Há mais ou menos um ano, o vídeo de uma figura de cabelos vermelhos dançando entre carnes e legumes no Mercado Popular de Fortaleza estava sendo lançado. A musicalidade irreverente unindo brega, forró e eletrônico, as roupas customizadas e a letra simples, direta, mas envolvente de “Laricado”, encantavam o Ceará e o Nordeste. Era o começo de Getúlio Abelha. 

Hoje com mais de 100 mil visualizações, o hit gravado lhe rendeu popularidade e comparações como “David Bowie do Ceará”. Com letra composta quase que instantaneamente “depois de uma noite sóbria e entediante no bar da lôra”, figurino costurado de um vestido velho, uma blusa roubada da mãe e duas sacolas de lixo, uma música divertida sobre sentir fome surgiu. Entre as peculiaridades do clipe, está o orçamento: um saco de acerola, uma garrafa de água e o transporte até o mercado. Na volta a pé para casa, a aposta de um sucesso em mãos. 

Getúlio Abelha | Foto: Moura Alves

“De alguma maneira, tinha uma estratégia ali, porque foi nesse momento que eu definitivamente decidi sair do meu círculo e realmente abranger, chegar a outros lugares. Na época, eu pensei: ‘É, agora eu vou chutar outras portas, já chega de ficar aqui.’ Eu percebi que eu queria chegar a mais pessoas, ser mais popular”, relembra Getúlio. Mas sua vontade não se limitava a isso. “Eu quero ter a possibilidade de convidar vários amigos e pessoas interessantes que tão aí em seus cantos, reunir e produzir algo que possa chegar a lugares maiores”, acrescenta. 

Antes de tudo, o artista começa sua história em Teresina, lugar em que viveu e sentiu desde a infância até a adolescência. Durante a tarde da entrevista, de volta à sua cidade natal, dividimos um pedaço de bolo em uma lanchonete no centro da capital piauiense. “Eu sinto saudades disso, não tem em nenhum outro lugar”, refere-se à bomba, famoso salgado teresinense, acrescido a lista do pedido.  

Getúlio morou no centro da cidade, frequentou escolas do bairro, caminhou por entre as ruas cheias de memórias e respirou cultura do Theatro 4 de Setembro, da Praça Pedro II e de toda a movimentação do vai e vem de pessoas desde sempre. “Eu estive cercado por esse lugar. A minha referência daqui é Teresina inteira e tudo que tá aqui dentro”, pontua. Enquanto dividíamos o salgado, em cada abocanhada conversávamos. Uma senhora se aproximou e disse reconhecê-lo, Getúlio sorriu e impressionou-se: “E tu me conhece?”. 

Apesar de ter crescido na capital piauiense, ele conta que só pôde realmente amadurecer artisticamente em Fortaleza, para onde se mudou com pouco mais de 19 anos para cursar Teatro. “Lá eu descobri o que eu não queria fazer da vida na academia”, relembra. “Vou fazer 27 esse ano, já faz um tempo isso”, sorri, assustado. Durante esse tempo, ele se redescobriu como artista, músico, com uma personalidade autêntica e um modo urgente de ser. 

Através de seus vídeos, Getúlio mostra que, apesar das dificuldades da produção independente, com humor, sarcasmo e muita crítica, é possível lançar um trabalho reflexivo e diferente. Com referências do Cinema da Boca do Lixo, movimento underground brasileiro do final da década de 1960, que influenciou as produções cinematográficas dos anos 1970, ele utiliza das ferramentas que estão ao seu redor para criar arte a baixo custo.  

Suas ideias e criações são expressas aliando o deboche e o talento. Ao misturar forró eletrônico e desconstrução de gênero e sexualidade, Getúlio denuncia o machismo, produzindo e performando músicas de forma livre e desconstruída. “Eu pego do forró o que é conveniente e jogo fora o que não presta”, resume. 

Em seu trabalho, os estereótipos do mercado fonográfico do gênero musical são rompidos. O envolvimento de questões pessoais, políticas e todas as formas de prazer são descobertas e redescobertas nas suas músicas e apresentações em shows e festivais. Getúlio demonstra que há lugar para o LGBT no forró, usa das variações linguísticas do piauiês para conectar o popular ao descontruído e dar voz a si, ao seu corpo, a suas vontades e às minorias. Ele não busca chocar uma sociedade vedada pelo conservadorismo, mas somente ser e fazer o que lhe faz ser Getúlio Abelha. As críticas aos seus traços, a forma como se portar e a cobrança pelo “cabra macho” nordestino nunca lhe couberam.  

Com a ideia de não se render, Getúlio bate de frente contra os dogmas religiosos e, de forma desbocada e direta, resume a liberdade sexual e as infinitas possibilidades de prazer ao afirmar que não ter uma buceta não significa não dar. A música Tamanco de Fogo, a preferida do artista, debocha e abomina a pressão religiosa que insiste em dizer como amar e como se relacionar. Getúlio prefere ficar com seus próprios capetas. “É existir. Eu só existo e acredito na presença das outras pessoas perto de mim. Tamanco de fogo é sobre um monte de corpos”. 

Getúlio Abelha | Foto: Moura Alves

No seu último single, Aquenda, o cantor brinca com a regionalidade das palavras, denuncia a ditadura e a homofobia, ao mesmo tempo que demonstra como a diversão, a alegria e o prazer podem ser uma arma de luta e não de rendição das minorias contra a repressão. “Eu precisava enquanto artista estar me colocando ali, me jogando em questões, jogando meu corpo, produzindo e não deixando a peteca cair com o novo governo. Foi uma espécie de tipo ‘ah beleza, Bolsonaro foi eleito? Damares é ministra do carai de asa? Pois vamos se juntar. Eu não vou parar, vou botar um monte de viado, sapatão e travesti, vou lançar música falando sobre isso, vou jogar questão papum, é isso. É uma emergência”.  

A intensidade e a urgência de existir como artista formam as infinitas possibilidades de Getúlio, que pode um dia estar cantando sobre corpo, sobre fome ou sobre o amor, mas ainda assim criando politicamente. Para ele, arte é sobrevivência e sobre vivências. “Eu crio uma linha aqui ao meu redor de coisas, de um universo que eu tô a fim de trabalhar e aí, a partir do momento que eu consigo criar estrutura para trabalhar isso, eu vou pegando elementos desses universos e vou juntando, então surge o monstro que tiver que surgir. É isso”, conclui.  

O coração e a regionalidade de Getúlio são plurais, assim como sua obra. É cidadão meio teresinense, meio fortalezence, meio todo o mundo.  

Em meio ao atual contexto social e político, Getúlio sabe da responsabilidade de fazer arte em um país que parece se esforçar para boicotar a cultura. “Quando você está produzindo arte, já não tem como não ser político, mesmo se estiver falando só de amor. Porque ser político é sobre você persistir e ter esse modo de vida que você acredita, que não é tão sistemático”. Com planos de expandir, recriar e ousar universos, Getúlio planeja um disco – uma herança artística dele para o mundo. Mesmo com as dificuldades de ser um artista independente, o seu monstro irá surgir. “Há um universo de coisas que tenho para dizer e não foram ditas ainda”. 

 

(Publicada na Revestrés#41 -maio-junho de 2019)