Bacurau, dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e A vida invisível de Eurídice Gusmão, do cearense Karim Aïnouz, são premiados no 72° Festival de Cannes, ocorrido entre 14 e 25 de maio. Bacurau volta para casa com o Prêmio do Júri da seleção oficial, e A vida invisível… com o prêmio principal da mostra paralela Um certo olhar. O júri da competição oficial desse ano, presidido pelo diretor Alejandro González Iñarritú, decidiu atribuir a distinção no modo ex aequo, no qual dois filmes dividem o mesmo prêmio. Bacurau partilhou a recompensa com Les Misérablesdo francês Ladj Ly. 

Ambientada no sertão, o terceiro longa metragem de Mendonça Filho é uma distopia que se inspira do contexto atual brasileiro. “Nao é a realidade exata do que vai acontecer no Brasil, mas intuímos que essa é um pouco a realidade do Brasil de hoje”, diz. “Parece mesmo, sob vários aspectos, uma distopia”, lamenta o diretor. 

 

A evocação no título à ave – de mau agouro, segundo a lenda sertaneja – soa, nesse contexto, natural. Bacurau é o nome de um vilarejo ausente do mapa, cujos habitantes têm que enfrentar o poder local para ter acesso à água. Fazendo coro a outros filmes presentes no festival (Ken Loach, Monia Chokri, Pedro Almodóvar, entre outros), o longa pernambucano também foca nos laços de família. Mas os limites do grupo aqui são mais amplos que os vínculos por sangue: trata-se da comunidade. 

Os personagens encontram-se encurralados. Interpretados por atores como Barbara Cohen, Silvero Pereira, Thomas Aquino, Sônia Braga e Udo Kier, eles contam apenas consigo mesmos. Avançam até um certo ponto, sem o líder. Lunga, personagem de Silvero Pereira, que despolariza masculino e feminino, é um bólide: entra em cena como entidade que se manifesta na roda. Transexual, Lunga surge no roteiro como “uma revolução”, à medida em que é por meio dele que o ódio “retraído” é exteriorizado. “Se o que se recebe é violência, o que se devolve é também violência”, raciocina Pereira.

O ator Silvero Pereira vive o personagem Lunga,  que despolariza masculino e feminino | Foto: Sônia Oliveira

Para o ator cearense, por trás desse Brasil “sofrido e desgastado” retratado no filme, há um “gigante que pode acordar”. Pereira ressignifica a metáfora lembrando que esse Brasil que desperta “não é um país de opressores, mas de oprimidos”. No filme, “o gigante acorda, toma o poder, ocupa seu lugar”, conclui o ator. 

Bacurau, diz Pereira, “faz um recorte desse Brasil que a gente está vivendo agora, um Brasil de ruptura”. Essa quebra de paradigma, conta, aponta também para um país “onde as relações masculino e feminino devem ser horizontais”, diz ele, acrescentando que essa é, aliás, uma preocupação dos realizadores não apenas no tratamento dado ao roteiro, mas “na própria estrutura em que os atores são colocados”. No set de Mendonça Filho, conta Pereira, “cada ator e atriz tem o seu momento”. 

Bacurau | Foto: divulgação

Terra e água 

Com Bacurau, o diretor de O som ao redor (2012) e Aquarius desloca-se da querela pela posse da terra – que na cidade é tematizada na ocupação imobiliária -, e vai para um bem mais vital, a água. Entra, dessa forma, numa linhagem cara à cinematografia brasileira, aquela do Cinema Novo de Glauber Rocha e de Nelson Pereira dos Santos. Aproxima-se mais do primeiro, já que o Sertão aqui surge como solução possível. Se o Estado armou-se de matadores orientados por uma central à distância, que monitoram as serras verdes via drones, os bacuraenses estreitam os laços e vigiam cada légua que os separa via rede social. São um povo conectado, sem que tenham esquecido a herança cultural – principalmente a bélica – dos antepassados.  

Exibido no segundo dia do festival, 15 de maio, data em que o Brasil era sacudido por uma onda de manifestações contra os cortes na educação, Bacurau é um filme cheio de esperanças. “Foi uma coincidência”, diz Juliano Dornelles. Mas isso possibilitou que pudessem “participar” da resistência, ressalta o co-diretor, lamentando os recentes ataques do governo à Educação. Num engajamento mais amplo, o filme reverte a decapitação dos cangaceiros. Tocando dessa forma na iconografia brasileira, faz uma aposta. Que os tempos podem piorar, é quase certo. Mas a solução vem do centro.  

A vida invisível de Eurídice Gusmão | Foto| Bruno Machado

Já o vencedor da seleção Um certo olhar, o filme A vida invisível de Eurídice Gusmão, marca o retorno de Karim Aïnouz à mostraonde há 17 anos se lançava com Madame Satã. Baseado no livro homônimo de Marta Batalha, o quinto longametragem do cearense tende a marcar também um ponto de inflexão na trajetória do cineasta. Embrenha-se por um novo caminho, o do gênero. Afoito, começa pelo mais arriscado, em se tratando de um diretor sul-americano: o melodrama, cuja herança teledramática é quase congênita. Mas escapa aos clichês. Ocorre o inverso: entre uma e outra interpretação de ator que remete ao código das telenovelas, uma verdade se impõe: o diretor lembra que no começo, era o cinema. E que o melodrama não é predomínio da pequena tela.  

Para contar essa história, a de duas irmãs separadas pelos valores patriarcais de um Rio de Janeiro de meados do século passado, Aïnouz recorre às atrizes Carol Duarte (Eurídice) e Julia Stockler (Guida Gusmão). Com desempenho equilibrado, o que se destaca, porém, é a cidade que serve de fundo para suas performances. O diretor revisita um Rio “pintado” como em Madame Satã, sublinhando o que já se pode chamar hoje de imagografia Aïnouziana. O Rio é quente. Mas o de Karim é mostrado, principalmente, entre verdes e azuis frios. O júri da mostra Um certo olhar foi presidido na edição deste ano pela atriz e diretora libanesa Nadine Labaki (Capharnaüm, 2018). 

Mais Brasil 

Essa edição do Festival de Cannes também acolheu outros brasileiros. Sem seu sangue, primeiro longa-metragem de Alice Furtado, participou da seleção Quinzena dos Realizadores. O Brasil também participou de produções internacionais, como Port Authority, de Danielle Lessovitz, e O traidor, do italiano Marco Bellocchio, que tem a atriz paranaense Maria Fernanda Cândido no elenco. É do brasileiro Mauricio Zacharias o roteiro de Frankie, dirigido pelo americano Ira Sachs e estrelado por Isabelle Huppert. 

Publicado na Revestrés#41-maio-junho de 2019.