Por Samária Andrade | Fotos: Mayra Azzi

Um aviso nas redes sociais pedia: “Doe suas panelas velhas!” O complemento avisava: “Também vale tampa e lata de tinta vazia”. O pedido era real. E também já servia de spoiler para a performance Batucada, de Marcelo Evelin, coreógrafo, pesquisador e performer piauiense, que vive e trabalha entre Teresina e Amsterdã. A peça Batucada, criada em 2014 e já apresentada em vários países do mundo, foi exibida pela primeira vez na capital paulista nos dias 5 e 6 de setembro na programação de abertura da 36ª Bienal de São Paulo, a mais antiga bienal de artes do mundo depois de Veneza – e, também, uma das mais relevantes.  

Batucada, de Marcelo Evelin: ingressos esgotados na abertura da 36ª Bienal de São Paulo e uma das obras mais comentadas

Antes do espetáculo, a curiosidade sobre Batucada aumentava. Além de Marcelo Evelin ser hoje um um dos coreógrafos brasileiros com maior ressonância internacional – diz o próprio site da Bienal –, outro aviso nas redes sociais repercutia. Desta vez, uma convocatória para participação na performance procurava “cidadãos, artistas, ativistas, mulheres e homens trans e cis, não binaries, de todas as sexualidades, com ou sem nenhuma experiência em arte contemporânea, de qualquer grupo étnico ou classe social, que tenha entre 18 a 90 anos”. A única exigência era: “que queiram batucar em panelas e latas, que queiram trazer seus corpos pra luta, que queiram performar uma ficção”. A convocatória atraiu quase 300 inscritos de diversos estados do Brasil. A ideia inicial era selecionar 50 participantes. Por questões de segurança e para permitir mais espaço ao público, que àquela altura já disputava os ingressos, a organização reduziu o número de performers. Ficaram 35, sendo um o próprio Evelin e mais três artistas da Demolition Incorporada, plataforma de pesquisa e criação em dança do coreógrafo.

Com suas panelas e latas em punho, os 35 performers repetiram o que essa peça já conseguiu provocar outras vezes: vibraram juntos até uma energia – ritmada, insistente – tomar conta do espaço, num espetáculo onde o som manda no corpo. Não há roteiro a ser seguido. Batucada é o tipo de peça em que Evelin investe: uma criação coletiva, sem hierarquia entre os participantes, uma experiência viva, que nem se repete, pois a cada acontecimento pode ser diferente, a depender dos participantes da vez. Evelin disse à Revestrés que, na Bienal, teve sorte: “A gente conseguiu um grupo muito musical, pessoas de gerações diferentes, todo mundo tocando muito e com uma compreensão do que é o trabalho. A gente teve sorte com esse grupo bonito”.

Panelas e latas em punho: 35 performers num espetáculo onde o som manda no corpo

O programa da Bienal afirma: “A performance cresce não pelo espetáculo, mas por contágio”. Ela Bittencourt, jornalista e crítica de arte em grandes publicações internacionais, foi assistir e disse que a apresentação “oscila entre batidas sensuais e uma confusão apocalíptica”. Ela também observou que os dançarinos ocasionalmente investem contra a plateia, “provocando colisões, mas também inspirando os espectadores a dançar e bater palmas”.

Em geral essa plateia está desavisada e fica surpresa, podendo interagir ou não com os dançarinos. Os corpos, com máscaras, sob o comando das batucadas em panelas e latas, passam a formar um ritmo comum e, em todas as apresentações, já não cabem mais no espaço físico onde estão. Na abertura da Bienal, os corpos foram tirando peças de roupas e subiram escada acima, batendo, batendo. Logo estavam na porta do teatro, deitando-se nus, de bruços, na calçada. As batidas cessam. O público, se quer sair, deve passar entre os corpos estendidos. Não há ensaio que prepare para este momento – nem artistas e muito menos o público. O programa da Bienal diz: “Batucada rejeita o teatro como enclausuramento. A cidade não fica do outro lado da porta – é a continuação da performance”. 

Os dois dias de Batucada na Bienal aconteceram no TAIB (Teatro Israelita Brasileiro), na Casa do Povo – espaço histórico no centro de São Paulo, sob a curadoria de Benjamin Seroussi e Daniel Blanga Gubbay. O TAIB é um teatro subterrâneo que tem uma história política: funcionou, a partir dos anos 1960, sendo refúgio para imigrantes, ativistas judeus e artistas resistentes à ditadura militar brasileira. Depois de uma inundação em 2000, o espaço ficou fechado por quase 20 anos, com apenas algumas atividades pontuais. Agora ele é reapresentado ao público pela Bienal de São Paulo. E guarda ainda uma curiosidade: embora Batucada esteja se apresentando pela primeira vez em São Paulo, Evelin havia feito oficinas de criação da peça no TAIB, há mais de 10 anos. 

O público, se quer sair, deve passar entre os corpos estendidos. Não há ensaio que prepare para este momento – nem artistas e muito menos o público

Batucada estreou em 2014 no Kunsten Festival, em Bruxelas. Poucos meses depois se apresentou em Teresina, no CAMPO Arte Contemporânea, espaço criado e mantido por Evelin em sua cidade natal. O coreógrafo mantém a regra de sempre levar a Teresina os espetáculos que exibe no mundo. Batucada foi apresentada quando o CAMPO ainda funcionava num antigo galpão de supermercado no bairro Dirceu – um dos mais populosos de Teresina (hoje, o CAMPO se abriga em um espaço de uma construtora, no bairro São João). 

A reapresentação de Batucada é uma espécie de retorno, por vários motivos, entre eles o momento atual no país. A última exibição pública da peça no Brasil havia ocorrido em Recife, em 2018. Sem meias palavras, Evelin relembrou em suas redes sociais: “Foi na véspera do dia fatídico da eleição, quando o capiroto se tornou presidente”. O artista considera que a peça esteja, de alguma forma, conectada com algum tipo de acontecimento simultâneo no Brasil. “Quem sabe essa semana que vem vamos estar batendo panelas com nossos corpos em fervo para comemorar mais uma vitória da democracia brasileira” – escreveu. Foi premonitório. Batucada se apresentou dias 05 e 06 de setembro. Cinco dias depois, no dia 11 de setembro, em Brasília, era anunciado o resultado do julgamento histórico que, pela primeira vez, condenou um ex-presidente e sete generais por tentativa de golpe de Estado e outros crimes.

Ela Bittencourt listou, para a Artsy Editorial, grande plataforma online de artes, as 8 obras mais comentadas da Bienal de São Paulo 2025. Entre elas está Batucada. A crítica afirmou: “Ao emprestar uma forma tão dramática à ideia de que os corpos humanos são contingentes uns aos outros, Evelin encapsulou perfeitamente a noção de responsabilidade comunitária. A obra representou um apelo urgente por atenção, hospitalidade e cuidado, que está no cerne desta Bienal.”

Em 2015, poucos depois de estrear em Bruxelas, Batucada foi apresentada em Teresina: Evelin mantém a regra de levar à sua cidade natal os espetáculos que exibe no mundo.  Nós estávamos lá: a plateia, muitas vezes surpresa, decide se interage ou não com os dançarinos. Na foto, feita por Paulo Fernando, aparecem Luri, Rafaela, André, eu e Amora.

Contente com a repercussão de sua Batucada, Evelin se diz curioso para saber como a notícia está sendo recebida no Piauí: “Nós tivemos poucos artistas do Piauí em Bienais. Isso é importante não para mim, individualmente, mas para que a gente perceba que também faz parte do movimento de arte do Brasil e do mundo”.  

Batucada é uma tríade, composta ainda pelos espetáculos Barricada e Bananada. O programa da Bienal ainda diz sobre a peça apresentada por Evelin: “Inaugurar o programa desta Bienal com Batucada é um compromisso. Uma recusa a começar em Silêncio”. 

Que a peça de Evelin quebre o silêncio muitas vezes imposto no Piauí à sua persistente arte contemporânea. E que, a partir dessa repercussão, Batucada seja um viajante que ande novas estradas. 

Nesta edição, a Bienal de São Paulo tem como tema “Nem todo viandante anda estradas” – verso da escritora Conceição Evaristo no poema “Da calma e do silêncio”. A Bienal de São Paulo ocupa os três andares do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, em São Paulo, onde acontece desde 1957, com algumas obras ocorrendo em áreas externas. A exposição, com visitação gratuita, fica aberta até o dia 11 de janeiro de 2026.

***
Para saber mais sobre a Bienal de São Paulo 2025, acesse:https://36.bienal.org.br/

***
Samária Andrade é Jornalista, Doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília) e Professora de Jornalismo na UESPI (Universidade Estadual do Piauí).