*Verso da poesia “Oferenda”, de Climério Ferreira, talvez copiado da fala de Jesus Cristo na última ceia. “Oferenda” foi musicada por Clodo, Climério e Clésio e gravada por Clodo e Fagner no LP Chapada do Corisco (1979).
Até hoje ela não sabe o que ele escreveu. Ele tão pouco é capaz de decifrar. O que permanece incógnito e serviu de laço ao casal está na dedicatória que Climério Ferreira fez a Heloísa na página de “A gente e a Pantasma da gente”, terceiro dos dez livros de poemas do autor. Seja o que for que tenha escrito, Climério casou-se com Helô e tem três filhos e três netos, todos residentes em Brasília. A voz baixinha, o jeito discreto, parecem se somar aos micro poemas aos quais se dedica: “escrevo todos os dias”. Mas nem tudo é comedido. Climério junta seis palavras e explode na potência dos versos e permanência da produção: somam-se aos 10 livros, oito discos e 118 músicas interpretadas por artistas diversos da música brasileira: Dominguinhos, Ednardo, Nara Leão, Elba Ramalho, Mastruz com Leite, Fagner, Tim Maia, Amelinha, Fernanda Takai… a lista é extensa e não para de crescer.
Nascido em Angical, interior do Piauí, Climério mudou-se para Teresina com apenas um ano de idade, e de lá para Brasília, aos 18 anos. “Vim pra Brasília com ódio de Teresina”. O garoto chegou na capital federal querendo vida nova quando tudo então começava, no ano de 1960. Mais tarde trouxe os irmãos Clodo e Clésio, e depois os pais.
Estimulado pela presença dos irmãos mais novos, Climério passou a se dedicar ao que gostava: viver de música, mas ainda não tocavam juntos. Um dia, em São Paulo, foram ao programa “Mambembe – a vez dos novos”, produzido por Walter Silva e transmitido pela TV Bandeirantes. Walter Silva havia lançado nomes como Elis Regina e Ney Matogrosso, e vivia em busca de novos talentos, “como se ele inventasse o talento, quando, na verdade, essas pessoas é que o tinham”- avalia Climério. Naquela ocasião, os três irmãos piauienses se apresentaram individualmente, como sempre faziam. Do mesmo programa também participavam Belchior, Ednardo e Simone. Havendo ainda espaço para uma música no programa, Walter Silva sugeriu: por que vocês não entram e tocam juntos? Eles aceitaram a proposta e interpretaram “São Piauí” (de Climério e Antônio Celso Duarte). Na edição, o programa usou, pela primeira vez, a legenda “Clodo, Climério e Clésio”. “Taí! Foi uma boa ideia” – diverte-se Climério. Estava formada a tríade, que nunca foi um trio.
Olheiros da gravadora RCA presentes ao programa convidaram os irmãos para um teste juntos. Em 1977 eles lançariam, pela gravadora o LP “São Piauí”, assinando como “Clodo, Climério e Clésio”, forma pela qual lançaram sete discos de sucesso e só desfeita nos anos dois mil. No início dos anos 80, as composições dos três irmãos encantavam tanto os cantores brasileiros que Nara Leão se arriscou a compor sua única música, em parceria com Fagner e Fausto Nilo, e que recebeu o nome de “Cli-Clé-Clô”, em homenagem aos três: “Cli, um claro, um clarão, Cli, clivagem, clima seco, Lua nova, a origem de tudo, Claro, clarão da lua Pôr-do-sol, coragem, partida, Ida e volta, volta e ida”. Hoje Climério vive ligado à escrita, Clodo continua a fazer shows e Clésio faleceu em 2010, aos 65 anos, vitimado por uma demência precoce, possivelmente Alzheimer.
Porque cantar parece com não morrer / é igual a não se esquecer / que a vida é que tem razão. “Enquanto engomo a calça”, Climério e Ednardo, gravada por Ednardo
Contrariando a ideia de se despedir sem amores por Teresina, o Piauí nunca esteve ausente das inspirações e saudades de Climério. As referências ao estado, presentes desde o primeiro disco, estão em várias de suas letras. Ele gosta de observar o piauiense, tem teorias sobre como se comportam, embora admita que nem sempre se sinta autorizado a falar sobre isso, uma vez que deixou o Estado muito jovem. “Quando me aposentei perguntaram: você vai voltar a viver no Piauí? Clésio respondeu: ele nunca saiu de lá”.
Assim é que, aos 73 anos, todos os anos, nos dias que iniciam os novos tempos, Climério e Helô atravessam o cerrado de carro, dividindo a direção e partilhando a paisagem. A parada mais demorada é em Regeneração, terra natal de Helô, onde acompanham os festejos de São Gonçalo. Depois passam por Angical e, por fim, chegam a Teresina, que já mudou muito desde que Climério saiu e onde quase ninguém o conhece – garante. O anonimato, longe de incomodar, parece deixá-lo sinceramente confortável. Bem humorado, ele conta que certa vez, hospedado em hotel no centro de Teresina, esperava um amigo piauiense que se atrasou. Resolveu então sair andando pelo centro. Quando já caminhava a cerca de uma hora, o amigo o encontrou. Surpreso, ele quis saber como foi possível, pois empreendia um passeio a esmo. O amigo disse: “Saí perguntado: vocês viram Climério passando?”. A historinha mostra que ele não é tão desconhecido quanto supunha.
Em Brasília, os três irmãos fizeram universidade e tornaram-se professores da UnB – Universidade de Brasília. Climério formou-se em Jornalismo e foi professor de Comunicação por vinte anos. Desde que se aposentou, nunca mais pôs os pés na universidade, mas guarda suas lembranças fortes, que envolvem o período da ditadura militar no Brasil, quando a UnB teve como vice-reitor e, depois reitor, o militar e físico Capitão de mar-e-guerra, José Carlos de Almeida Azevedo, que permaneceu à frente da UnB dos anos 70 até 1985, numa gestão marcada por forte repressão aos estudantes. Como estudante, Climério fez protestos, convocou assembleias, deixou recados nas paredes, mas diz que se sentia sozinho e sentia medo. Terminou indo fazer mestrado em São Paulo, onde morou por cinco anos. De volta a Brasília, passa a ser professor da UnB em 1976 e diz que dava aula de tudo, pois parte dos professores estava sendo afastada ou presa.
Recentemente a novela “Velho Chico”, da Rede Globo, teve a música “Enquanto engomo a calça”, parceria com Ednardo, na trilha sonora. Se esse fato tornou o cantor cearense mais conhecido, o mesmo não vale para Climério, que garante que continua a gozar de sua privacidade. Ele afirma que nunca assistiu um único capítulo da novela, nem por curiosidade, mas que os amigos, empolgados, sempre enviavam trechos de “Velho Chico” com sua música.
Temendo ser traído pela memória, Climério chega ao nosso encontro com 10 folhas de papel impressas com nomes de parceiros, obras e datas: “trouxe meu HD externo” – a atitude não é só de cuidado, mas também revela o humor e ironia do escritor e músico. Ele pede que nos encontremos na Whiskeria Berlim, onde já é frequentador assíduo e amigo do garçom Wilson. Dois dias depois, fomos em sua casa para fotografá-lo. O apartamento, na Asa Norte, é carregado de referências ao Piauí e artistas nordestinos: arte santeira, xilogravuras, móveis em buriti. Ele conta que em nosso primeiro encontro estava nervoso, não gosta de dar entrevistas. Nos dois dias Climério é cuidadoso ao falar, algumas vezes responde como se fizesse seus versos: curtinhos, mas carregados de sentido e sentimentos. Defende suas teorias sem fazer alarde, embora firme, como quando argumenta porque a música popular refluiu e o rock cresceu na década de 1980
Antes de sairmos de sua casa, pedimos que assine nossos livros-dele, cheios de frases quase biográficas, onde esperamos colher mais sobre o entrevistado. Ele, que havia dito escrever todo dia, admite: “fazer dedicatória é a parte mais difícil!”. Talvez agora Helô tenha ficado aliviada com sua dedicatória indecifrável.
É melhor ser triste assim como eu estou
Do que ser feliz na vida como estais
Pois felicidade em mim é teu amor
Que é mais claro que uma noite de luar
Riso Cristalino, Climério e Dominguinhos, gravada por Dominguinhos, Elba Ramalho e Mastruz com Leite
Samária – Você tem muitos livros, discos e centenas de letras gravadas por artistas conhecidos em todo o Brasil, no entanto leva uma vida tranquila, aparentemente no anonimato. Você se sente desconhecido?
Climério Ferreira – Eu quero ser desconhecido. Em música, hoje, apenas faço letra. Quem aparece é o cantor, que grava o disco, faz televisão, fica com a maior parte do trabalho. Eu fico numa boa, não gosto de me expor nem dou entrevistas. Tem casos interessantes: eu tenho seis músicas gravadas por Elba Ramalho e não sei quem é Elba Ramalho e ela também não sabe quem sou, porque ela não grava “a minha letra”, ela grava “a música de Dominguinhos” (um dos parceiros mais frequentes de Climério). Isso me deixa à vontade, não sou assediado por ninguém. Uma vez eu trouxe o Dominguinhos aqui (na Whiskeria Berlim) e coitado – ele não ficou em paz (risos). Eu adoro o anonimato e o conservo com unhas e dentes. Já tenho tão pouco tempo pras minhas coisas, minha família, né?
Samária – O que é sucesso pra você?
CF – Para algumas pessoas sucesso é o que toca no rádio, na TV. Para mim, sucesso quer dizer o que vem depois, o que sucede, então meu sucesso é fazer muita coisa continuamente. Nesse sentido eu sou um sucesso: tenho várias canções gravadas e não paro de fazer coisas novas. Eu escrevo todo dia.
PJCunha – Escrever todo dia exige de você algum método?
CF – Não, a casa pode continuar com sua rotina normal e todo dia faço meu versinho. Muitas vezes sai um bem besta, outras vezes eu me surpreendo e nem acredito que fui eu quem fiz! Eu vou escrevendo, as vezes é um insight, uma conversa que tive, pode ser uma frase que vi e quero falar sobre. O Nicolas Behr (escritor) falou pra mim: você não quer publicar vinte livros, porque você já deve ter material. E eu disse: quem vai pagar? Eu não vou fazer um livro, ainda mais de poesia, pra ficar com o estoque. Tem poetas conhecidos, como Ferreira Gullar, que fazem um livro e vendem. O que eu faço? Edito poucos livros e em pouca quantidade. Em compensação, estão todos esgotados! Legal, né?
Samária – Você diz que nunca gostou de fazer shows. Depois da queda da indústria dos CDs o show é o espaço do músico se viabilizar economicamente. Hoje o músico pode se dar ao luxo de não querer fazer show?
CF – De jeito nenhum. Hoje o músico se mantém nos shows. E as tecnologias e formas de acesso à música trazem um risco pra mim: a eliminação do nome dos autores. Sem o disco, sem o CD, você vai perdendo essa informação. Eu não gosto de shows, gosto é de escrever. Fiz um disco solo (Canção do Amor Tranquilo) cheio de músicas tristes, porque eu gosto de música triste. Um dia senti uns problemas cardíacos e fui parar na UTI. O médico disse: “foi aquele disco, é triste demais!” (risos).
Wellington – Você já disse que se considera mais um letrista que um poeta. Você acha que o fato do Prêmio Nobel de Literatura ter sido concedido a Bob Dylan, compositor, traz uma nova percepção sobre os autores de letra de música?
CF – Eu sou de uma geração em que o pessoal que queria escrever poesia começou a fazer letra de música. Eu aprendi que isso é bom, é possível, e nos evita a discussão teórico-acadêmica de definir se você é poeta ou não. Evidentemente o que eu escrevo se aproxima mais de uma letra de música do que de uma poesia, se tomarmos uma definição formal para poesia. Mas essa discussão é boba, antiga e não me interessa. Eu vejo uma letra de música e acho maravilhosamente poética! E vejo poetas ansiosos para serem musicados. Musicar poesia é bom porque você cria um novo espaço de circulação para aquilo que escreveu. A vantagem de se conceder o prêmio Nobel a Boa Dylan é exatamente mostrar que essa discussão está ultrapassada. Todo mundo sabe, há anos, que Bob Dylan é um grande poeta, importante para várias gerações.
Confessou-se culpado
E não aderiu ao movimento
Seguiu só, sem ninguém ao lado
Sem palavra de ordem
Quase desatento.Quase Desatento, Climério, Marina Lima e Fernanda Takai, gravada por Fernanda Takai
PJCunha – Nesse tipo de discussão que tenta enquadrar o que é certo ou errado, você costuma adotar posturas mais marginais. Você já disse que vai escrevendo o que vem à cabeça e o que não serve para poesia, vira letra de música.
CF – Eu descobri que tudo o que eu escrevi estava virando letra de música. Meu primeiro livro (Memórias do Bar do Pedro e outras canções) virou todo música, por meio de parceiros que foram musicando os poemas. Já no terceiro livro eu comecei a ficar chateado. Eu queria escrever um livro que fosse de poesia. Aí escrevi “Pretéritas Canções” e pus como subtítulo “esse livro só tem letras” (risos). Era uma brincadeira, evidentemente. Mas eu quis escrever de um jeito que ninguém pudesse musicar, então comecei a escrever poesias curtinhas, que alguns chamavam de haikai, mas não era haikai porque eu não tinha a técnica. Chico Alvim (poeta), disse “isso não é haikai, continuam a ser quadrinhas nordestinas, disfarçadas com alguma informação e um pouco de filosofia”. Então eu fiz um livrinho só de versos curtinhos, pra ninguém musicar. Aí vieram a Fernanda Takai e a Marina Lima, juntaram uns versinhos, gravaram e eu gostei. Então não tem jeito: vou continuar escrevendo sem a esperança de que meus poemas não sejam musicados.
André – Você escreveu “nunca uso terno, só ternura”. É só um verso bonito ou uma verdade?
CF – Eu detesto essa ideia de usar terno, só ando de camiseta. Já me recusei a receber uma homenagem em Brasília porque precisava ir de fraque. Na mesma solenidade seriam homenageados Paulinho da Viola e Fagner. Na hora de receber sua homenagem, Fagner, em solidariedade a mim, tirou o fraque e jogou no chão (risos).
André – O primeiro disco de Clodo, Climério e Clésio, lançado por uma grande gravadora (RCA), tinha como nome “São Piauí”. Era uma tentativa de fazer um movimento musical?
CF– Esse era o título de uma música feita por mim e pelo Celso Duarte, paulista, companheiro de república. O nome, na verdade, é uma brincadeira, uma mistura de São Paulo e Piauí. Na época, havia um movimento forte de música ligado aos estados. Tinha o pessoal de Minas, da Bahia – do qual Torquato Neto fez parte -, do Ceará- que passaram por Brasília e ficaram próximos a nós. Eu fiz várias canções com os cearenses, menos com o Belchior porque ele não precisa de letrista, né? As vezes a mídia confundia e nos chamava de “pessoal do Ceará”. Mas nós não somos o pessoal do Ceará, assim como nunca fomos o pessoal do Piauí, e não somos o pessoal de Brasília, porque isso não estava em nossos planos. Eu não gosto de movimento, não participo disso, aliás a canção que Fernanda Takai gravou, “Quase desatatento”, fala disso: “Confessou-se culpado, E não aderiu ao movimento, Seguiu só sem ninguém ao lado, Sem palavra de ordem, Quase desatento”. A letra também diz: “Mas se ele contribuía mais assim, Pras respostas do mundo e outros fins, Porque teria que estar presente, Se tudo clareava quando estava ausente.”
PJCunha – Os estados que promoveram movimentos, por outro lado, conseguiram unir produtores, letristas, compositores, tornando-se musicalmente mais fortes. O que falta à música do Piauí?
CF – No Piauí tem muita gente produzindo, pop, rock, reggae, um pouco de xote, baião. Sei que existe uma produção, que é diversificada e acho que você pode fazer um bom trabalho artístico morando em qualquer lugar. O compositor carioca canta Ipanema, Copacabana, e por que o piauiense não pode cantar a Vermelha (bairro de Teresina)? Quando eu e Ednardo fizemos Estaca Zero, demos um caráter de decisão na letra da música: “A gente vai se assustar, Mas faz de conta que sabe, Que tem um canto da estrada, Chamado estaca zero, Onde a gente pode dizer, O rumo que quer tomar”. Mas estaca zero também é o trecho de estrada que se bifurca entre Picos e Floriano. Você trabalha com os dados de sua memória e as vezes dizem que você tá inventando – o que é verdade. Você tá construindo ou reconstruindo lembranças, inventando parte do que lembra.
Samária – Você diz que não quis fazer um movimento, mas faz muitas referências ao Piauí.
CF – O Piauí tá dentro de mim. Eu gosto muito do estado, do ponto de vista cultural. Fiquei temeroso de não ter legitimidade pra falar, de estar me apropriando de algo que eu não tinha direito, pois saí de lá muito jovem e com ódio de Teresina. Naquela época, início dos anos 60, havia uma opressão muito grande, uma desigualdade tão dura que era sentida na carne, a valorização de quem tinha grana, sobrenome. Eu nunca tinha entrado no Clube dos Diários, que era local de rico. Quando voltei em Teresina, anos depois, e me disseram “vamos no Clube dos Diários”, eu quase não conseguia entrar. Depois isso mudou. Lançamos “São Piauí” e a cidade nos recebeu muito bem. Nessa visita eu já me inspirei para o segundo disco que chamamos “Chapada do Corisco”, música minha e de Clodo, onde falo: “eu me conheço, eu não me arrisco, eu não mereço ficar longe da chapada do Corisco”.
André – Ednardo disse que você, Clodo e Clésio eram três, mas nunca foram um trio. Por que?
CF – Nós nunca cantamos juntos como um trio. Éramos três compositores, não muito cantores, interessados em mostrar as nossas músicas. Nos nossos discos tem a minha parte, a parte do Clésio, e a parte do Clodo. Nós inventamos a reforma agrária musical. Cada um escolhia o que gostava e a gente gravada num disco só. Nunca tivemos medo de dividir o disco entre nós.
O meu amor não faz surpresas
qualquer momento ele se despe
se troca, vira beleza
E o meu olhar nunca esquece.
O meu amor, Climério e Naeno, gravada por Naeno
PJCunha – Mesmo considerado um bom disco pela crítica, do ponto de vista musical, O “São Piauí” reconhecidamente não é bem gravado, ainda que com o selo RCA. Como se explica isso?
CF – O disco virou documento. Na época, nós não sabíamos nada que o mercado já sabia. Por exemplo: escolher a primeira faixa do LP era importante, ela seria o carro-chefe do trabalho. Pra nós as músicas eram as músicas e pronto, e eram diversificadas, então era difícil escolher “a primeira”. Quando gravamos eu queria um coro com uma voz tipo Maria da Inglaterra (cantora piauiense) e não consegui. O coro da RCA não conseguia desafinar, era tudo certinho demais, e eu dizia: “Rapaz, a Maria da Inglaterra faz ia isso com um pé atrás”. As cantoras da RCA estavam preocupadas com suas carreiras e não queriam se estragar com o que pensavam ser uma brincadeira nossa. Ficou bonito, mas não ficou autêntico.
PJCunha – Na música, nem tudo o que faz sucesso é bom, do ponto de vista da qualidade das letras ou das canções. Como você, como compositor, percebe isso?
CF – Há vários aspectos e eu considero como relevante a questão industrial e de mercado. No final dos anos 70, eu estava nos bastidores de um programa de TV, esperando para entrar, quando chegou um produtor da Philips e disse: daqui a um ano vocês só vão ouvir rock no Brasil. E por que ele afirmava isso? Porque as gravadoras eram estrangeiras e elas diziam à música brasileira o que o mercado estrangeiro estava querendo. As gravadoras mais atuantes no Brasil eram RCA (Radio Corporation of America, americana) e Philips Records (com origem nos países baixos, mas grande atuação nos Estados Unidos). Eu fiquei pensando: eles que mandam na nossa música. E qual o problema da Música Popular Brasileira? Os caras são arredios, não se deixam dominar, conduzir, querem fazer seus discos, passar suas mensagens, não a mensagem que o produtor acha que pode ter sucesso e que pode ser substituída rapidamente se assim o mercado quiser. Não é que o público brasileiro deixou de gostar de MPB. Essa não é uma decisão do público, é da indústria, ainda que a maioria das pessoas nem perceba, porque é divertido, os shows viraram uma Disneylândia.
Samária – Ouvindo suas músicas percebe-se que você valoriza solos instrumentais e faz longas introduções. Essas formas têm sumido da música contemporânea. Isso diz respeito ao modo de fazer de cada época ou, nesses tempos mais acelerados, podemos perder o deleite de apreciar uma composição?
CF – Talvez eu tenha influência da música americana nesse sentido, de valorizar a parte orquestral, que nós fazíamos com violas, violões. Sempre nos preocupamos com o arranjo e trabalhamos com introdução e saída longas, além de costumarmos dividir a música em duas partes, com um solo entre as partes. Metade do prazer de se ouvir uma música é a introdução, é ali que você “pega” o ouvinte. Quando Fagner gravou “Revelação” (Quando a gente tenta, De toda maneira, Dele se guardar, Sentimento ilhado, Morto, amordaçado, Volta a incomodar) de Clodo e Clésio, Robertinho do Recife fez uma introdução de 30 segundos com um solo de guitarra que é parte importantíssima da música. Fagner disse que todos nós iríamos ficar de cabelos brancos e ninguém esqueceria essa música.
Wellington – Quem são suas influências na literatura?
CF – Sou muito inspirado por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, mas ultimamente leio pouco poesia porque tenho medo de copiar. A gente copia sem querer, sabia? Eu escrevi em Enquanto Engomo a Çalça: “porque cantar parece com não morrer”, mas será que Vinícius já não disse isso ou coisa parecida? Aliás, Belchior, em Hora do Almoço, e Fagner, em Canteiros, dizem: “Pois se não chega a morte ou coisa parecida, E nos arrasta moço sem ter visto a vida”, que são versos da Cecília Meireles. Lulu Santos e Nelson Motta disseram “a vida vem em ondas, como um mar”, e Vinícius de Moraes já tinha escrito “a vida vem em ondas, como o mar” em “Dia da Criação”. Então eu ando lendo menos poesia, por medo de gostar e copiar.
Wellington – Com mais de cem músicas gravadas por intérpretes de sucesso nacional e música em novela, você ganha dinheiro com música?
CF – Pouco, mas ganho. Ainda é difícil você acompanhar a questão dos direitos autorais no Brasil, a editora controla grande parte disso e se a arrecadadora não ficar atrás, perdemos muitos direitos. No caso da Novela “Velho Chico”, eles queriam uma trilha que fosse forte, década de 70 e pós-tropicalista. A TV entrou em contato com a própria editora e eles que negociaram tudo. Eram muitas músicas, tudo dividido entre os vários autores e intérpretes, com porcentagem para a editora. Eu não assisti um único capítulo, não gosto de novelas, mas os amigos me mandavam os trechos com a música. Ficou lindo! Eu até comprei o primeiro disco.
Wellington – E tendo sido gravado por tantos intérpretes, ainda há alguém que nunca gravou suas composições e que você gostaria que gravasse?
CF – Ah! (faz uma pausa demorada e suspiro profundo). Eu sonho com Maria Bethânia gravando uma música minha. Acho que tá na hora, né? (risos).
André – Com mais de 50 anos de Brasília, muitas de suas letras e poemas continuam a se referir ao Piauí. Brasília não foi capaz de lhe provocar lembranças que pudessem ser cantadas?
CF – Brasília pra mim é uma incógnita. Eu vivo na minha quadra, mas não vivo a cidade, não criei raízes. Também não quero voltar pro Piauí, meu lugar agora é Brasília. Essa cidade tem essa vantagem: você pode se esconder aqui. Eu tenho muitos parceiros em Brasília, tenho trabalhado com Túlio Borges, Ana Reis, e outros amigos, mas minhas letras continuam a falar do Piauí.
Wellington– Você é uma pessoa feliz?
CF – Sou. É muito pretensioso dizer isso, mas sou. Enxuguei meus desejos e eles estão do tamanho que quero. Gosto do que faço, fico feliz quando lanço um livro, quando alguém grava uma canção minha. Há um pouco de vaidade nisso? Sim, há. Fiz até um versinho, “Acho que sou feliz”, que diz: “eu quero tudo o que tenho, só desejo o que posso, E sou da minha idade, será isso a tal felicidade?”
Digamos que é querer demais
que o laço que me prende a ti
resista a um temporal maior
não, meu bem, já e demais.Por um triz, Clodo, Climério e Clésio, gravado por Nara leão
40 ANOS DE SÃO PIAUÍ
Em novembro de 2017 completam-se 40 anos que os irmãos Clodo, Climério e Clésio lançaram o LP “São Piauí”, elogiado pela crítica devido a qualidade das músicas. Eram 12 canções, quatro de cada um, com suas semelhanças, mas cheios de autonomia e independência, por isso Climério afirma: “fizemos a reforma agrária musical”.
Com suporte da gravadora RCA, o lançamento do LP teve grande investimento. A pedido de Climério, a RCA enviou um fotógrafo ao Piauí para registrar um barco a vapor no Rio Parnaíba. Era a imagem que Climério queria na capa. O fotógrafo foi, mas o vapor não existia mais, estava apenas nas lembranças do músico.
No show de lançamento, um texto de apresentação assinado pelo cineasta Vladimir Carvalho dizia: “Carregando o sobrenome Ferreira, como o capitão Virgulino, eles disparam suas violas e guitarras como cangaceiros – arautos dos ritmos”.
DISCOS LANÇADOS
São Piauí – 1977 (RCA), produzido por Ednardo.
Chapada do Corisco – 1979 (CBS), produzido por Fagner.
Ferreira – 1981 (RCA), produzido por Dominguinhos.
A Profissão do sonho – 1989 (independente)
Clodo, Climério, Clésio – 1991 (Som da Terra)
Afinidades – 1993 (independente)
CD Tiro Certeiro – 2001 (reunindo faixas dos CDS anteriores)
CD Canção do Amor Tranquilo – 2001 – CD-Solo de Climério.
LIVROS DE CLIMÉRIO
Memórias do Bar do Pedro e outras canções – 1975
Canto do Retiro – 1977
A Gente e a Pantasma da Gente – 1978
Alguns Pensames – 1979
Essa Gente
Artesanato Existencial – 1998
Pretéritas Canções – 2006
Memorial de Mim – 2007
Da poética Candanga – 2010
Poesia Mínima e Frases Amenas – 2011
QUANDO SE OLHA DE FORA
Climério acredita que ao se distanciar do Piauí conseguiu olhar de outra forma e compreender melhor o piauiense. Transformou suas reflexões em verso. Se piauiense, veja se se reconhece:
Os do Piauí
O querer piauiense às vezes é seco
A fala é lenta, arrastada, preguiçosa
A rua em que moram é quase um beco
E a frase, quando dita, é amorosa
A mansidão por um nada vira guerra
As amizades são verdadeiros pactos
A paixão maior deles é pela terra
Essas almas têm espinhos feito cactos
(Entrevista publicada na Revestrés#28, em janeiro de 2016)