O JUNTA Festival – Dança e Contemporaneidade – realizou a sua décima edição: o JUNTA X (15 a 20 de outubro de 2024). São 10 anos realizando, em Teresina, Piauí, um acontecimento difícil de definir, já que é muito mais que dança: talvez esteja melhor representado na palavra – também fugidia – contemporaneidade. Em todas as edições, Revestrés esteve acompanhando a programação. No JUNTA X, discutimos entre nós alguns dos espetáculos e, agora, partilhamos nossas impressões, sensações e sentimentos, em textos assinados por Samária Andrade e André Gonçalves. São textos movidos muito menos pela ideia de uma crítica formal, e muito mais pelo que as atividades aqui elencadas provocaram – e continuam reverberando. A cada semana, partilhamos um texto novo. Acompanhe.

 

Por Samária Andrade e André Gonçalves

16 de outubro de 2024, Quarta-feira, “Manifesto Transpofágico”, Renata Carvalho (SP), Theatro 4 de setembro,  – Às vezes parece que, em Teresina, nada acontece na área cultural. Às vezes parece que tudo acontecesse ao mesmo tempo. E coisas surpreendentes, bonitas, impactantes.

Àquela noite, na programação do Junta X, o espetáculo que fomos ver era “Manifesto Transpofágico”, de Renata Carvalho (SP), atriz, dramaturga e diretora de teatro, também ativista dos direitos humanos e LGBTQIAPN+, com foco em pessoas trans e travestis.

Renata no palco, sozinha, apenas de calcinha, insistentemente convida a olhar para seu corpo | Foto: Victor Martins

Renata entra no palco sozinha, vestida apenas de calcinha e, insistentemente, convida a plateia a olhar para ela. Diz que ficará assim, sem roupas, de frente, “até vocês se acostumarem com o meu corpo”. Seu “Manifesto Transpofágico” questiona como as pessoas enxergam o corpo travesti. Renata apresenta muitos dados e historiciza o corpo e vivência travestis. O texto é longo e meio que jorra do corpo nu, como um depoimento. As informações as vezes impactam, fazem doer: violências sofridas, extermínios, expectativa de vida.

Parte do público é confrontado com o modo como gerações inteiras foram apresentadas aos corpos travestis: pela televisão, ora em programas vespertinos onde as travestis eram espetáculo, glamour e diversão permitida. Ali não era o corpo nu. Em geral, estavam com roupas volumosas e maquiagens exageradas (“Eu tô bonita? “Tá engraçada”, diz a canção de Linn da Quebrada). Ora em programas da madrugada, como os do apresentador Goulart de Andrade, que fez sucesso nos anos 1980 mostrando a noite paulistana. No auge da perseguição anti-LGBT pós-ditadura, cumpriu um papel revelando uma realidade nacional ignorada. Ao mesmo tempo, bateu recordes de audiência exibindo ao vivo uma aplicação de silicone industrial. Ali era o corpo nu –  explorado, mutilado, uma aberração. Deu munição à reprodução de estereótipos e preconceitos contra a população transgênero. Ao invés de ser anticonvencional, reforçou conservadorismos.

Renata Carvalho subverte isso tudo. É o corpo nu. Não precisa de adereços. É o corpo nu. E não é deformado, é bonito. Ela confronta o público com inteligência, informação, bom texto e presença de palco. Não perdeu o domínio de cena nem mesmo tendo interrompido sua interpretação por três vezes – para reclamar da luz vinda do fundo do teatro e do uso de celular pela plateia. Conduziu o público por terrenos complexos – da informação ao drama e ao riso. Se diz uma “transpóloga”, combinando os termos trans e antropóloga, numa referência a sua formação acadêmica.

Na plateia, entre as fileiras apertadas, aquele corpo. Nu. | Foto: Victor Martins

Num segundo momento do espetáculo, Renata desce para a plateia e passa a fazer perguntas. Continua apenas de calcinha, passeia entre as fileiras apertadas de cadeiras do teatro. Se era o que queria, o público já tinha se acostumado com aquele corpo. Nu. Ela não força participações, levanta a mão quem quer responder. Corrige as respostas que considera erradas ou inadequadas de modo delicado, mas sem espaço para dúvidas. É ação educativa, mas muito mais política. Parabeniza as boas respostas em Teresina. A dramaturga já disse em entrevistas que toma cuidado até com o tom de voz que usa, para que “nada abale a fragilidade cisgênera e desvie do tema”.

Quis saber se, caso a víssemos na rua, ela passaria como mulher. Um rapaz ousou levantar a mão, mas se intimidou na resposta, que não foi afirmativa nem negativa. Ela teve que responder por ele: “não passava”. E explicou o conceito de passabilidade. Ficou visivelmente chateada com uma outra resposta. Outro rapaz disse que não se relacionaria com uma travesti porque “gosta de b*ceta”. Climão! É o risco que se corre ao abrir a participação ao público. Ao que parece, as mulheres presentes também não acharam a resposta sedutora. Assim, Renata, que queria denunciar a transfobia, denunciou também o machismo.

Mas naquela noite, no teatro, teve desabafos e intimidades partilhadas. Já quase não sabemos estar numa peça ou numa sessão de terapia. Uma mão levanta lá na outra ponta do teatro. É uma de nossas filhas, que faz um relato pessoal. Depois nos conta que uma amiga comentou: você teve coragem de falar isso na frente de seus pais?! Mal sabia, os pais ficaram contentes de ouvir.

Relatar a própria história é a arte dos sobreviventes | Foto: Victor Martins

 

Para o escritor Édouard Louis, sensação atual da literatura francesa, relatar a própria história é a arte dos sobreviventes, dos dominados. Por isso, diz ele, quem mais escreve autobiografia são as mulheres, os homossexuais, os sobreviventes de guerra e de campos de concentração. Por falar em campo de concentração, Primo Levi, que escreveu É isto um homem? após sobreviver a Auschwitz, disse: “Eu não sobrevivi e depois contei a história, eu sobrevivi porque precisava contá-la”. É essa a sensação ao ver o Manifesto Transpofágico de Renata: ela precisa contar, se sente impelida. A violência não interdita seu discurso, ao contrário: ao falar ela autoriza outras pessoas a também falarem.

 

 

***

Samária Andrade é Jornalista, Professora de Jornalismo da UESPI (Universidade Estadual do Piauí) e Doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília).

André Gonçalves é artista, escritor, publicitário, Mestre em Comunicação e Doutorando em Filosofia pela UFPI (Universidade Federal do Piauí).

***

FICHA TÉCNICA DO JUNTA X:

Direção geral: Datan Izaká, Jacob Alves e Janaína Lobo

Curadoria: Datan Izaká, Jacob Alves, Janaína Lobo e Mariana Pimentel

Direção de arte e design gráfico: Sérgio Donato

Produção: Wilena Weronez

Produção Circulação Junta Expandido: Datan Izaká e Tulipa Braga

Produção Incubadora: Hellen Mesquita

Assistente de produção: Paulim Beltrão Marathaoã

Fotógrafos: Victor Martins e Gelson Catatau

Vídeo: Kelson Fontinele

Assistente de direção técnica: Kassyo Leal

Iluminação: Ulisses Pimentel

Montagem Geral: Javé Montuchô e Philipe Marinho

Apoio: Anna Raquel, Savana Victória, Larissa Sousa

Comunicação: Joseph Oliveira, Mozart Menezes, Tertuliano Vicente e Abner Oliveira

Apoio geral: Casa Redemoinho de Dança, Corpo Rastreado, Escola Estadual de Dança Lenir Argento, SESC PI, Biblioteca Cromwell de Carvalho, Complexo Cultural Theatro 4 de Setembro, Pappardelle, Mercado do Pão, Consulado geral da França em Recife

Supervisão administrativa: Alba Roque e Tamara Andrade

Promoção: Ministério da Cultura do Governo Federal, Instituto Cultural Vale e Secretaria de Cultura do Governo do Piauí

Realização: JUNTA e PROMULTI

***