O livro nem tinha assim tantas páginas, mas o retrato na capa, pouco atraente, fazia-o parecer volumoso demais para o calouro de pedagogia. “Só li a orelha”, confessa. “O professor entrou na sala e disse ‘Carlos, diga alguma coisa sobre o livro’, aí eu perguntei se podia fazer um poema”, recorda. Ao consentimento do mestre, seguiu no improviso: “Os olhinhos de Trotsky, ah, os olhinhos de Trostky / parecem duas lanterninhas safadas na capa do livro”. Tirou nota cinco.
Totonho é Carlos Antônio Bezerra da Silva, nordestino, de Monteiro – cidade paraibana na divisa com o Pernambuco. Músico e compositor, é um artista da rima e da embolada – ou, como ele diz, “um rapper do mato”. “Uma vez eu fui fazer um show na Bahia e saiu no jornal: ‘O eletro-hard-forró-funk de Totonho’. Que diabo é isso?”, diverte-se. “Eu chamo de música brasileira de baixo clero”.
A pluralidade de definições não é exatamente um problema – desde que sua música esteja chegando às pessoas. “Às vezes eu acho que só escuta a minha música quem tem negócio comigo”, avalia. “Acaba se interessando pela personagem que eu sou”.
Não é difícil. Totonho coleciona histórias tão improváveis quanto divertidas, parece não caber direito nas roupas que veste e dificilmente tem seu timbre despercebido por onde anda – suas falas parecem sempre versos rimados lançados ao ar por acidente. Inspirado nos sambistas cariocas, define que “dizer” é seu ofício: “Música pra mim é, em primeiro lugar, o que você tem a dizer”, defende. “Não pode ser só um conjunto de palavras bacaninhas para balançar”.
O menino paraibano, caçula de sete irmãos, não tinha nenhuma perspectiva de ser artista – o pai matava bodes para sustentar a família e a mãe era empregada doméstica. É a ela que presta homenagem no disco “Samba Luzia gorda”, lançado em 2018. Colorida no computador, a capa é uma fotografia rara de Luzia, tirada pelo seu patrão em momento dramático e cotidiano antes das refeições. Reforçando a ode às mulheres que admira, o disco também é dedicado à vereadora assassinada Marielle Franco.
“Meu pai fazia versos mal feitos, que não rimavam direito. Ele acertava na trave ou chutava para fora. Com o tempo eu percebi que acertar na trave era mais difícil que acertar o gol”.
Da mãe, herdou o jeito na cozinha e, do pai, o talento de rimar. “Ele era um repentista frustrado”, diz acrescentando que, nos anos 1970, a cidade em que nasceu era considerada a Meca dos repentistas. “Meu pai fazia parte da Ordem do Pé Quebrado, que era para onde iam aqueles que faziam versos mal feitos, que não rimavam direito”, continua. “Ele acertava na trave ou chutava para fora”, explica. “Com o tempo eu percebi que acertar na trave era mais difícil que acertar o gol”.
São esses versos, vistos como “mal feitos” aos olhos – e aos ouvidos – do padronizador, que caracterizam a música de Totonho – além, é claro, de críticas sociais tão claras quanto certeiras. No seu mais recente disco, financiado por uma vaquinha virtual no Catarse, a faixa “Tem mais igreja do que supermercado”, sem arrodeios, dá o recado repetido no refrão insistidamente, como um mantra.
Compondo desde criança, gravou o primeiro disco com selo de uma gravadora, a Trama, em 2001. “Fui o único contrato do Miranda para lançar quatro discos”, relembra empolgado. “Só que dois meses após lançar o segundo, a gravadora quebrou”. A música brasileira, sobretudo a internet, já tinha ali um álbum que, misturando eletrônico e repente, parecia mesmo vir de outro planeta: Sabotador de satélites.
“Eu fiquei tão apaixonado por Sabotador que passei dez anos sem conseguir gravar nada”, confessa Totonho, que acabou, ironicamente, se sabotando. Os sons, únicos e experimentais, que tinham a intenção de imitar naves espaciais, são frutos da brincadeira de Totonho e o produtor Alexandre Kassin em teclados Casio Tunes. As letras, que viajam em referências pop como Super-Homem, Jaspion e Rita Lee, trazem consigo o medo e a angústia que só reflexões profundas – infinitas como a solidão do espaço – podem despertar.
Sabotador tem faixas com a banda londrina Asian Dub Foudation e levou Totonho, na época, a uma turnê pela Inglaterra e Rússia. Até hoje rende frutos: recentemente recebeu a notícia de que Eu mandei o meu amor pro espaço, a balada-triste-existencialista, será gravada no próximo trabalho de Ney Matogrosso.
Totonho coleciona parceiros musicais a quem frequentemente empresta suas canções ou aparições em shows: Moreno Veloso, Caetano, Otto, Adriana Calcanhoto e Geraldo Azevedo são alguns dos amigos. Rita Ribeiro é, talvez, a cantora que mais o gravou – foi ele quem batizou o terceiro disco dela, Tecnomacumba. Ao lado está o também maranhense, Zeca Baleiro, para quem Totonho escreveu Ohaio e cuja música mais famosa, Telegrama, é uma resposta para a letra de Glaciais.
De todos os artistas a quem conheceu, Totonho, inquieto, ainda tem um sonho: compor com o tropicalista Tom Zé. “Venho estudando como ele compõe e acho que tem uma coisa parecida comigo: pra ele, a palavra manda”, define. Foi movido por esse objetivo, aliás, que enviou a demo de Samba Luzia gorda para o ídolo ouvir. Os comentários, que chegaram por e-mail, viraram o encarte do disco onde Tom Zé encontra uma razão para os fãs de Totonho existirem: “seu trabalho tem sempre surpresas e ângulos inesperados”.
“Tom Zé arranca o som da palavra”, elogia o músico. “É como se os arranjos dele quisessem sair fora da palavra, como se fossem uma roupa muito sofisticada para valorizar a palavra que tá ali dentro”, continua. “Então eu sou como ele: um tangedor de palavras”.
Além do apreço pela palavra cantada, os artistas, de gerações diferentes, carregam outra coisa em comum: uma certa ânsia por estudar ritmos. Bem como Tom Zé fez em outras décadas com o Samba, o Pagode e a Bossa, Totonho tem seguido resgatando ou inventando estilos antes inexistentes, como o Hip-hop do mato. O próximo disco, adianta, será chamado de Cabras na pista e promete ser um pancadão, algo que, na nomenclatura de suas invencionices virou Funk rural. “Quem não quiser tirar as coisas do lugar, que não escreva nada”, desafia. “Arte é absolutamente risco”.
Publicado em Revestrés#42 – julho-agosto 2019.
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