Num artigo censurado de 13 de agosto de 1917, O relojoeiro, Antonio Gramsci chama atenção que não há uma diferença qualitativa entre a vida social cotidiana e a vida de exceção das revoluções tal como se apresentam. Diz que essa defasagem é meramente quantitativa. E que é a vida do pensamento que pode, de alguma maneira, substituir a inércia mental, a indiferença, e provocar a ausência do susto diante do fato novo porque pior do que está não pode ficar. Ele concebe a vida sempre como revolucionária e que, por isso, os caminhos podem ser ininterruptamente abertos. Assim, se há “uma convicção de melhora” é porque, de todos os modos, estamos diante de algo que é sobra. Essa radicalidade que se engendra entre invenção, imaginação e o real, sem perder de vista nenhum dos três, nem muito menos estabelecer quaisquer hierarquias, a partir daquilo que resta, invisível, é o lance, ao mesmo tempo, absurdamente estudado e imprevisto do trabalho de Eduardo Frota.  

O apontamento parte do prisma de uma ideia rigorosa com o fazer, inespecífico, tal como a vida, sempre em fagulha revolucionária e errante, que ele projeta em cada trabalho como uma disparidade orgânica do corpo em direção à lástima do abismo social brasileiro, por exemplo, e àquilo que vem da cultura, herança e legado: nunca quando a arte cria a ilusão de que pode sugerir algum debate ao mundo, mas sim quando a arte se debate no mundo e imagina a força de algum pensamento, este instante de perigo. Uma questão convicta e evidente no trabalho de Eduardo Frota tem a ver com a laceração do espaço, uma geografia de vibração política e não meramente cartográfica, logo, nem memória nem dimensão retiniana, mas sim a crise inoperosa da nossa condição frágil e minúscula, humana, até o que ainda se esboça como humanidade.  

Eduardo Frota e a manufatura de uma série de “caixas-poema”: uma genealogia de ‘volumes de vazio’ que se arremessa entre os usos críticos do objeto e da palavra.   

Desde seus imensos trabalhos, numa escala de corte invasiva – como Paisagens no Espaço [CCBB, SP, 2003] ou Intervenções Extensivas, em Vila Velha/Vitória [Museu da Vale, 2005]; os 14 cones na 25ª Bienal Internacional de São Paulo [2002] ou a 27ª Arco, Instituto Feria de Madrid [2008]; e, ainda, alguns trabalhos impressionantes,  como a intervenção no Torreão, em Porto Alegre [2000] e na Casa da Ribeira, em Natal [2003] –, até o horizonte formativo que desenvolveu no ateliê entre os anos 1990 e o começo dos anos 2000, com cerca de 18 a 20 pessoas operando entre composição de maquinário, elaboração de projetos, montagem e, principalmente, a expansão da ideia de ateliê como AULA, nos levam a ler as tentativas de dobradura que ele provoca na concretude e na materialidade de um sistema inócuo e vendido, o da “obra de arte”, que se sustenta insuportavelmente entre a aceitação e a conformidade dos jogos territorializados de uma precisa e corporativa negação do movimento e de uma repetitiva e sintomática opressão social domesticada.   

Contra essa ausência de agonia e estranheza, numa beira desequilibrada para escapar à domesticação, é que se pode entender a sua tomada de posição figurante – artista, mas só se como figurante –, que procura reinventar imparavelmente, o tempo inteiro, com as modulações de uma utopia irrecusável frente a um mundo impossível: só é possível alterar o mundo se suportamos o impossível de todo o peso que ele tem. E aqui, vale lembrar o avesso disso no dito firme de Pasolini: aquele que não suporta o peso do mundo que pretende modificar não passa de um cretino. Por isso, diante do caráter de intervenção na cultura e, assim, na história, é que Eduardo Frota – um estudioso até o infinito das circunstâncias de algum saber, quando nenhuma racionalidade toca a qualquer real, como aqueles antigos corpos trágicos que giravam em torno de um rissorgimento, mas agora com graça – arrisca o seu trabalho, no mínimo, como uma pequena revolução. E revolução, importante indicar, é um termo que vem dos movimentos astronômicos de corpos celestes ao redor de seus centros e extremos de gravitação; o deslocamento do termo para indicar a possibilidade de uma mudança nas estruturas políticas e culturais existentes na trama social da realidade nos coloca frente a um encontro entre o que existe e o que não existe AINDA. Assim, se figurante, Eduardo Frota é também, antes de tudo, um anartista, quando o trabalho é díspar, imaterial, descentrado e extremo, para imaginar a vida no que resta: o impossível AINDA existe.   

É uma vida do pensamento: com a vida e, muito, à vida. E para o pensamento: carne e osso, medula e arrebite, cabeça e serra, silêncio e sangue, nenhuma confissão e verticalidade irresoluta etc. O trabalho de Eduardo comparece como uma ferida incorporada que se expande através do convívio com o livro, numa nudez, um aberto, pensar a nu, quando o tempo à nossa frente ainda não é o futuro, mas definitivamente o campo de forças do presente. Primeiro, trabalho de um leitor, da palavra às pequenas coisas cifradas diante da mão, pode-se arriscar que é daí, desse gesto, que vêm as peças que faz; depois, trabalho de poeta, un hacedor anacronicamente deliberado, que traça linhas inconclusas e neutras – nem começo, nem fim, espirais – para decompor a arquitetura estruturada e institucionalizada em sua dimensão utilitária armando-lhe paradoxos e ambivalências. E isto tem a ver com a sua formação de arte-educador, concentrado em errar cientificamente até o erro furar a ciência e invadir os corpos com uma aprendizagem politicamente mais severa: fazer é também, fundamentalmente, para tudo e para nada 

Agora, numa espécie de recomposição do ateliê, quando há uma temporalidade de exceção, arremessa-se a um lugar que se desentranha do estudo, expansão da biblioteca e da experimentação – para o exercício e a insistência entre a imaginação e o real – do corpo que rejeita, sobremaneira, um trabalho insuspeito ou inequívoco, mesmo debaixo da terra arrasada que comprime a luta ou a possibilidade de se lutar livremente. Eduardo procura inventar furos nas zonas fechadas [isolamento, confinamento, quarentena etc.], dispersando, por exemplo, não só a predisposição de um circuito da arte que confirma a ideia de herança como praticamente vitalícia e, numa outra ponta, as chaves midiáticas do desserviço que muitas editoras lançam às redes sociais com “momentos diarinho” daqueles que, sabe-se lá como, percebem e entendem imediatamente o que está acontecendo ao nosso redor, mesmo que, ironicamente, apenas e somente a partir de seus próprios umbigos e mundinhos burgueses desfeitos. Eduardo, convicto ao contraponto, começa a produzir a manufatura de uma série de “caixas-poema”: quando o traçado em 3 dimensões reduz-se, numa relação de escala com a desmesura expansiva do que faz, à miniatura. Entra em cena uma “catalogação de fracassos” através de questões sócio-antropológicas brasileiras, numa re-exposição de restos, que em nada implica o uso dos materiais, como madeira e cola, mas muito mais apresentar uma genealogia de “volumes de vazio” que se arremessa entre os usos críticos do objeto e da palavra, do que se emprenha entre o objeto e a palavra, para a cultura e para o disparate de qualquer ideia de “nacional”.  

A série começa com uma caixa de letras soltas com a palavra poema em alto relevo, uma rememoração aos cegos e um desejo de carga, de peso: o poema é a coisa que é e o que toca ao animal, esferologia, ouriço e cangalha; o matulão com a palavra abraço, em amarelo “de existir triste, aguado”, uma sacola robusta de provisões que imprime-se sobre um real sem terra e sem mundo [e isto se estende desde as 2 exposições na Galeria Sem Título, em Fortaleza: Sobre o quadrado (2017)4 toras de eucalipto cruzando o espaço à altura do pescoço, faca só lâmina, e chão de brita, para retirar a forma absoluta e fascista do quadrado e atribuir-lhe num redesenho inúmeras elipses, instintos e imperfeição física; e Revolver a terra para semear heterotopias (2019), com 100 mudas de pau-brasil para que o público as plante em 27 caixotes com placas que anunciam as revoltas e desilusões de um país marcadamente desigual, bélico e desamparado, dos Tupinambás até as manifestações de 2013]; depois, um barco suspenso frente a uma estante de livros, um Pequod que ensina e aprende: os verdadeiros lugares nunca estão no mapa; depois, desequilíbrios entre linha e desalinha: nuvem, tempoespaçodúvidaintuição, anotações que a cada caixa se apontam a outras coisas, nem ciência nem mistério, e implodem a linha reta das caixas. Eduardo Frota sabe que as linhas retas produzidas indefinidamente num mesmo plano, em várias direções, não encontram uma à outra nem têm sentido nenhum, o que é cruel o que é paixão; e, por fim, a caixa-preta: imagem, que retoma a defasagem quantitativa de uma inércia mental, postulada apenas diante do visível e do possível, para enfrentá-la com alguma revolução, esta invisibilidade que se inscreve com um gesto radicalmente utópico: fazer no presente para nada e para reagir à dentes. 

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou Pasolini: retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa), Avião de Alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015), entre outros. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios (Lumme Editor).

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Publicado em Revestrés#46 (agosto/setembro de 2020) que, devido a pandemia, circula online e gratuita.

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