doença de outro filho, Paulo – como Marcos, com esquizofrenia. Por Cláudia apaixonou-se instantaneamente, embora não seja dado a grandes demonstrações. “Ela é mais poeta que eu” – afirma, garantindo que consegue manter a isenção crítica.

Gullar já não viaja de avião, por isso está há quase uma década sem ir ao Maranhão, onde moram seis dos seus 11 irmãos. Conta que, no dia seguinte à entrevista, véspera do Natal, sua filha Luciana vai chegar de São Paulo, onde vive, e a casa estará cheia de netos e bisnetos. Luciana tem oito filhos que já deram sete bisnetos a Gullar.

Aliás, é a chegada de tanta gente e a data – próxima ao Natal – que nos botou apreensivos sobre a realização da entrevista previamente combinada. Apenas uma hora e meia antes de estarmos ali, almoçávamos tranquilamente em Copacabana quando resolvemos ligar e combinar o dia em que seríamos atendidos. “Não sei, amanhã é véspera de Natal, depois é Natal…” – argumentou Gullar. “Então hoje!” – afirmamos. E ele: “Hoje? Mas que horas?…”. “Daqui a uma hora e meia”. “Daqui a uma hora e meia são quatro horas…”. “Combinado: quatro horas estamos aí. Obrigada”. E desligamos. Os momentos seguintes passaram em modo speed: pagar a conta do almoço – chamar o táxi – correr até o hotel no Flamengo – pegar o gravador – chamar outro táxi – voltar pra Copacabana – conferir na agenda as perguntas formuladas há cerca de um mês – esquecer a agenda no táxi. Ops! Só nos apercebemos deste último ponto com a pergunta de Vovó Leda: “O que vocês vão fazer com essa sumidade?”.

A crítica foi substituída por “notas na coluna”. Então se diz qualquer coisa, porque não se tem responsabilidade alguma com o que está sendo dito

Ao longo da vida, nem todos consideraram a presença de Gullar motivo de tanta honra quanto a sua vizinha de Copacabana. Ainda em São Luís, ele escrevia poemas, trabalhava em jornal e era locutor de rádio. Após presenciar o assassinato de um operário pela polícia, durante um comício de Adhemar de Barros, Gullar se nega a ler, em seu programa de rádio, uma nota que aponta os “comunistas” como responsáveis pelo ocorrido. Foi demitido. Um ano depois, em 1951, tinha 21 anos e estava no Rio de Janeiro, onde continua a escrever poemas, trabalha como revisor de revistas como O Cruzeiro e depois como crítico de arte do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Aproxima-se dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari, com quem investiga a arte concreta, rompendo depois com este movimento e lançando o manifesto neo-concreto, ao lado de nomes como Lygia Pape, Lygia Clark e Amilcar de Castro.

No início dos anos 60, revê sua postura poética, até então influenciada pelo experimentalismo, e passa a não participar de movimentos de vanguarda. Mais tarde torna-se crítico de muitos deles. Escreve ensaios, peças de teatro, dedica-se à pintura – embora sempre a considere um hobby. Filia-se ao Partido Comunista e, no início dos anos 70, com a ditadura militar, parte para o exílio e mora na Rússia, Chile, Peru e Argentina. Em Buenos Aires, dá aulas de português para sobreviver. O “Poema Sujo”, escrito na capital argentina, chega ao Brasil em 1975, antes de seu autor, através de Vinicius de Moraes, que promove sessões para que intelectuais e jornalistas ouçam o texto gravado em fita cassete. Em 77 Gullar volta ao Rio. É preso e interrogado por 72 horas. Depois disso é absolvido. A convite do amigo Dias Gomes, e em parceria com este, escreve episódios para séries da TV Globo, como As noivas de Copacabana e Carga Pesada (primeira versão).

Gullar não só tem opinião, e fala abertamente sobre ela, como muda de opinião e defende seus novos pontos de vista. “Eu passei a minha vida quase toda sendo comunista. Mas voltei a pensar e vi que tava errado”.

O escritor é ainda tradutor para o alemão, espanhol e inglês. E é reconhecido através de numerosos prêmios, entre eles uma indicação ao Nobel de Literatura, em 2002, e, em 2010, recebe o Prêmio Luís de Camões, a mais importante premiação literária de Língua Portuguesa. Ainda assim diz que sua obra poética não é vasta: “todos os meus poemas caberiam num livro de 600 páginas”.

Hoje tem uma vida tranquila e é pouco dado a badalações. Gosta de ir ao cinema e de visitar exposições na companhia de Cláudia. Aprecia ficar em casa, um bom apartamento, entulhado de pequenos objetos: esculturas, lembranças de viagens e de amigos, caixas cheias de envelopes e velhos recortes de revistas – a maioria ele usa para fazer colagens, que mostra com entusiasmo. Nas paredes, obras de grandes artistas, como Iberê Camargo, Alfredo Volpi, rascunhos de Oscar Niemeyer. “Eu vou me misturando aqui”, revela sua estratégia. Quadros e móbiles – uma dezena pendendo do teto – criados por Ferreira Gullar decoram o ambiente.

Maranhense, nascido José Ribamar Ferreira, ele adotou o sobrenome da mãe e vive há mais tempo no Rio de Janeiro. Aos 83 anos, escreve aos domingos para a Folha de São Paulo, participa de palestras concorridas e está com vários livros reeditados (alguns na 19ª edição). Gullar recebe Revestrés em seu apartamento, onde aceita o risco de continuar opinando: diz que vivemos uma farsa – das artes de vanguarda à política-, duvida de quem escreve poemas com facilidade, compara capitalistas a artistas e garante que não se pode fazer arte como quem faz um embrulho. “Eu digo as coisas que têm que ser ditas”.

Conversa conosco numa ampla mesa de madeira, cercada por oito cadeiras. Fala também com as mãos, ora arrumando o característico cabelo chanel, ora como se contasse para cada sílaba um toque com a ponta dos dedos sobre a mesa. Na sala ao lado, quatro sofás cobertos com plástico bolha. O ponto mais iluminado da sala é próximo a janela, onde está a cadeira de balanço cercada de edições recentes dos jornais O Globo e Folha de São Paulo, reveladoras do uso frequente deste espaço.

“Podemos começar” – ele avisa, educado, indicando as cadeiras onde devemos sentar, em volta da mesa.  É quando lembramos novamente da agenda que se foi no táxi.

Samária – O seu trabalho é muito conhecido na poesia e na crítica. Como você vê a crítica literária hoje?

Ferreira Gullar – Praticamente não existe, né?  Antigamente todos os suplementos culturais tinham um texto crítico de um grande nome, um Otto Maria Carpeaux, um Álvaro Lins. Eles escolhiam as obras ou autores que achavam representativos e comentavam. Hoje existe a critica acadêmica, estudos feitos nas universidades, mas a crítica literária  na imprensa não existe.

Novela não é dramaturgia de qualidade. Todos os autores sabem disso. Eles não dizem porque… Ah, quando eu era telenovelista da Globo eu também não dizia (risos)

 André – E qual o significado dessa ausência de crítica? Isso pode repercutir na produção literária atual?

FG – Eu não sei avaliar objetivamente isso, mas sei que os jovens poetas sentem a falta de uma resposta sobre o que eles fazem. Eles têm que saber: “o que eu escrevi tem importância? Vale alguma coisa?”. E hoje não há essa avaliação. Claro que o autor tem o seu juízo crítico a respeito do que faz, ele não depende só da crítica. Mas é estimulante que ele veja que seu trabalho teve alguma repercussão. Do jeito que está se torna até difícil pro cara continuar. É claro que aqueles que são poetas, que nasceram poetas, continuam de qualquer maneira, mas acho lamentável que não haja crítica

Samária – Por outro lado, em paralelo a essa ausência de crítica, percebe-se um movimento de promoção de alguns autores e obras. Na novela das 8, por exemplo, quase todo capítulo tem a inserção de alguém lendo um livro e comentando positivamente.

FG – A crítica foi substituída por “notas na coluna”. Então se diz qualquer coisa, porque não se tem responsabilidade alguma com o que está sendo dito. Aí tem reportagens, matérias, entrevistas, tudo pra promover o livro, o filme. Eu não vejo novela, mas minha companheira comentou sobre a oferta de livros. É estranho, até porque eles não falam dos poetas mais notáveis. Alguns dos que são citados têm qualidade, outros nem têm. É tudo gente que quer entrar pra Academia (risos; refere-se à Academia Brasileira de Letras).

Wellington – Ao contrário da maioria dos escritores nacionais, que almejam uma vaga na Academia Brasileira de Letras, você parece não ter essa ambição.

FG – Parece não. Eu não tenho. Fui convidado umas vinte vezes. Então não se trata de aparentar. Eu tenho muitos amigos na Academia e acho, inclusive, que hoje ela desempenha um papel mais aberto, com um diálogo maior com a pessoa interessada em literatura. Mas fazer parte da Academia não é do meu feitio, compreende?  E não é que eu ache que a Academia não merece a minha presença. Eu fico até constrangido, fica parecendo que eu sou arrogante, porque todo ano eles me convidam e eu recuso, mas ser acadêmico é uma coisa que não assina muito comigo.

img_0235-copia

André – Sobre as novelas, o senhor já escreveu para televisão, redigindo para a dramaturgia da Globo. Não pretende retornar a esse formato?

FG – Outro dia um jornalista escreveu que dizer que novela não é literatura, é elitismo. Mas novela não é dramaturgia de qualidade, todo mundo sabe! Uma boa peça de teatro dura uma hora e meia. Não existe dramaturgia que resista ao tempo que as novelas duram. Novela é divertido, mas é uma bobajada, uma incoerência.  A verdade é que ninguém que escreve novela quer continuar. Todos preferem fazer minissérie. Na novela você é prisioneiro de um gênero que tem que desenvolver, com ou sem assunto. Se eu escrevo uma minissérie eu sei quantos capítulos tem, sei como organizar a história, como terminar, mas uma novela é imprevisível. Só se eu for Deus pra saber o que vai acontecer no capítulo 280, né? (risos). Em dramaturgia existe uma norma: nenhuma cena pode ser feita sem conduzir à ação. Ou seja: eu só faço uma cena de duas pessoas conversando se isso faz com que a história avance. E na novela só o que tem é duas pessoas conversando à toa! A novela é feita pra ganhar dinheiro, não tem compromisso com a qualidade. Todos os autores sabem disso. Eles não dizem porque… ah, quando eu era telenovelista da Globo eu também não dizia (risos).

Samária – O senhor é um poeta que passa anos sem publicar um novo livro. Como é, para o senhor, escrever poesia?

FG – Artigo de jornal eu faço a hora que eu quero. Mas uma coisa é escrever crítica, outra é escrever poema. Poesia eu não escrevo quando quero. Pra escrever poesia eu tenho que estar num estado especial. Eu sempre digo: a poesia nasce do espanto. Pode ser algo do cotidiano, mas alguma coisa me chama a atenção, se revela para mim; algo que eu não conhecia, e que me comove. A partir daí eu entro num estado que me possibilita escrever. Agora, a frio, decidir assim: “hoje eu vou escrever um poema” (fala imitando vozes)… Assim sai bobagem. Eu custo a escrever poemas e, consequentemente, até reunir um número que dê um livro, passam-se 10, 12 anos, como já ocorreu. Publiquei meu último livro de poemas em 2010 e até hoje não escrevi poema algum. São três anos, já! (enfatiza, batendo com os dedos na mesa). E eu não escrevi nada e talvez nem volte a escrever. Eu não sei, não depende de mim.

André – O senhor percebe alguma transformação na sua poesia de quando começou a escrever para hoje?

FG – Minha poesia tem uma continuidade interna. Algumas preocupações permanecem, mas a maneira como isso é formulado mudou. Talvez eu seja o poeta que mais mudou em sua carreira, mas ao mesmo tempo meu ponto de vista tem uma continuidade, algumas indagações que são permanentes. O meu último livro, no fundo, indaga as mesmas coisas que o primeiro, só que é formulado de uma outra maneira.

Wellington – Pra que serve a poesia?

FG – As pessoas costumam dizer que a poesia, a arte, a literatura, revelam a realidade. Eu digo que não: elas não revelam, inventam. As pessoas dizem que a arte revela a realidade porque a vida é pouca, a vida não basta. É por isso que a arte existe. Como a vida não basta, o cara vai inventando coisas pra ela ficar mais bonita, mais interessante. O homem precisa de arte pra viver, pra ser mais feliz. Você lê um poema do Drummond e ele te comove, te mostra que a vida tem uma riqueza que você desconhecia, e isso te enriquece. Arte é pra isso.

Publiquei meu último livro de poemas em 2010 e até hoje não escrevi poema algum. São três anos, já! E eu não escrevi nada e talvez nem volte a escrever.

Samária – O senhor tem uma relação um tanto conturbada com alguns artistas de vanguarda, já fez críticas a artistas como Marina Abramovic… (considerada uma das pioneiras da arte com performance e ficou popularmente conhecida quando, em 2010, o  Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA, promoveu a exposição “A artista está presente”).

FG – Aquilo que ela faz é uma bobagem, né? Você acha sinceramente que casais nus no Museu é obra de arte? É claro que isso não é arte! (refere-se a “Imponderabilia”, encenado pela primeira vez pela própria Marina Abramovic em 1977. Nesta performance, um casal nu, de frente para o outro, impede a passagem por outro caminho, fazendo com que os visitantes da exposição passem entre os dois).  E tem outra coisa: se os casais nus estiverem no quarto não é arte. Pra ser arte tem que estar no museu. Então é a instituição que transforma essa bravata em obra de arte? A inovação, a rebeldia, é contra a instituição, né? E essa é uma rebeldia que precisa da instituição pra se legitimar? Então esse trabalho é uma bobagem. Perguntaram pra ela o porquê desse trabalho e ela disse: “é pra constranger as pessoas” (bate na mesa com os dedos, demonstrando irritação). E essa é a finalidade da arte? Constranger as pessoas?! Tem também aquele outro que mandou urubu pra Bienal. O que ele quer? Ser rebelde? (refere-se à polêmica obra “Bandeira Branca”, de Nuno Ramos, com três urubus vivos, exposta na Bienal de São Paulo de 2010). É gozado: quer ser rebelde na instituição, porque se ele mandar urubu pro mercado não é obra de arte! Qual o objetivo? É dizer que a arte não tem sentido? Então ele que pare de fazer, ué. Em compensação tem uma artista contemporânea chamada Yayoi Kusama que cria coisas deslumbrantes. Ela tem uma linguagem própria, é criativa, e o objetivo dela não é constranger nem humilhar ninguém. É deslumbrar!

André – E como pensar sobre artistas conceituais como Marcel Duchamp, que, com trabalhos como “A Fonte”, ficou conhecido e é até hoje citado? (Duchamp criou o conceito de ready made – está feito, que se trata do transporte de um elemento a princípio não artístico para o campo das artes. “A Fonte” é um vaso sanitário que Duchamp enviou para uma seleção de obras a serem julgadas num concurso de arte promovido nos Estados Unidos, com a assinatura “R. Mutt” – nome da fábrica que produziu o urinol. Em tempo: a peça foi recusada).

FG– Quando ele pegou aquele urinol e mandou para uma exposição, aquilo foi uma atitude de rebeldia. Isso tinha a ver com o momento em que a indústria invadia a sociedade e se impunha como o novo caminho da vida social. Então o artesanato, a coisa feita à mão, aparentemente perdia o sentido. E a pintura é uma coisa artesanal! Então parecia que a pintura era uma coisa velha. A nova idade era a idade da indústria, da máquina. Eu li uma matéria que contava que Duchamp visitou uma exposição da indústria naval em Paris e ficou encantado com uma hélice de navio enorme – e uma hélice é uma coisa linda, uma escultura! Então ele ficou olhando aquilo e perguntou ao Brancusi – que era escultor – “você é capaz de fazer uma escultura como essa?”. E Brancusi nem ligou pra pergunta e foi embora. Eu acho que ali nasceu o ready made. Eu não vi nenhum crítico europeu falar da importância que esse fato teve, mas acho que ali Duchamp colocou o problema: isso não foi feito por artista, é produto da indústria e é tão belo quanto uma obra de arte. Quando ele mandou o urinol para a exposição, isso tinha uma ironia, porque o urinol é uma coisa depreciativa. Isso é uma grande piada do Duchamp.  Só que, enquanto ele fazia essas piadas, também tava fazendo uma obra chamada “O Grande Vidro”, que demorou oito anos pra ficar pronto. Então “já tá feito” e levou oito anos?! Ele fez mais alguns ready mades, mas não é isso que constitui a obra dele. Isso é um caminho irônico que ele assumiu. Só que depois virou moda as outras pessoas fazerem aquilo, porque é fácil, não precisa fazer nada. Ele próprio disse nessa época: “tudo o que eu disser que é arte, será arte” (risos). O pessoal pega o lado irônico e assume como o verdadeiro caminho da arte. No fundo há um espírito antiarte nisso, como se arte fosse uma coisa velha, ultrapassada, então precisa inventar alguma coisa nova.

As pessoas vivem de mentira, é tudo hipocrisia, uma cretinice. Todo mundo quer ser libertário, aberto. Já reparou que não existe mais opinião? Tudo é preconceito

André – Alguns dos trabalhos de vanguarda vêm acompanhados por discursos que ajudam a interpretar essas obras. Quando as pessoas têm acesso a esse discurso, isso não facilita algumas interpretações?

FG – Esses trabalhos são acompanhados por discursos porque ninguém entende o que sejam. Ontem eu fui ao Paço Imperial e lá tem uma exposição: uma máquina tosca, barulhenta, feia, uma coisa sem capricho algum, com uns tubos de plástico que murcham e enchem de ar. E daí? Isso é uma bobagem! (refere-se à exposição Evento, de Mariana Manhães). E tem um texto que diz “Evento”, se tirar o “e” fica “vento”. Que coisa inteligente hein, cara? (risos). É só um jogo de palavras, uma perda de tempo.

Samária – O senhor acha que algumas pessoas ficam constrangidas em afirmar que não compreendem certas obras contemporâneas?

FG – Sim, porque nós vivemos numa época em que todo mundo é de vanguarda. No passado, todo mundo desconfiava da novidade. Hoje quem desconfia da novidade tá desclassificado. O próprio museu tem que aceitar a novidade. Por isso ele se chama “Museu de Arte Moderna” (arrasta as palavras). Se ele não aceitar o casal nu, deixa de ser moderno. E o diretor do museu também tem que ser moderno. É tudo uma mentirada, tudo uma grande farsa. Enquanto isso, os verdadeiros artistas continuam fazendo arte de qualidade. Mas vocês repararam que essa vanguarda exasperada só acontece nas artes plásticas? Houve vanguarda em todos os gêneros no começo do século XX – na literatura, cinema, teatro, música – e a vanguarda enriqueceu as artes, porque a vanguarda é uma coisa positiva (enfatiza a última palavra). Mas sucede que nas artes plásticas ela foi levada a um nível que está destruindo tudo: a linguagem, o sentido estético. Por que só nas artes plásticas? Essa é uma pergunta que precisava ser respondida.

Samária – Por que só nas artes plásticas?

FG – Eu acho que é culpa das bienais. Quando vi a segunda Bienal de São Paulo eu perguntei: ué, e quando vier a terceira? Nêgo vai produzir obras pra encher todas essas salas?! São centenas de obras! Mas obra de arte não se produz assim, entende? Um cara como o Iberê (Camargo) pra pintar um quadro era um sofrimento, e uma alegria, e uma paixão! Não era uma coisa feita como se faz um embrulho. O resultado é que para manter as bienais se faz uma arte sem nenhuma reflexão, uma invencionice. As bienais se transformaram no centro de propagação dessa linguagem. Todo artista cria sua obra e aquilo é importante pra vida dele. Porque arte você faz da melhor maneira, o artista procura dar o melhor de si. Ninguém quer fazer uma obra pra ser abandonada no dia seguinte.  E na Bienal o cara faz um troço que só vale ali e acabou! Isso ainda se mantém um pouco pela mídia, mas tá no fim.

img_0333-copia

André – O seu processo de criação exige um certo tempo. No dias atuais, povoados de  instantaneidade, internet, onde tudo parece que tem que ser resolvido em instantes – com esse ritmo é possível fazer boa poesia?

FG – Eu duvido que se faça boa poesia às pressas ou dessa maneira que você descreveu aí. Internet serve para uma série de coisas, mas não pra poesia. Poesia não se faz assim, arte não se faz assim. É uma coisa que requer reflexão e descoberta. E isso leva tempo.

Samária – O senhor defende que a obra de arte exige elaboração do autor. O senhor sofre pra escrever poesia?

FG – Não. Esse negócio de que arte é sofrimento é bobagem. Mesmo quando o cara escreve sobre uma coisa dolorida o ato de escrever transforma o dolorido em alegria: a alegria estética. Alguns poemas, peças de teatro, romances, são mais espontâneos, outros exigem mais e você tem que ter uma trabalheira, né? Mas você tem prazer. Ninguém mandou você fazer aquilo! (risos).

Samária – O crítico muitas vezes é tido como um chato. Para ser crítico é preciso ser corajoso?

FG – Dizer as coisas que têm que ser ditas é perigoso. As pessoas ficam furiosas porque eu digo o que tem que ser dito. O Chico Buarque, que é uma pessoa talentosa, maravilhosa, ele elogia Cuba, mas não quer morar lá. No Brasil o Chico publica o livro que quer, faz a poesia que quer, canta a canção que quer, fala mal do governo – um cara que faz tudo isso não vai querer morar num país onde não se faz nada disso, né? Então é mentira. É a mesma coisa do esquerdismo. O cara não tem coragem de dizer que Cuba é uma ditadura. Era um sonho maravilhoso e não deu certo. Eu passei a minha vida quase toda sendo comunista, fui preso, mas voltei a pensar e vi que tava errado. O propósito de Cuba é o melhor e mais generoso possível: querer a sociedade justa. Só que tá provado que o caminho não é esse e as pessoas não têm coragem de dizer.  As pessoas vivem de mentira, é tudo hipocrisia, uma cretinice. Todo mundo quer ser libertário, aberto. Já reparou que não existe mais opinião? Tudo é preconceito. Qualquer opinião que contraria o que está estabelecido é preconceito.

André – O senhor já declarou que o capitalismo é invencível. Por que?

FG – Por que a China virou capitalista? Porque viu que era a saída! Nesse momento há um milhão de pessoas inventando pequenas empresas, médias empresas – isso é o capitalismo. Ninguém pode com isso. Agora, o capitalismo é o regime da exploração, do lucro máximo. Os Estados Unidos são um país riquíssimo e continua a explorar o trabalhador de uma maneira vergonhosa! É terrível, mas o capitalismo é isso! E mais: ele é produtivo porque segue a ambição humana, que não tem limite. Então a iniciativa individual pode criar riquezas sem parar, e isso é bom. Agora o que não pode é desabar para a exploração. Esse é o problema: não querer dividir com o outro, querer levar vantagem, não ter limites. O problema não é o capitalista, é o capitalismo.

Você acha que casais nus no Museu é obra de arte? É claro que isso não é arte. E tem outra coisa: pra ser arte tem que estar no museu? Então é a instituição que transforma essa bravata em obra de arte?

Samária – E na prática é possível separar o capitalista e o capitalismo?

FG – É preciso compreender que ser um empreendedor é um talento. Assim como o cara nasce poeta, jogador de futebol, ele nasce empresário. Não é todo mundo que é empresário. Um empresário é um criador de riqueza, é um criativo! Um dos erros de Marx foi dizer que o patrão só explora e quem produz é o trabalhador. Não é verdade. Sem o patrão não existe o trabalho, sem a empresa não existe o trabalhador, os dois criam a riqueza. É uma coisa dialética e os dois têm peso indiscutível. A vida é mais complicada do que a gente gostaria.

André – O senhor diz que o capitalismo é invencível, que está ligado aos instintos humanos, mas ao mesmo tempo reconhece que esse é o regime da exploração. O senhor vê saída nisso?

FG – Veja só: o Bill Gates, que ganha milhões e milhões de dólares, pegou o dinheiro dele e investiu numa instituição para tratar crianças com AIDS. Ele chamou outros empresários e espalhou essa instituição por vários países. Fez isso porque percebeu que não tem sentido ganhar dinheiro sem limite. Se eu tenho um bilhão no banco, vou comprar o que: 300 automóveis? 200 apartamentos? Não tem sentido! O sentido da vida é ajudar as pessoas, é dar dinheiro pra saúde, educação. Então, quando Bill Gates faz isso, ajuda as pessoas a tomarem consciência. E isso não é ficar inventando que o socialismo vai continuar. Ele já acabou.

Wellington – Tendo sido comunista e perseguido pelo regime militar brasileiro, algumas de suas opiniões mais recentes geram certa controvérsia. O que o senhor pensa sobre isso?

FG – Eu sou insultado na internet todos os dias. Eu nem leio, porque não fico procurando isso. Mas tem quem elogie também.

Samária – Como o senhor se define político-ideologicamente?

FG – Eu sou a favor da sociedade justa, acho a desigualdade social inaceitável. Mas, apesar disso, não acredito que vamos chegar numa sociedade em que todos ganhem a mesma coisa e tenham as mesmas posses. Isso é contra a natureza humana. Existe a ambição e existe outro fator: as pessoas são diferentes. Então acredito que sempre haverá desigualdade. Você não pode achar que o Bill Gates deva ganhar a mesma coisa que o cara que conserta computador. Uma coisa é eu ser um jogador de pelada, outra é ser Ronaldinho. Você não pode nivelar a sociedade por baixo. Agora, também não é justo que um ganhe um milhão por hora e outro quase nada. Torço para que essa desigualdade seja corrigida o tanto quanto possível.

André – Como você vê a situação do poeta, do escritor, que, segundo a imagem mais romântica, é despreocupado com questões econômicas ou, pelo menos, mais distante desse lado de ambição do capital?

FG – Eu sou poeta e não sou isso que você tá dizendo. Eu tô demonstrando aqui (fala com ênfase). E não é verdade que poeta seja desligado. Drummond não era uma pessoa desligada da realidade, tão pouco Bandeira, Vinicius, João Cabral. E o poeta não é obrigado a fazer poesia política, inclusive tem que tomar cuidado porque em geral sai ruim. Eu mesmo já fiz alguns poemas por razões políticas, ideológicas, pra ajudar isso e aquilo, e esses poemas não são bons.

O Chico Buarque, que é uma pessoa talentosa, maravilhosa, ele elogia Cuba, mas não quer morar lá.

Wellington – Vivendo há tanto tempo no Rio de Janeiro, o que ficou do Maranhão na sua obra e que relação o senhor mantém com o estado?  E com o Piauí?

FG – É só ler o Poema Sujo e você vê que ele nasce da minha experiência em São Luís, da minha vida, infância, família, da cidade – tá tudo presente. Eu tenho uma ligação permanente com a cidade. São Luís é fundamental na minha vida e em meu trabalho. Teresina também está no Poema Sujo. Meu pai era comerciante ambulante e me levava até a capital do Piauí nas viagens dele. Então Teresina também faz parte de minhas vivências. Eu conheci Mário Faustino. Fomos colegas no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Eu fazia a página de artes plásticas e ele de poesia. Ele era uma pessoa muito inteligente, brilhante!

Wellington – De que forma o senhor reage ao ser considerado, entre críticos e leitores, o maior poeta brasileiro vivo?

FG – Eu escuto. Eu não digo isso, eu não acredito nisso e isso não faz parte de minhas preocupações. O que me importa é que pessoas leiam e se sintam comovidas, tocadas, enriquecidas pelo que eu escrevo. No começo a minha poesia era mais distante. Depois, com a própria idade, amadurecimento, os erros que cometi, tudo isso me ajudou a me aproximar mais das pessoas. Na rua algumas pessoas me abraçam, fazem declaração de admiração. E é reconfortante ver que o que eu tô fazendo tem algum sentido, porque o sentido nunca é a gente, é o outro.

Samária – E sobre as colagens, pinturas, relevos, que o senhor tem produzido, pretende expor esse seu lado para as pessoas?

FG – Uma coisa maluca, né? Eu nunca imaginei que ia fazer colagens em relevo. Eu não planejo nada. Eu só reconheço o que é bom e penso: “aquilo pode dar pé”. A vida é feita de acasos.

 

Trechos extraídos de Poema Sujo, escrito por Ferreira Gullar quando este estava no exílio, na Argentina, em 1975. O poema chegou ao Brasil antes do seu escritor, através de Vinicius de Moraes, que promovia sessões para que intelectuais e jornalistas ouvissem o texto gravado em fita cassete.

 

É impossível dizer

em quantas velocidades diferentes

se move uma cidade

a cada instante

(sem falar nos mortos

que voam para trás)

ou mesmo uma casa

onde a velocidade da cozinha

não é igual à da sala (aparentemente imóvel

nos seus jarros e bibelôs de porcelana)

/

a cidade está no homem

quase como a árvore voa

no pássaro que a deixa

 

A arte é a superação da banalidade”

No domingo seguinte à entrevista que concedeu a Revestrés, o texto de Ferreira Gullar na Folha de São Paulo, intitulado “Invenção da Alegria”, falava de duas exposições que ele cita na entrevista. Revestrés visitou as duas exposições e reproduz abaixo trechos da crítica publicada por Gullar.

Sobre a exposição “Evento”, de Mariana Manhães

Trata-se de uma instalação com máquinas que produzem vento e um tubo de plástico ora inflado pelo vento que a máquina produz, fazendo desagradável barulho. Não se percebe ali qualquer preocupação com beleza e acabamento; pelo contrário, a impressão é de algo improvisado, feito de qualquer modo.

Sobre a exposição “Obsessão Infinita”, de Yayoi Kusama

Arte pode ser também a invenção de linguagens novas ou inovadoras, que nos fascinam e encantam. Este é o caso de Yayoi Kusama, artista japonesa, que nos arrasta a um deslumbrante universo de cores, formas e luzes. (…) A sala de luzes, com centenas de lâmpadas que mudam de cor a cada momento, parece levar-nos a um passeio pelo espaço cósmico, fervilhante de estrelas.

O que significa isso? Não se sabe, mas não importa, não é preciso saber, uma vez que a obra é seu próprio significado. É que tudo tem expressão, seja um tubo de plástico, seja uma sala de luzes coloridas. O que distingue uma coisa da outra é a capacidade de nos deslumbrar que as formas tenham. Mostrar a banalidade é mostrar o óbvio. A arte é a superação da banalidade.

(Entrevista publicada na Revestrés#12)