O Bar e Restaurante Teatral La Clac é uma típica casa noturna na Avenida de Mayo, em Buenos Aires: charmoso, sem luxo, com cara de cult, empoeirado e antigo. Atrai os turistas pela promessa de bom vinho e pratos e pela decoração curiosa – nas paredes há de fotografias e discos antigos à bicicletas e roupas penduradas. Outra isca é o cartaz na calçada, que anuncia a atração musical. Àquela noite seria Jorgelina Piana, uma moça bonita de 37 anos que cantará tango e tem credenciais para isso: é neta do compositor Sebastián Piana – pianista argentino dedicado ao tango. Falecido em meados dos anos 1990 ele é autor de tangos clássicos como “Milonga Sentimental” e “Tinta Roja”. Embora hoje sua obra seja citada apenas entre os conhecedores mais tradicionais do tango, suas composições estão na lista de tangos históricos e já foram gravadas por artistas como Júlio Iglesias.
Do restaurante avista-se a escada que conduz ao subsolo, onde funciona o teatro La Clac. O palco é pequeno e sem acústica. As cadeiras parecem improvisadas, de vários modelos e cores. Ali, no subsolo, escutam-se as vozes que vêm do restaurante. Jorgelina Piana é acompanhada por um trio de bons músicos que parecem ter dispensado a produção: estão com barba por fazer, instrumentos gastos e sapatos também. A neta do senhor Piana tem as unhas de um vermelho intenso, mas nada no figurino lembra uma cantante de tango que está no imaginário da maioria dos turistas: não há vestido, flores, adereços. Ela usa uma calça comprida preta e blusa com pequeno brilho – a maior extravagância. Talvez isso explique a ausência de turistas, que não chegam ao subsolo, permanecem no restaurante. A plateia de Jorgelina não soma 20 pessoas. No entanto todos cantam juntos e se emocionam sinceramente quando a cantora chora ao oferecer uma música a uma amiga espanhola.
Para Jorgelina Piana os turistas não conhecem o verdadeiro tango argentino e se empolgam com bailarinos e figurinos. “A mídia não toca tangos clássicos, eles não dão audiência. Tocam apenas música da moda. É uma lástima!”.
Aquela era a primeira apresentação de Jorgelina depois de sua recente volta a Buenos Aires. Ela e o marido, o escritor Sebastian, viveram 12 anos na Espanha, onde nasceram os dois filhos do casal. Foram para a Galícia em busca de oportunidades, como muitos argentinos. Voltaram com a crise financeira na Espanha, que igualmente está fazendo muitos hermanos regressarem. Na Espanha, Jorgelina se apresentava em festas. De volta a capital portenha tenta reencontrar o tango que seu avô deixou de herança. “Chamar-me Piana tem um enorme peso. Eu não quero que pensem que uso o nome de meu avô, porém tenho que usá-lo porque devo ter compromisso com esse nome, compreende?”- afirma Jorgelina.
Ela interpreta músicas do avô e de outros compositores tradicionais, buscando algumas inovações estéticas, mas com o cuidado de não provocar rupturas. Reclama que os turistas não conhecem o verdadeiro tango argentino e se empolgam facilmente com bailarinos e figurinos – coisas que só distraem a atenção sobre o que deveria ser o principal. “Eu quero comunicar-me através da música” – argumenta, e responsabiliza a mídia pelo que chama o declínio do tango. “Os meios de comunicação não tocam tangos clássicos, eles não dão audiência. Tocam apenas música da moda. É uma lástima!”. Matias Zambrano, um dos produtores que tenta promover o tango clássico, arrisca uma interpretação complementar para o fenômeno: “Para que haja audiência é preciso haver um referente comum entre o público e a música, mas o tango clássico deixou de produzir esse processo de identificação com o público jovem”. E afirma que seu sonho é que apareçam mais cantoras como Jorgelina, dispostas a defender o tango. “Ela é genuína”.
Ela chora ao cantar. “Sofro não por desamor, mas por muito amor. Tenho uma vivência sentimental com o tango”. A pretensão da neta do compositor Sebastián Piana é viver de tango: “Esse é meu desafio e minha ilusão”.
Na seleta plateia, um dos que se emocionam com a cantante é Cláudio Manzi, outro amante do tango com pedigree. Cláudio é músico e neto de Homero Manzi, autor de muitas das letras musicadas por Sebastián Piana. Ele afirma que seu avó e o de Jorgelina não fizeram o tango como um fardo nem como algo comercial, mas porque amavam o que faziam. Como Jorgelina, Cláudio sente que tem um legado a defender: “Quando me dei conta de que Manzi era imortal, vi que não posso perdê-lo”. O músico também se apresenta em casas de shows alternativas para públicos diminutos. “Eu faço isso por minha conta, me submeto a fazê-lo mesmo não tendo a competência de meu avô”. E justifica a sua responsabilidade: “Há uma obrigação com nossas raízes. Eu fui tocado pela mão de Manzi”.
Jorgelina chora ao cantar e emociona seu público porque acredita que tango é sentimento. Com a carga dramática própria a uma argentina cantante de tango raiz, ela argumenta: “Eu sofro não por desamor, mas ao contrário, por muito amor. Eu tenho uma vivência sentimental com o tango. Quando chego em Buenos Aires, tenho que soltar esse sentimento sem economia”. E confessa que sua pretensão é viver exclusivamente de tango. “Esse é meu desafio e minha ilusão”.
Para a cantora o verdadeiro tango não pode ser tocado em qualquer lugar e por isso, ao invés de se entristecer com pequenos palcos ou plateias, ao contrário, orgulha-se disso. Não há um comportamento elitista nesse pensamento, mas o reconhecimento de que o tango continua a correr pelo subsolo de Buenos Aires. E ali, no subsolo do teatro La Clac, onde escutam-se as vozes que vem do restaurante, quando Jorgelina canta, não se escuta mais nada.
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Publicada na Revestrés #12, fevereiro de 2014.