No bate-papo após a sessão do filme, a atriz Bárbara Santos interrompe as questões da plateia para apontar: cinco homens fizeram perguntas em sequência. Ela agora queria ouvir uma voz de mulher.
Bárbara faz a personagem Filomena em A Vida Invisível. Ela estava nos Cinemas Teresina, na capital do Piauí, ao lado de Karim Aïnouz, diretor do filme, participando do circuito de exibição e divulgação do longa que venceu a mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes (2019) – feito inédito para o cinema brasileiro – e foi indicado pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil no Oscar 2020 na categoria melhor filme internacional, não ficando entre os finalistas.
Em todas as atividades de divulgação do filme Karim faz questão da presença de alguma colega mulher. Aliás, as mulheres são protagonistas desde o início desse projeto: o filme é baseado no romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, e roteirizado, além de Karim, por Inés Bortagaray e Murilo Hauser. “É uma história sobre as armadilhas do patriarcado, que atravessa e violenta a vida das mulheres desde tempos imemoriais e, portanto, é também um filme sobre ser homem”, escreveu a crítica de cinema Viviane Pistache (Portal Geledés).
Filho de uma brasileira e um argelino, Karim Aïnouz nasceu em Fortaleza, no Ceará, e deixou a cidade aos 17 anos para estudar arquitetura na Universidade de Brasília (UnB). Criado pela mãe e pela avó – o pai voltou à terra natal logo após seu nascimento -, ele acredita que tenha legitimidade para falar de questões femininas. O diretor assina também filmes como O Céu de Suely (seu primeiro longa), Madame Satã, Praia do Futuro e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (este em parceria com Marcelo Gomes). Karim está sempre em contato com Fortaleza, mas já vive há mais de 10 anos em Berlim – depois de ter passado por São Paulo, Paris e Nova York -, onde conheceu Bárbara, que também tem esse tempo na capital da Alemanha.
Socióloga, poeta, ativista, Bárbara Santos é uma das idealizadoras e difusoras do Teatro das Oprimidas, concebido a partir de técnicas do Teatro do Oprimido, método do dramaturgo Augusto Boal, que prioriza a discussão da estrutura social nas encenações na busca de revelar mecanismos de opressão do sistema patriarcal. A atriz viaja o mundo discutindo o método e ministrando oficinas para mulheres em situação de vulnerabilidade, como presidiárias.
Naquela sessão de debate em Teresina, instigadas por Bárbara, as mulheres começaram a fazer perguntas. “As perguntas de vocês, homens, estavam ótimas”, disse a atriz, “mas se a gente não observar, são situações assim, reproduzidas aos montes no cotidiano, que vão inibindo e calando as mulheres”.
A depender de Bárbara e Karim, as mulheres estarão menos invisíveis.
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Revestrés: A Vida Invisível se passa nos anos 1950 no Rio de Janeiro. De lá para cá ocorreram grandes mudanças nos comportamentos, como as provocadas pelo uso da pílula anticoncepcional e a revolução sexual. Mesmo assim, questões fundamentais de repressão à mulher continuam presentes. Que paralelo é possível fazer entre a história representada no filme e hoje, quase 70 anos depois?
Karim: Teve muitas conquistas em relação ao lugar da mulher no mundo, na sociedade, no Brasil. As mulheres avançaram muito, lutaram por um lugar menos oprimido e de mais protagonismo. Mas eu acho que os homens mudaram muito pouco, e ainda são muito parecidos com os homens que a gente vê no filme.
Revestrés: E a que se pode atribuir o fato de os homens pouco terem avançado em seus comportamentos?
Karim: É muito difícil deixar uma posição de poder voluntariamente. Acho que você tem que ser interpelado. Espero que o filme faça isso um pouco, provoque as pessoas a se perguntarem: por que continuar uma relação que está fazendo tão mal? – que é um pouco o que acontece, principalmente com o personagem da Eurídice.
Bárbara: É uma questão de poder e privilégio, né? O patriarcado promete aos homens uma situação de privilégio, que muitas vezes não se cumpre, e que também engana os homens. A grande maioria não recebe poder algum, que fica restrito aos patriarcas principais e aos capitalistas. O homem comum precisa então de um lugar pra exercer poder: a mulher, a família, a casa, e também o cachorro, o gato. Há um pânico de perda de um privilégio que, pra maioria dos homens, só existe simbolicamente. E todas às vezes que o feminismo e as mulheres avançam, o retrocesso contra elas é violento. Por exemplo, a sociedade alemã dos anos 1920, 1930, era muito aberta em relação à sexualidade, à vida cotidiana, e aí vem o nazismo. Agora, no Brasil, as mulheres experimentavam um avanço, ocupavam espaços, e o que acontece? A defesa da família, bons costumes. O patriarcado sempre evoca esses símbolos. “Bela, recatada e do lar!” (título de matéria da revista Veja sobre Marcela Temer, casada com Michel Temer). Pô, mais anos 1950 do que isso?! Então é o homem tentando retomar o seu lugar de privilégio.
Revestrés: Vocês consideram A Vida Invisível um filme pessimista sobre a vida?
Bárbara: Eu acho um filme realista. Pra qualquer mudança a gente precisa reconhecer em que situação está. Então acho que o filme traz uma chance – especialmente para os homens – de reconhecerem o mal da masculinidade tóxica.
Revestrés: Nos compromissos de divulgação, você, Karim, faz questão de andar acompanhado por alguma mulher que tenha participado do filme. Vocês também promoveram campanha nas redes sociais com mulheres que teriam ficado invisibilizadas ao longo da história. Vocês esperam que o filme provoque algo além de se assistir a uma narrativa no cinema?
Karim: Eu queria fazer uma sessão assim, “homem não paga” (risos). Os exibidores não iam gostar, mas acho que o filme é um terreno fértil pra lançar questões que, de fato, são urgentes. A gente também está fazendo uma série de entrevistas e quer muito publicar: são entrevistas com senhoras que têm entre 80 e 90 anos, que deram base para a cena da noite de núpcias de Eurídice. É “só” um filme, mas um filme também tem a capacidade de gerar ressonâncias importantes.
Bárbara: O filme é provocativo. Se os homens assistem com alguma abertura, alguma ficha vai cair. Especialmente porque eles estão convidados para assistir a um filme do feminino, da sororidade, das mulheres, e, quando vão ao cinema, se confrontam com um espelho. Eles podem reconhecer que aquele homem na tela não é muito diferente dele, foi educado como ele e ambos têm atitudes muito iguais. Isso dá a chance de dizer: poxa, quem sou eu, que sistema é esse, por que eu sigo alimentando isso? A gente testemunha alguns homens que ficam incomodados, tocados. Não é um filme catártico, você não sai aliviado, sai carregando um incômodo.
Revestrés: Os dois principais personagens masculinos: o pai (interpretado por António Fonseca) e o marido de Eurídice (vivido por Gregório Duvivier), embora diferentes, têm pontos de contato. O marido, Antenor, é um personagem sempre no limite de tornar-se ridículo, embora nunca caia na piada abertamente. A escolha de Duvivier, um comediante, para este papel, foi proposital?
Karim: Foi proposital. Eu sempre penso em elenco como corpos, então na hora que eu entendi que a Eurídice ia ser uma mulher alta, um pouco curvada, era muito importante que tivesse um marido que fosse menor que ela, e o Gregório é mais baixo. E, pra mim, um comediante era importante, não no sentido de fazer comédia, mas que o espírito da comédia, de alguma maneira, contaminasse aquele personagem. Ele é um bobo, um cara desprezível. É engraçado, mas tá o tempo inteiro querendo exercer poder dentro da arena familiar. Ele tinha que ser um pouco patético e quase uma criança – tem uma coisa infantil na relação dele com a mulher. A gente fez alguns testes com outros atores e o personagem não ficava de pé, era tão bruto que parecia uma caricatura de si mesmo. Acho que o Gregório cria um subtexto pra esse personagem que, apesar de ser engraçado, está o tempo inteiro sendo violento com a mulher. Já o personagem do pai eu queria muito que fosse um homem que falasse pouco e murmurasse muito, e o António é um ator sublime. Ele traz algo pro personagem que é muito pesado, mas, ao mesmo tempo, com afeto. O mais difícil era que a gente não só vilanizasse os homens, era muito importante construir esses personagens de maneira complexa.
Bárbara: E é interessante como esses homens criam uma rede de apoio mútuo – o pai, o marido, o médico –, que não aparece muito, mas que é fundamental pra guiar os rumos da trama.
Revestrés: Que relação é possível estabelecer entre a personagem Suely, de O céu de Suely, e as mulheres de A vida invisível? (Em O Céu de Suely, Hermila é uma jovem de 21 anos, da pequena cidade de Iguatu, Ceará. Grávida, tenta a vida em São Paulo com o namorado. Meses depois volta à cidade natal e o namorado, pai da criança, a abandona. A jovem resolve fugir, agora para o Rio Grande do Sul, e, para ter dinheiro para a viagem, adota o pseudônimo de Suely e anuncia rifar o próprio corpo).
Karim: A minha mãe me criou sozinha, com minha avó. Meu pai foi fumar um cigarro e nunca voltou, não disse quando ia voltar e não voltou. E teve um a hora da minha vida que eu via que a minha mãe, que sempre gostou muito de mim, também queria poder ir embora. Ela começou a viajar a trabalho, às vezes um mês, depois três, e teve um momento que eu fui ficando com muita raiva dela, porque ela se ausentava. Ela trabalhou muito tempo na França, fazendo pesquisa. E quando eu cresci, comecei a pensar: por que fiz isso com a minha mãe, entendeu? Coitada, por que ela não tinha o direito de fazer isso? Não são decisões racionais que a gente toma. O Céu de Suely começa com essa vontade de pensar o lugar da mulher como um contracampo do lugar que ela normalmente ocupa: por que aquela mulher não tem o direito de emigrar pra Porto Alegre? Quando o filme foi exibido nos Estados Unidos me diziam: isso é muito cruel, uma mãe jamais faria isso. Primeiro: isso é muito preconceituoso; segundo: ela tá indo pra Porto Alegre, mas pode voltar, ela manda dinheiro, vai mandar buscar o filho, e deixa o filho dentro de um lar de mulheres, com avó e tia. Então O Céu de Suely é um pouco o contrário de A Vida Invisível. Porque Suely é uma personagem que sonha com o porvir, que diz “qual a passagem pro lugar mais longe possível?”. Me interessava falar de um personagem feminino que sonhasse com o futuro que não lhe foi permitido ter. Já em A Vida Invisível é muito mais uma espécie de anatomia dos efeitos cruéis de uma sociedade patriarcal para mulheres e homens. O Céu de Suely é sobre o futuro ou sobre um possível futuro sonhado, e A Vida Invisível é sobre o passado.
Revestrés: O personagem da Filomena ganha protagonismo e se modifica: de um jeito até seco, duro, ela ganha outro contorno, servindo de acolhimento entre as duas irmãs perdidas, quase a voz da consciência de Guida – digamos. Como foi pra você, Bárbara, construir essa personagem?
Bárbara: Antes de começar a fazer conversamos e ensaiamos muito. Eu tinha uma preocupação com que lugar teria essa mulher negra, pobre, nesse filme de classe média branca. A gente falou, por exemplo, sobre que profissão Filomena teria, qual a sua religião. Eu tentei cuidar pra que ela não ficasse uma caricatura: a mulher negra, que era empregada doméstica, que vai ajudar a mulher branca. O que tentei fazer foi me inspirar em mulheres que conheço. Trabalhei na penitenciária por muito tempo, com aulas de teatro, e conheci mulheres que gingaram, enganaram o sistema. Mesmo que fossem presas, eram pessoas que não aceitaram o lugar que se tinha pra elas. Eu acho que a Filomena é capoeira. A realidade se coloca e ela vai encontrar maneiras – seja pela rasteira, pelo salto, às vezes furando o bloqueio – de lidar com essa realidade. Ela sabe que não tem saída fácil, mas vai driblar o sistema. Acho sensacional pensar que a Filó é a única mulher que poderia garantir para Guida uma experiência de liberdade. Porque, com todas as dificuldades, ela era um exemplo da experiência de liberdade, e ela dribla o sistema até na hora de morrer. Ela saca: “Pô, eu não vou deixar essa casa para o Estado, vou deixar pra Guida”. E também tem ali uma consciência de que aquilo só vai funcionar porque a Guida é branca. Se fosse uma mulher negra não ia funcionar, porque a mulher negra é sempre suspeita. Então tem ali também um dado que talvez não esteja tão explicitado, mas que é importante.
Revestrés: Na divulgação, A Vida Invisível é citado como “melodrama tropical”. Você, Karim, disse em entrevistas que queria fazer um melodrama que chegasse ao público das novelas. Acha que conseguiu?
Karim: Quando comecei a fazer cinema era quase como se escrevesse um diário, um ato muito íntimo, não era pra dividir com ninguém. Claro que quando você começa a fazer cinema de longa metragem não faz sentido fazer filme pra não ser visto. Na indústria do cinema brasileiro as pessoas são colocadas de um lado como autores, filmes fechados, e de outro como filmes comerciais, abertos. E eu sempre estava na lista dos filmes fechados, e dizia, mas gente, por quê? (risos). Isso é uma maluquice, todo filme é aberto. Pra mim cinema comercial é um cinema que você entende, que se comunica, que pode ter uma vida própria. E eu achava que podia fazer um filme que se comunicasse com o público, que fosse extremamente popular, e que continuasse sendo meu, de ter a minha caligrafia ali. Então eu queria um pouco implodir essas diferenças que, na verdade, só nos enfraquecem. O folhetim é algo muito familiar ao público brasileiro. Ao mesmo tempo eu achava que a novela, da maneira como é feita, com 48 cenas por dia, num ambiente com três câmeras, que vem do programa de auditório, era também diferente do que eu queria. Mas me interessava a chave do melodrama que existe na novela. Por fim, me interessava também, desde o golpe contra Dilma, que o cinema tivesse mais contundência, que a gente produzisse bons filmes que questionem ou critiquem ou provoquem a realidade. Esse filme vem muito nesse sentido: uma vontade de ser uma faca no teu coração, de ser uma lança no teu peito, que faça com que você questione, e possa ser visto por muita gente. Foi uma estratégia de dizer: é assim que vocês gostam de audiovisual, pois tá aqui algo que vocês gostam, falando de um tema absolutamente relevante.
Revestrés: A participação da Fernanda Montenegro coincide com o ataque que ela sofreu de Roberto Alvim, à época diretor da Funarte, e que causou grande comoção no meio artístico, até pela grande representatividade que a atriz tem. Como vocês perceberam esses ataques? (Fernanda Montenegro havia sido entrevistada e foi capa da revista Quatro cinco um, retratada como prestes a ser queimada em uma fogueira com livros, numa referência aos casos de censura do governo Bolsonaro. Alvim a chamou de sórdida, com atitudes mentirosas e canalhas. Três meses depois, já promovido a Secretário Nacional de Cultura, ele foi demitido, após publicar um vídeo em que copiava a estética e trechos de discurso do nazista Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler).
Karim: Eu acho que Fernanda respondeu essa ofensa de um modo muito inteligente. Ela disse: “Presidente da Funarte?! Eu nunca ouvi falar dessa pessoa. E essa pessoa agrediu alguém que não sou, porque o que ele diz não tem nada a ver comigo”. Então, na verdade ela diz “quem é essa pessoa? Ele não deveria ter nenhum lugar na arena pública”. É claro que ela ficou profundamente afetada, mas acho que deu uma resposta inteligente.
Bárbara: A gente também tem que pensar que esse governo tenta personificar questões, e a gente não pode deixar isso acontecer. É claro que tem pessoas que são instituições, mas as questões não podem ser individualizadas. Por exemplo: a prisão de Lula não é sobre Lula, é sobre nós, sobre o direito à justiça, a julgamento, a provas. Então não é sobre Fernanda Montenegro, é sobre nós, sobre um momento histórico, um modo de pensar, uma posição política e cultural.
Revestrés: Vocês vivem em trânsito entre Brasil e Alemanha e convivem com o cinema nos dois países. Nos últimos 15 anos as políticas públicas do audiovisual fortaleceram a produção nacional e o que se colhe hoje é resultado de um trabalho que começou muito antes. Como vocês percebem o cinema brasileiro hoje e como observam a percepção desse cinema brasileiro no exterior?
Bárbara: O que vejo fora do Brasil é que as pessoas têm uma percepção que o Brasil não tem de si. As pessoas têm uma admiração muito grande, consideram que o Brasil produz coisas incríveis, filmes interessantes, cada vez melhores. Mas, assim como as políticas públicas inclusivas, que lá fora geram um encantamento, surpresa ou admiração, aqui dentro enfrentam toda uma campanha contra: é campanha contra a Lei Rouanet, contra o Bolsa Família… Como é que isso pode ganhar tanta vida?! Internamente as pessoas tem uma visão construída, em parte, pelos meios de comunicação, que não corresponde em nada ao olhar externo! O que se vê de fora é tão admirável! Todas as políticas públicas para o audiovisual são reconhecidas porque os resultados são muito óbvios, e não só para produções enormes, que estão nos festivais, mas também para curta metragens e outros formatos.
Karim: Eu concordo completamente com a Bárbara. Com exceção de Berlim, a gente ganhou prêmio em todos os festivais. Fora do Brasil existe uma grande admiração por nossos produtos audiovisuais, que são fruto de investimentos públicos, e aqui dentro fico impressionado com os números do cinema brasileiro: por que tão pouca gente vai ver? Não é porque os filmes são ruins. Acho que é porque há, de fato, uma certa falta de crença numa produção audiovisual autóctone. E existem estratégias para que a gente não ocupe espaço. Hoje, aqui, a gente tá dentro de uma sala de cinema num shopping (Cinemas Teresina/Teresina Shopping), mas é uma absoluta exceção! A gente fala muito pouco da disseminação do audiovisual do Brasil e isso dá margem pra que esse campo tóxico, que está no poder, fique acusando a gente de coisas absolutamente injustas. O que aconteceu com o prêmio que a gente ganhou em Cannes? De um lado eu senti que a gente tinha ganhado a taça Jules Rimet (antiga Copa do Mundo de futebol) tamanha a alegria! E, pro Governo Federal, é como se nada tivesse acontecido, não teve nenhuma relevância (fala com ênfase). Não é nem surpreendente, mas acho que é de uma burrice típica de quem está no Governo Federal, porque eles nem precisavam fazer nada, era só dizer “que legal, o Brasil ganhou”. O que teve de comoção com relação a esse prêmio fora do Brasil é lindo! E dentro, numa esfera institucional, a gente foi absolutamente ignorado. E tem um logotipo do Governo que diz: “Brasil, pátria amada”. “Pátria amada” de quem?! Porque não há nada de menos patriótico do que o que aconteceu.
Revestrés: Como escolas, professores e formadores de opinião podem contribuir com essa disseminação do cinema brasileiro?
Karim: Um filme de estúdio americano que custa um milhão de reais, por exemplo, tem um orçamento de publicidade que é no mínimo o dobro disso. Ou seja: os filmes americanos são comunicados, você sabe que eles existem, todo mundo sabia que tava passando Coringa, não porque é um bom filme – ele também é -, mas porque ele se comunicou, você ouviu na rua, viu no shopping, ouviu no rádio. Nos Estados Unidos existe um esforço muito grande de disseminação de uma produção audiovisual e parece que a gente ainda não entendeu isso. O distribuidor de A Vida Invisível me perguntou: “Quanto você acha que o filme vai fazer?”; e eu disse: “De 500 mil a um milhão. Você acha que eu estou doido?”; e responderam: “Eu acho que você está doido”. É quase como se a gente fosse natimorto, entendeu? Porque, na largada, a gente já não tem direito. Acho que a gente tem uma função cívica de disseminar o cinema brasileiro e todo mundo pode ajudar. Mas acontece um negócio muito louco: esse era o filme brasileiro indicado ao Oscar e eu não via ninguém da nossa classe fazendo campanha pro nosso filme! Que produtor você viu fazendo campanha pro filme? Você viu algum? Eu não vi. Ou seja: não é só no âmbito do Governo Federal, é na própria classe! Então têm duas coisas objetivas que a gente pode fazer: enquanto professor, ator público, acho que realmente a gente tem que disseminar o cinema brasileiro. E hoje a gente pode fazer isso sem dinheiro. A outra coisa é que tem que ter dinheiro pra divulgação. A gente tem que entender que parte da visibilidade que o cinema americano alcança não é porque ele é bom ou ruim, é porque a gente sabe que ele existe. Quando você sai de casa pra ver um filme, sem ter lido nenhuma crítica, já sabe que os filmes americanos existem, porque eles são comunicados exaustivamente.
Revestrés: Mesmo com toda essa estrutura que o cinema americano possui, Woody Allen, em entrevista ao jornal El País, reclamou que existe uma diferença grande entre o que o cineasta pensa e o que consegue realizar e apresentar ao público, porque raramente se tem recursos suficientes, ou o ator que se deseja, etc. E ele está no centro da produção mundial de cinema. Pra vocês, como essa colocação reverbera?
Karim: Olha, eu nasci numa família que, quando eu comecei a fotografar, ainda pequeno, minha mãe disse: “Pode parar. É muito caro revelar. 36 poses é coisa de rico!”. Então, quando ligo uma câmera, me sinto um privilegiado. Fazer cinema é um privilégio e isso tem que ser vivido com muita responsabilidade. Custa muito dinheiro o que a gente faz, entendeu? A possibilidade de fazer de maneira profissional e de eu pagar meu aluguel com isso é um privilégio. Eu acordo de manhã e falo “obrigado” – não falo senhor porque não acredito em Deus, mas falo “obrigado, universo”. É tanto privilégio que eu me pergunto: será que o mundo precisa disso? Será que eu devia fazer outra coisa? Venho de um local onde nunca pensei que eu pudesse pagar contas fazendo cinema, então fazer disso a minha atividade profissional é um luxo, entende? Essa fala do Woody Allen é um absurdo, é coisa de menino mimado!
Bárbara: De menino branco mimado. Eu acho que a gente tem que se perguntar: o que a gente quer fazer? Quanto a gente tem pra fazer o que quer? Esse é o meu método. E pra mim o melhor lugar do mundo é aqui e agora. Então, vambora!
Esta entrevista faz parte da Revestrés#45, que pode ser baixada ou lida gratuitamente CLIQUE BAIXE O PDF (link para pdf) OU LEIA ONLINE (link issuu).
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