Texto da SÉRIE JUNTA X – Festival Dança e Contemporaneidade –, que completou 10 anos de realização. O JUNTA é um acontecimento difícil de definir, já que é muito mais que dança; talvez esteja melhor representado na palavra – também fugidia – contemporaneidade. Revestrés acompanhou a programação e traz textos sobre alguns dos espetáculos. São anotações movidas muito menos pela ideia de uma crítica formal e muito mais pelo que as atividades provocaram – e continuam reverberando. Acompanhe mais um texto da SÉRIE JUNTA X.

Por Samária Andrade e André Gonçalves | Fotos: Victor Martins

O ritmo repetido, repetindo. Bailarinos formam círculos, deformam rodas. Requebram, sorriem. A música é um clássico, não sai da cabeça. Estão “contando” a história de 30 anos de uma companhia de balé no Nordeste do Brasil – e também um tanto (se) desconstruindo.

Balé da Cidade de Teresina em OCO: Uma companhia de balé com 30 anos de atuação é algo raro em qualquer lugar do mundo | Foto: Victor Martins

Uma companhia de balé com 30 anos de atuação é algo raro em qualquer lugar do mundo. “É louvável, incrível, sabe? E numa cidade precária como a nossa!” – diz Marcelo Evelin, experiente coreógrafo piauiense, morando e trabalhando há anos entre Europa e Brasil. Estamos falando do Balé da Cidade de Teresina, companhia pública de dança contemporânea, mantida pela Prefeitura da capital e que, ao completar 30 anos, testou o quanto tem de contemporânea: convidou Evelin para criar uma peça comemorativa.

Marcelo diz que poucas vezes é convidado em Teresina. Há quem o ache moderno demais! Ou pense que pode ser caro demais – “o que não é verdade”, garante. Nos conta que ele e Bruno Moreno tinham acabado de criar a peça “Drama”, na Suíça, usando música brasileira, do trio carioca de música eletrônica “Tantão e os Fita” – nada convencional, como convém a Marcelo. A primeira ideia foi trazer “Drama” para esse momento do Balé da Cidade. Então chegou a vez de Janaína Lobo, coordenadora artística do Balé, ser menos convencional que Marcelo: “Não queremos nada que já foi feito, queremos uma coisa inédita”. Cerca de dois anos depois e após residências, conversas, ensaios, estava criado OCO.

“Não queremos nada que já foi feito, queremos uma coisa inédita”- Janaína Lobo | Foto: Victor Martins

O nome faz alusão a roda e remete ao próprio processo criativo do coreógrafo, que costuma trabalhar em rodas de conversa, com práticas circulares e a busca de um lugar não hierárquico. Há também a ideia de buraco, beira. “A beira tinha muito a ver com ser daqui, de Teresina, da gente tá sempre à beira de alguma coisa: de um golpe, de não conseguir pagar uma conta, de não entrar num edital”. Mas Marcelo não pensou em buraco com uma conotação necessariamente negativa, diz, “mas como lugar de transformação, de como, do buraco, talvez saia uma outra coisa”. Ele explica que já faz tempo que não tem uma ideia rígida sobre o que seja, na arte, bom ou ruim – “E acho que a dança me ajuda um pouco a não ter muito esse maniqueísmo, que acho que o teatro, às vezes, ainda tem”. Ele está mais próximo do conceito de Vazio-Pleno, de Lygia Clark. “Ela viu uma cesta no chão e pensou: o que faz a forma da cesta é o vazio que está no centro”. E continua: “Eu tô num momento muito Lygia Clark. Acho isso lindo: do nada, do vazio, talvez do silêncio, as formas podem surgir”.

Se o novo pode vir do vazio, do que ainda não existe, eles foram chegando ao espetáculo não como ideia pré-concebida, pronta, mas sendo elaborada nos processos criativos entre coreógrafo, bailarinos e equipes. Não exatamente “juntos”, mas “colidindo” – como Marcelo prefere. O próprio nome “Oco” surgiu nas rodas de conversa e ensaios. Alguém disse: “Ixi, isso tá um oco!”. Marcelo achou a palavra bonita e a anotou. Muitas ideias passaram pelo grupo e não se sustentaram: ter um vídeo com homenagem aos primeiros diretores da companhia, por exemplo. Isso terminou aparecendo metaforicamente na dança, no momento que eles chamam “redemoinho” e que é um dos mais bonitos do espetáculo: bailarinos caem, rolam, levantam, voltam para a roda, e continuam a cair, rolar, levantar e voltar à roda.  “A gente improvisava e um dia eles fizeram aquilo. Eu adorei e depois organizei. Muita coisa ali foi cocriada”. E assim, por meio da própria dança, homenagearam os que formaram/formam o Balé. “Tem uma coisa ali de gerações se sucedendo, de gente nascendo, morrendo, de vida em ebulição, nasce um, morre outro; morre um, nasce outro, até que no final tá todo mundo de pé de novo” – sugere Marcelo.

E como construir algo em comum não significa exatamente se juntar, mas colidir, nem tudo foi fácil. Enquanto uma companhia de dança costuma ter como método a atenção a regras, rigor e repetição nos movimentos, para Marcelo a improvisação é o próprio método. O coreógrafo pedia que o grupo improvisasse, eles iam para a coxia e de lá voltavam quase enfileirados. Marcelo falava: “Que linha é essa?!”. De outra vez, repreendeu: “Gente, vocês estão muito Monsenhor Chaves!” – referindo-se ao padre que dá nome à Fundação Cultural da Prefeitura de Teresina. Janaína interveio junto ao amigo: “Marcelo, eles estão desconstruindo, entendendo como você trabalha, é um processo”. Marcelo avalia: “Eles estavam acostumados com o lugar mais sério e poético da dança”. E o que o coreógrafo às vezes queria era um requebrado mais “boquinha da garrafa no fim de semana, entende?  Nada do reino do balé”.

“A dança vem saindo do lugar de ‘eu faço uma coisa que você não faz e é por isso que você vem me ver’ para ‘eu faço uma coisa que você também faz, sente, pensa’. E é por isso você vem me ver” – Marcelo Evelin | Foto: Victor Martins

Companhia e coreógrafo confiaram no processo, sem romantizar as dificuldades. Mesmo com 30 anos de existência e reconhecimento, o Balé da Cidade de Teresina não está livre das ameaças de cortes de orçamento que enxergam, na cultura, um alvo fácil. Marcelo entendeu que não deveria propor algo só celebrativo, mas que pensasse Teresina por um outro tipo de organização de sentidos – à beira de alguma coisa, o oco de onde pode vir algo original.

O Balé mereceu um figurino inédito, proposto por Gui de Areia, também em conversas com Marcelo. Eles buscaram um tecido nem leve, nem exatamente armado, que deu volume e beleza, e possibilitou os movimentos sem machucar os corpos. Na cabeça, algo do mesmo tecido, parecendo um turbante, mas bem mais como um laço, enorme.

A música escolhida, nem um pouco inédita, foi Bolero, de Maurice Ravel, composta em 1928, na França, famosa e executada no mundo inteiro em diferentes ocasiões. Tem andamento repetitivo e hipnotizante, mas especial pelas variações que consegue impor a uma estrutura simples. A obra é de domínio público, foi composta para uma peça de dança e é quase impossível que você nunca a tenha escutado. Diz a lenda que é executada em algum lugar do mundo a cada 10 minutos. Em busca de algo que tivesse ritmo marcante, a escolha recaiu em Bolero. O coreógrafo diz que teve que negociar consigo mesmo essa decisão, por ser uma música muito “surrada”. Depois se convenceu exatamente por “ser uma coisa barata e disponível, que todo mundo já ouviu e é usada em casamento, batizado, colação de grau. É incrível que uma música faça parte do senso comum do mundo. E a música é lindíssima!” Com apenas cerca de 15 minutos de duração, a saída foi repetir a introdução, chegando a 29 minutos de trilha, que não fica enfadonha e tem um resultado de beleza plástica impactante junto a coreografia.

Em um dos momentos mais bonitos, bailarinos caem, rolam, levantam, voltam para a roda, e continuam a cair, rolar, levantar. Não temos bailarinos sisudos, nem por isso menos sérios. | Foto: Victor Martins

OCO é mais que uma peça de dança: é parte do que a dança significa para Teresina e o Piauí. Marcelo diz que hoje entende que, com essa peça, feita para uma companhia de balé de Teresina, toda a sua história pelo mundo completa um círculo, fecha uma “roda”: “Eu fiz na minha casa, fiz perto de mim”. Depois conclui que a dança vem saindo do lugar de “eu faço uma coisa que você não faz e é por isso que você vem me ver” para “eu faço uma coisa que você também faz, que você também sente, que você também pensa. E é por isso você vem me ver”.

No final do espetáculo, no palco, todos sorriem. Não temos bailarinos sisudos, nem por isso menos sérios. Saímos contentes, como eles nos parecem. No final do espetáculo, estamos todos de pé.

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Samária Andrade é Jornalista, Professora de Jornalismo da UESPI (Universidade Estadual do Piauí) e Doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília).

André Gonçalves é artista, escritor, publicitário, Mestre em Comunicação e Doutorando em Filosofia pela UFPI (Universidade Federal do Piauí).

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FICHA TÉCNICA – OCO:
Coreografia: Marcelo Evelin com colaboração de Bruno Moreno
Elenco: Adriano Abreu, Hellen Mesquista, Natália Nascimento, Laryssa Oliveira, Agdayanna Nascimento, Alex Gomes, Rudson Plácido, Marcus Leal, Ana Paula Sousa, Dafne Castelo Branco, Luana Pérola, Mariana Nívia, Felipe Rodrigues, Mikael Costa.
Música: Bolero, de Maurice Ravel
Figurino: Gui de Areia
Design Gráfico: Sérgio Donato
Iluminação: Pablo Gomes
Ensaiador: José Nascimento
Professor e Produtor: Samuel Alvís
Secretária: Julianne Ferreira
Assessoria de Imprensa: Claryanna Alves
Coordenação Artística: Janaína Lobo
Direção Geral: Chica Silva
Realização: Balé da Cidade de Teresina

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