– Bom dia! É aqui que tá acontecendo a seleção… 

– É sim, mas nós somos o grupo das 10h. Se você for das 8h, é naquela fila ali.  

 Eram oito e dez da manhã e um grupo de pessoas enfileiradas acompanhava a curva sinuosa da piscina, ao ar livre, num dia de sol bonito em São Luís. O vento denunciava a paisagem praiana – do terraço do hotel Rio Poty avistava-se o mar, um vai e vem de ondas tão agitadas quanto as pessoas que ali chegavam.  

 

Dou uma vista geral nos perfis: a maioria era jovem, descolada, estilosa, moças de vestido colado e salto alto, contrastando com mulheres de pochete e tênis colorido. Os homens variavam entre o estilo surf way, bombado de academia e vendedor da Chilli Beans. “Nossa, será que vai demorar muito pra começar?”, vira-se a moça em frente a mim na fila, fracassando na missão de esconder a ansiedade. “Faltei o meu emprego pra estar aqui”, explicou, enquanto checava as unhas enormes, tão vermelhas quanto falsas.   

Atrás de mim, uma advogada demonstrava impaciência com o nervosismo da colega à frente. “Já começou, bebê”, disse entre o deboche e o prazer. “Já estamos sendo observados” – ela apontou para as janelas do hotel, lá em cima, onde duas pessoas pareciam avistar a aglomeração de gente, uma delas com o celular em punho – nunca soubemos se eram hóspedes curiosos ou avaliadores encarregados da seleção de participantes para o Big Brother Brasil 19.  

O Big Brother Brasil é o maior reality show da televisão brasileira – a Rede Globo de televisão comprou a franquia da Endemol em 2002 e, desde então, entre sucessos e descrença, o programa é um dos grandes filões em receita da emissora – no ano passado faturou 200 milhões somente com as cotas de patrocínio master – empresas como Ambev e Nestlé estão entre os patrocinadores.  

Milhares de pessoas se inscrevem para tentar conseguir uma vaga na “casa mais vigiada do Brasil”. O período de inscrição para o ano seguinte inicia com a edição anterior ainda no ar. “Atenção você que está assistindo ao BBB18 e quer ser um participante em 2019 – as inscrições estão abertas no site!”, disse o apresentador Tiago Leifert na TV, durante a transmissão ao vivo em uma das noites de eliminação – chamadas, na gíria dos telespectadores, de noite de “paredão”.   

O chamado de Leifert faz a inscrição parecer um processo simples e ágil – na prática, são quase 100 questões pessoais a serem respondidas, que vão desde “Quantas tatuagens você tem e o que elas significam?” a “Qual o seu maior segredo?”. As questões parecem infinitas e o sistema trava muitas vezes até você completá-las. Além das perguntas, pede-se para anexar de três a cinco fotos, com recomendações de enquadramento (“de biquíni”, “só de rosto”, “corpo todo”, etc).  

Provavelmente o questionário passa por alguma espécie de triagem, com critérios mais sigilosos que os algoritmos do facebook – o programa não libera dados numéricos sobre quantas pessoas passam para a etapa seguinte, a presencial. Tudo o que você, caro leitor, pode fazer, é confiar ou não no meu relato. O relato de quem viveu um dia de quase futura ex-BBB 

Lá dentro formamos outra fila onde recebemos uma medalha com um número – a partir dali eu virei a 38.

A fila no hotel, em São Luís, foi entrando em grupos de 40 pessoas – lá dentro formamos outra fila onde recebemos uma medalha com um número – a partir dali eu virei a 38. Naquele dia eu vivi e integrei por uma manhã o que há de mais clássico num reality show: a formação de uma panelinha.   

 O meu bonde era formado pela moça das unhas postiças, seguida de mim, a advogada, uma professora de libras e um grafiteiro. Não sei por quanto tempo ficamos naquela fila, mas foi o suficiente para criarmos amizades verdadeiras na mesma intensidade com a qual estabelecemos o ranço – já tinha gente dividindo até o prêmio. Algumas amizades sinceronas, no entanto, não chegaram nem até a fase do grupo de discussão – o segundo momento da seletiva. Mas vamos por partes.  

Logo que recebemos o colar com o número somos encaminhados a uma sala ampla, uma das salas de reuniões do hotel, onde tocava música alta. Havia espelhos, poltronas, jogos de tabuleiro, livros de poesia e história, pincéis hidrocor e uma farta mesa de café da manhã. Fiquei ali aguardando sermos chamados para o que eu nem sabia que haveria. Lembro de ter me aproximado do espelho – uma menina que não gravei o nome me pediu um batom emprestado como se estivéssemos no banheiro de uma boate. Foi o único momento que cruzei aquela sala em direção a este que era o ponto mais disputado: homens e mulheres dançavam funk até o chão. Valia tudo pra chamar atenção.  

De repente, reparei que eu e o bonde formado na fila estávamos, coincidentemente ou não, no ambiente de decoração mais clássica, cujos móveis pareciam ter saído de um antiquário – era o único espaço com tapete persa e livros, logo identificamos o que parecia óbvio: era o espaço dos intelectuais, com todos os preconceitos que podem caber neste rótulo. Alguns companheiros, com receio do estigma, logo cuidaram em passear pelos outros espaços: a ala dos criativos, com papeis para colorir; dos estrategistas, com jogos de cartas e xadrez; e dos festeiros – o espaço com o espelho, aquelas mesas de balada que só cabem um copo de drink e um ipad “dando uma de DJ”, para usar outra gíria dos fãs de BBB, antes das nove da manhã. 

A sala seguinte tinha cadeiras enfileiradas, mas recomendam-nos ficarmos de pé. Uma bancada à nossa frente continha sete ou oito avaliadores – e este foi o grande plot twister para nós, a revelação de que a maioria daquelas caras estavam circulando entre nós, na sala anterior, enquanto achávamos inocentemente que estávamos apenas aguardando algo. Eles demonstravam pouca ou nenhuma emoção e seguravam pranchetas com papeis que, daquela distância – e depois eu confirmaria – pareciam ser as nossas fichas de inscrição – aquelas que preenchemos online. 

Uma mulher – que aparentava ser a mais velha do grupo de avaliadores – se apresenta e propõe um desafio impossível: tínhamos 30 segundos, nós, as 40 pessoas, para formar uma fila em formato de “U” em ordem numérica – sem, no entanto, olharmos uns para os números dos outros. É óbvio que deu a maior confusão – teve gente gritando, se empurrando, alguns querendo liderar, outros resistindo e outros, ainda, como eu, sem entender exatamente o que estava fazendo ali. 

 Eu só queria dizer que estava preparada para ser inteligente e triste. “Pois vai pra lá, inteligentona”, foi tudo o que a mulher, a debochada, disse. 

A mulher debochou de nós – e dali em diante, aliás, deboche virou o seu sobrenome. Ela começou a fazer perguntas de múltipla escolha – mas as escolhas eram, acima de tudo, dicotômicas. “Você prefere trair ou ser traído?”, “Viver um grande amor ou ganhar na loteria?”, “Ser imensamente feliz e burro ou inteligente e infeliz?” – nessa hora eu levantei a mão. Me surpreendeu a quantidade de pessoas contando abertamente seus episódios de relações extraconjugais – a advogada arretada narrou a ocasião em que instalou câmeras na casa do ex para pegar ele no flagra com a melhor amiga dela. Mas bem, eu… eu só queria dizer que estava preparada para ser inteligente e triste. “Pois vai pra lá, inteligentona”, foi tudo o que a mulher, a debochada, disse. 

Em seguida fomos divididos em grupos de 10 – entregaram um papel com uma historinha – uma total fanfic – e a tarefa era a seguinte: o grupo tinha que entrar em consenso e colocar os personagens em ordem de culpabilização. A história era toda, toda errada. Havia um menino que sofria bullying no colégio. O menino reclama com o diretor. O diretor se exime. O menino, certo dia, tem sua bicicleta roubada e, meio que para se vingar do bullying que sofria, espalha na cidade o boato de que foi o seu algoz o autor do roubo. Uma repórter que não checa muito bem as informações acaba divulgando a fake news e fim. Era tudo muito exagerado e sem fundamento, mas seguindo as regras e muito a contragosto da menina de unhas postiças, a nossa conclusão chegava o mais perto possível das minhas próprias noções de vítima e culpado.  

O Big Brother, para mim, sempre foi algo como um laboratório do comportamento humano, claro, sendo sempre um recorte do que pode haver de melhor ou pior vivendo por aí em sociedade. O fato de ser, entretanto, um programa de televisão, antes de tudo, certamente limita as experimentações – nada pode dar errado no horário nobre, tudo ali é feito para vender, ter audiência, mas nem isso tira o fascínio que são seres humanos testados em seus limites – seja físico (as provas de resistência) ou emocional (o confinamento). Quem está do lado de fora fica assistindo e julgando num exercício de empatia, conquista e desilusão: “mas que louco, acabaram de se conhecer e já viraram melhores amigos?”, eu pensava, antes de cair de paraquedas numa seleção e me pegar repetindo exatamente os mesmos atos. Defendendo com unhas e dentes uma fanfic. É tudo muito apressado e fulgaz e, se pelo menos de longe você aparentar que não leva nada ali a sério, o jogo acaba antes mesmo de começar. Talvez eu só tenha me tocado disso quando cheguei na etapa da entrevista individual: 

– Então, Luana, por que você quer entrar no Big Brother? 

– Porque eu acho que é um programa subestimado.  

– E se você for eliminada na primeira semana? 

– Tudo bem.  

– Você sabe que existe um grande estigma com ex BBB’s, não sabe? Os casos de ex-participantes que nunca mais conseguiram retomar suas carreiras. 

– Mas existem também os casos que despontaram em outras, como Jean Wyllys e Grazi Massafera. 

Àquela altura eu estava convencida de que o preconceito partia, acima de tudo, dos próprios integrantes da produção – apesar de não ter entendido bem se era algo proposital ou puramente ocasional. Era tudo muito ríspido e nada parecia feito para agradar. Voltei pra casa meio triste e eu nunca soube o resultado dessa seleção – nem pra avaliar se fui mal ou bem no teste, até porque é difícil fazer essa análise quando ninguém sabe, com exatidão, quais são os critérios. Pode ser que agora, enquanto você lê esse relato, eu esteja confinada em algum quarto de hotel prestes a entrar no jogo por um milhão e meio de reais, curtir festas patrocinadas, ganhar um carro após ficar um dia e meio em pé sem comer, beber ou fazer xixi. E, se você estiver mesmo livre para o entretenimento sem julgamentos, feche a revista e vá ver TV.  

Publicado em Revestrés#39 – janeiro-fevereiro de 2019.

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