Com a morte de Torquato Neto, sua obra se agigantou. Textos jornalísticos, poesias e fragmentos de seus diários, em poucos meses foram compilados no livro Os últimos dias de paupéria (1973). Letras de músicas escritas em parcerias foram divulgadas, discos produzidos, colunas em jornais e a sua produção audiovisual, revisitadas. Quase tudo serviu e ainda serve de estudo entre pesquisadores no meio acadêmico, críticos culturais, jornalistas e curiosos. “Quantitativamente, a obra de Torquato cresceu muito após a sua morte”, avalia George Mendes, publicitário e primo do poeta.

 

Durante o período que os registros de Torquato estavam sendo cuidados por sua esposa, Ana Maria Silva de Araújo Duarte, achava-se que já teria se esgotado todo o legado deixado pelo poeta. Mas, passadas quase quatro décadas, constatou-se que ainda existia muita coisa inédita. Tudo porque, após George Mendes ter sido o escolhido por Ana para ser o curador do que seria o maior acervo de Torquato, muitas coisas foram descobertas.

“No final de 2009, a Ana me liga e me diz à queima-roupa: ‘Você quer receber o acervo do Torquato em Teresina? ’”, relembra Mendes. No que ele aceitou prontamente e recebeu o material no início do ano seguinte. “Entendi também que era um ciclo de vida que estava se encerrando para ela”, revela.

“Ana trabalhou ao longo de 38 anos defendendo a memória do Torquato como uma leoa. Ela zelou pelas coisas do Torquato, de certa forma colocando alguns entraves para que o mito que se formou sobre ele ganhasse determinadas características ou não, ou outras que ela achou por bem permitir”, afirma o publicitário, acrescentando que, ainda na mesma conversa sobre o acervo, questionou sobre que tipo de material iria receber. “Ela havia dito que tinha uns ‘troços’ e que eu poderia avaliar. Mas que achava que tudo o que já estava publicado do Torquato era o melhor dele, era a essência e, o que existia ainda, na sua avaliação, ficou abaixo do que foi mostrado”, explica.

Torquato escrevia 24h por dia, ele não se continha nunca” – George Mendes, curador do acervo de Torquato Neto, sobre a  grande produção, que corresponde a apenas 10 anos, entre os 18 e 28 anos do artista.

O que chegou para George Mendes, juntou-se às memórias que ele próprio vinha reunindo desde a morte do primo, época em que o publicitário passou a desenvolver um interesse muito objetivo para guardar as referências do poeta. “Torquato sempre foi um ídolo na minha vida”, revela.

Do que recebeu, Mendes descobriu o livro inédito O fato e a coisa, organizado por Torquato, e poesias da juventude que, reunidas, originaram o livro Juvenílias, ambos lançados em 2012. Também fotos pessoais e outras clicadas durante filmagens, roteiros originais escritos à mão de um filme que nunca foi gravado, diários mantidos no período em que o poeta fez internações psiquiátricas, discos e livros que pertenceram a ele, registros de matérias e colunas culturais dos jornais que trabalhou na época, cartas e cartões-postais trocados com a família durante sua estadia no exterior, letras e músicas datilografadas, referências de trabalhos que Torquato gostaria de ter desenvolvido. Além disso, outras tantas criações que ainda hoje seguem inéditas e que estão sendo reveladas para o público aos poucos.

George Mendes tem se dedicado a organizar e catalogar o acervo inteiro, identificar cada folha de papel, dividir tudo em pastas, avaliar o que ainda pode ser trabalhado e divulgado. “Pacientemente e com muita determinação, a gente está dando uma certa ordem a tudo isso. O meu papel diretamente é cuidar e revelar aquilo que eu posso ainda extrair desse acervo e deixar que as pessoas absorvam e construam as suas ideias a partir do Torquato. Eu não estou nem preocupado em concordar com a ideia de ninguém, não vou fazer isso nunca”, ressalta. A maior parte do acervo já está digitalizada e segundo seu curador, o site oficial do Torquato está sendo refeito para que o material seja disponibilizado online, que é uma iniciativa da Plug Propaganda.

Outras ações estão sendo encaminhadas, como o livro intitulado Fragmentos poéticos, a palavra em construção, um registro do processo criativo do anjo torto e que traz “cadernos escritos pelo Torquato quando os poemas e textos estavam nascendo, e as ideias estavam surgindo, que revela a forma como ele organizava as coisas para que sua expressão se constituísse”, de acordo com o curador. “Temos também um documentário sendo feito pelo Paulo José Cunha (primo de Torquato), dois CDs com letras inéditas intitulados ‘Entre nós’ e ‘Entre eles’, um almanaque, uma revista nos termos da Navilouca, que o Torquato concebeu, mas agora reunindo a palavra e os trabalhos de Torquato”, esclarece Mendes. Tudo ainda sem previsão de finalização.

Originais do roteiro do filme Terror na vermelha, de letras de músicas e outras parcerias também estão guardadas pelo documentarista e amigo de Torquato, Carlos Galvão, que desde a época da morte do poeta, reside no Rio de Janeiro. O que mais chama atenção do pequeno acervo de Galvão é parte da coleção de cordéis que teriam pertencido a Torquato Neto e que o influenciou durante algumas de suas produções. “Na época, os cordéis foram passados para mim pelo próprio Torquato e eu estou escrevendo sobre esse acervo, inclusive fazendo uma análise crítica das anotações que foram feitas por ele. Essa análise é um capítulo de um livro que estou escrevendo”, revela Galvão, acrescentando que pretende publicar o livro juntamente com um documentário que está sendo produzido em conjunto com o seu irmão, o fotógrafo e também documentarista Alexander Galvão, e que trará um curta-metragem super8 recuperado em que Torquato aparece como ator. “O documentário é um ponto de vista da memória da minha relação com o Torquato, onde eu abordo pontos que acho que estão meio obscuros e outros que não foram nem tocados”, esclarece.

Pela extensão e variedade, a impressão é de que tudo foi produzido em um período maior de tempo e não apenas em uma década, entre os 18 e os 28 anos do artista. “Torquato escrevia 24h por dia, ele não se continha nunca, estava sempre rabiscando, usando nem que fosse um guardanapo de papel na mesa de um bar. Ele sempre estava fazendo alguma coisa, e tinha uma propulsão à criação artística impressionante”, explica Mendes como uma forma de justificar a quantidade de trabalhos que ainda são feitos baseados na produção do primo.

A forma com que criava e se envolvia com diversas áreas deixa clara a multiplicidade de Torquato. Ser o curador do maior acervo do poeta, fez com que George Mendes se surpreendesse e ficasse ainda mais maravilhado com outras imagens de Torquato até então não tão claras. “O Torquato conhecido como um artista radical, profundo e um homem impaciente se revela nesses arquivos cantando o amor, a solidão e não apenas a morte; com letras cheias de lirismo e que falam de um sentimento que foge muito da percepção pública que se teve do Torquato na Tropicália”, conta animado.

“Ocupar espaço. Pelas brechas, é por elas”

A intensidade com que Torquato Neto viveu e as muitas formas como produziu, fizeram com que ele ocupasse inúmeros lugares. Entretanto, até hoje, o que o anjo torto deixou, nunca teve ocupação em um espaço físico oficial. Sua memória e história permanecem reclusas. O acervo principal do poeta, apesar de aberto para consultas, segue instalado em uma pequena sala da empresa de publicidade dirigida por George Mendes, em Teresina, e por iniciativa deste.

Mesmo tendo sido muitas vezes homenageado, Torquato Neto, ainda não tem um lugar para chamar de seu. Ele é lembrado eventualmente por homenagens em nomes de ruas, de campus universitário e em eventos – que não deixam de ser importantes – mas não são o suficiente, visto que não carregam a obra do homenageado. Segundo o jornalista Paulo José Cunha, primo de Torquato, que também conviveu com ele, as homenagens “não resolvem o problema da memória viva, que precisa ser reavivada o tempo todo”.

“Precisamos de um espaço dinâmico, com oficinas de leitura, poesia, redação, música, cinema, vídeo, com lugar para exposições, palestras, tudo! É o que eu chamo de ‘Espaço Torquato Neto’ – Paulo José Cunha, jornalista.

Paulo José Cunha afirma que é essencial que se crie “uma instituição capaz de manter viva a chama da rebeldia criativa de Torquato”, desde que não seja apenas um espaço para guardar a memória, os rascunhos e os objetos pessoais. “Precisamos mesmo é de um espaço dinâmico, com oficinas de leitura, de poesia, de redação, de música, de cinema, de vídeo, de blogs, de produção artística para a internet, com lugar para exposições, mostras, debates, palestras, tudo. É o que eu chamo de ‘Espaço Torquato Neto’, ideia que venho defendendo há mais de 20 anos”, enfatiza.

Uma proposta semelhante é pensada por George Mendes, curador do maior acervo do Torquato. Ele conta que já foi procurado inúmeras vezes, mas, em nenhuma, sentiu-se seguro para repassar tudo que foi reunido sobre o primo. “Eu tenho que ter a garantia que esse acervo está seguro, que vai ser bem utilizado, que ele não vai ser tratado como algo que você coloca no fundo do armário e esquece”, pontua, apesar de acreditar que a criação de um espaço para Torquato seja urgente.

Para Mendes, a cidade natal do poeta tem a obrigação de tratar melhor a memória daquele que é um dos nomes mais representativos do Piauí na cultura brasileira e é reconhecido como um dos poetas mais importantes do Brasil. “Preservar, entender e percorrer os caminhos de Torquato, serve como afirmação da própria identidade da cidade e do estado”, afirma. Partilhar todo o acervo com o mundo é uma necessidade. “Se a autoria é do Torquato, se a herança é do filho dele, o acervo não pode ser meu. E se não for aqui [em Teresina], o lugar de preservar a memória e história do Torquato, vai ser onde? ”, questiona.

Um espaço interativo criado para ser de Torquato faria com que muitas pessoas se aproximassem mais da memória do poeta. “O Torquato e a geração dele quebraram algumas barreiras e se impuseram sendo vanguarda, alterando comportamentos. Hoje, quando a gente está dando uma retrocedida, fica cada vez mais interessante chamar a atenção para essas pessoas que resistiram”, pontua Carlos Galvão.

Paulo José Cunha defende: “A imagem de Torquato está intrinsecamente associada à juventude. Os jovens de hoje esperam um espaço Torquato Neto em torno do qual possam levar adiante sua atitude transgressora, a provocação poética, a renovação e a contestação da caretice como lema e bandeira permanentes”. Ele finaliza: “Lembro de um texto de Torquato que diz: ‘Ocupar espaço. Pelas brechas, é por elas’. Instigante, né? ”.

Matéria publicada em Revestrés #33 – edição especial Torquato Neto.

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