Havia notícia para todos os gostos naquele 7 de abril: Brad Pitt tinha novo afair, a ciência estava descobrindo um possível alvo terapêutico contra o câncer e uma van desgovernada avançou contra uma multidão em Munster, na Alemanha. A imprensa no Brasil, por sua vez, transmitia ao vivo mais um episódio da série policial que se tornou a política no país. Diretamente do ABC paulista, o ex-presidente Lula entregava-se à Polícia Federal. Na capital mineira, mãe e filha, que assistiam a tudo pela TV, se entreolharam: “Agora só tem um jeito”, resignou-se a matriarca entre a ternura e a cumplicidade: “Ninguém solta a mão de ninguém”.
Naquele mesmo dia, Thereza pelejou para se concentrar na reunião do grupo de pesquisa que integrava, na Universidade Federal de Minas Gerais – a UFMG, onde fazia mestrado em Comunicação. Em sua mente o consolo da mãe ainda ecoava e, como se para passar o tempo do compromisso acadêmico que se estendia, ela rabiscou de caneta tinteira preta, numa folha A4 branca, uma espécie de desenho-manifesto com a frase que sua mãe dissera.
“Eu senti que precisava fazer alguma coisa sobre essa desesperança”, diz em entrevista. “Fiz o desenho rapidão e fui correndo copiar antes que a xerox fechasse”. O resultado foi uma dúzia de lambes, que Thereza espalhou nos muros e postes da cidade ao cair da noite.
Thereza Nardelli é uma jovem mineira de fala mansa e articulada – sua pele muito branca contrasta com o cabelo, tão preto quanto o delineador que usa para contornar os olhos. Faz pouco mais de um ano que ousou uma reviravolta em sua vida profissional – cientista social por formação, foi no mestrado que começou a desenhar para driblar o estresse das leituras e orientações exaustivas. Os desenhos foram se acumulando e, um dia, quase que de brincadeira, com agulha de costura e nanquim, testou tatuar um coração em sua própria perna. Surgia ali a sua nova profissão.
Cinco meses após colar os primeiros lambes, enquanto se arrumava para ir às ruas no protesto das mulheres contra o, até então, candidato a presidente da República, Jair Bolsonaro, Thereza resolveu lançar o desenho em sua conta no Instagram. Naquela data seu perfil somava pouco mais de sete mil seguidores e reunia seus primeiros riscos como tatuadora. Usando a hashtag #EleNão, a postagem teve pouco mais de mil curtidas.
Um mês depois, o domingo de segundo turno nas eleições brasileiras foi a deixa para um resgate da ilustração no Instagram – uma polarização política acentuava-se como poucas vezes na história do país e especialistas, depois, comprovariam: não era apenas uma sensação. Desta vez, com fundo na cor púrpura, o desenho de duas mãos dadas acima de uma rosa espinhenta – cuja raiz se consegue ver na base flutuante – dava o recado: “Ninguém solta a mão de ninguém”. Como uma peça inusitada do destino, a mensagem parecia unir milhões de pessoas que, naquela ocasião, compartilhavam sua solidão com o celular. O buzz foi instantâneo.
“Três dias depois eu estava embarcando para a Europa a trabalho e não parava de receber notificações”, relembra Thereza, que viu em poucas horas seu número de seguidores na rede saltar de cinco para 30 mil. “Muita gente repostando, comentando, me marcando”. Foi preciso, mais que metaforicamente, entrar em modo avião.
No começo, ela tentou acompanhar e organizar tudo. “Eu pesquisava por hashtag e olhava todas as marcações”, revela. Em algum momento entre a apuração dos votos e o resultado final das eleições, a coisa saiu do controle: famosos como Bruna Marquezine, Pablo Vittar e Samantha Schmütz repostaram a arte de Thereza em suas contas. E, como se costuma dizer no jargão da Internet, Thereza viralizou.
Ninguém, nem mesmo a mãe de Thereza, ao dizer a frase solta pelo ar, sabe explicar de onde ela veio. Há, no entanto, um consenso sobre o que ela pode ter representado: a mensagem certa no momento preciso. “Eu queria dizer algo forte que revigorasse o sentimento de união”, explica a artista. O altruísmo de Thereza, embora acolhido por pessoas com a mesma inclinação política, foi também gatilho para tudo que há de mais cruel e perverso na Internet.
“O que mais me marcou foi um comentário numa matéria que saiu no G1”, diz. “Pra que eu fui ler os comentários, né?”, ri. No texto, que destacava o desenho mais famoso de Thereza e trazia junto uma foto dela, um sujeito assinando como José Benedito, escreveu: “Cara de comunista, parece Elis Regina no auge do pó”. “Se soltarem as mãos começam a roubar dinheiro público”, digitou Mario Souza atrás da tela de um computador. E outro, com a alcunha de Helmut, desceu até um nível mais profundo de grosseria: “Eu gosto quando elas, mas elas de verdade, não querem largar da ‘minha’”.
Na tarde daquele 29 de outubro, Thereza recebeu uma mensagem da repórter Thais Pimentel, correspondente da Rede Globo em Minas, havia lhe entrevistado há poucos dias. “Você tá bem?”, indagou a voz do outro lado da linha, preocupada com as erupções de mensagens ofensivas na matéria que assinava. “Eles ocultaram e fecharam o espaço para comentários, não sem antes eu printar alguns”.
Os ataques grosseiros estavam só começando e abriam espaço para todo tipo de invencionice, algumas com aparência ingênua e até uma confusão sutil: um clickbait de um site chamado Jornal GGN trazia a manchete: “A origem do ‘Ninguém solta a mão de ninguém’”. O lead prometia uma versão oculta da história de um bordão, contada por “alguém que viveu aqueles dias” – mas o texto, de apenas um parágrafo, sem nenhuma referência ou citação atribuía a um “grito de pavor que ecoava nos barracos improvisados onde funcionava o Curso de Ciências Sociais da USP, nos Anos de Chumbo”. “Minha mãe nunca estudou na USP e eu não achei ninguém que confirmasse essa versão”, explica Thereza.
Junto com o assédio da imprensa, a ilustradora acompanhou seu desenho ser replicado em uma diversidade enorme de objetos e souvenirs Brasil afora: bottons, camisetas, placas em MDF, canecas, canetas, bordados e até tatuagens. “Era louco porque as pessoas me marcavam nos posts, tagueavam, às vezes só para se certificar de que eu tinha conhecimento”, relembra. “Muitos me creditavam, outros não, mas alguns era por não saber mesmo quem fez”, acredita ela, que diz ter recorrido ao registro da obra apenas como forma de se precaver contra coisas ruins ou usos desvirtuantes. O pouco lucro é repartido com a Casa de Referência à Mulher Tina Martins, que abriga mulheres vítimas de violência doméstica em Belo Horizonte. “Quando vejo que é uso pra economia doméstica da pessoa, eu não vou atrás, não”, justifica. “Meu sonho é que uma Renner dessas da vida, desavisada, usasse”, ri.
Em uma das mais tenras lembranças de Thereza, que nasceu no final dos anos 1980, contexto brasileiro marcado pela esperança de retomar a democracia, ela está com a mãe em protesto pelo impeachment de Fernando Collor – o primeiro presidente eleito pelo voto direto após duas décadas de regime militar no Brasil. O movimento ficou conhecido como “caras-pintadas” em referência aos rostos de jovens manchados de tinta como forma de expressão – talvez o despertar da artista que, do alto dos seus quatro anos, observava tudo atenta e segurando firme a mão da mãe para não se perder. “Luta social é articulação, não é fazer sozinho”, reforça. E resume: “Ninguém solta a mão de ninguém”.
Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro de 2019.
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