O chão de taco, a longa mesa de jantar de jacarandá, as cristaleiras e os azulejos impecavelmente brancos compunham o cenário de tranquilidade da casa do médico psiquiatra Clidenor de Freitas Santos, instalada ao lado do sanatório Meduna, em Teresina. Grandes pés de ipês contornavam a arquitetura da residência que, por sua vez, formava um enorme H no mapa. Um dos netos do médico, que herdou o mesmo nome do avô, conta que na biblioteca havia uma mesa redonda com rodas, na qual o médico colocava seus livros preferidos enquanto deitava na rede ao lado. Não se levantava: girava a mesa em busca do enredo do dia.
O encantamento de Clidenor pelos livros era evidenciado em cada prateleira da sua extensa biblioteca: mais de oito mil livros compunham o acervo do local, onde, diariamente, segundo filhos e netos, o psiquiatra se dedicava a leitura. Entre Medicina, Sociologia, Antropologia, Artes e História, um dos seus preferidos era Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. O livro foi lançado pela primeira vez em Madrid, no ano de 1605, e é considerado um expoente da literatura espanhola. Foi eleito, em 2002, a melhor obra de ficção de todos os tempos. Clidenor, que admirava música erudita e ouvia Mozart, Bach e Beethoven, colecionava centenas de edições Dom Quixote nas mais diversas línguas e versões – é possível que o médico visse no personagem uma inspiração para sonhar.
Em meados dos anos 1950 pouco se falava sobre tratamento psiquiátrico no Piauí. Implantar essa ideia nesse cenário era praticamente uma quimera. O Sanatório Meduna, que Clidenor idealizou e dirigiu por meio século, se tornou a maior instituição responsável por atender aos pacientes com transtornos mentais da capital e vindos de cidades próximas. Em seu discurso, o hospício defendia a condição e o bem-estar de seus internos, com perspectivas e técnicas diferentes das que havia, até então, no tratamento psiquiátrico – muito embora os métodos utilizados tenham sido criticados e revistos pelas gerações seguintes.
“Criai, cultivai, consagrai altos e nobres ideais. As grandes épocas de nossa vida estão onde obtemos a coragem necessária de fixar as mais altas aspirações”, Clidenor, em carta aos filhos
Na casa do psiquiatra, além dos livros, havia miniaturas de diferentes tamanhos do personagem de Cervantes. A paixão do médico pela loucura parecia se confundir e fundir à história vivida pelo personagem. “O vovô teve Dom Quixote como um agente inspirador durante seus 87 anos de vida”, conta Felipe Lopes, 29 anos, também neto do psiquiatra. “A maneira de pensar dele era motivada pela história do personagem, desde a ética, a moral, o mundo dos sonhos e das fantasias, tudo era sugestionado pela história do Dom Quixote”, relata.
Outra semelhança entre o personagem da ficção e o médico era o pensamento grandioso. “Ele gostava da abundância, principalmente no ato de se alimentar, da fartura na mesa e dos prazeres da vida”, conta Felipe. A nobreza do personagem parecia contagiar o psiquiatra. O neto conta que até mesmo a sobremesa preferida do avô confundia-se com a de Dom Quixote: banana caramelizada, feita na frigideira com manteiga.
Clidenor de Freitas talvez visse no protagonista da história de Cervantes um fio condutor de esperança pela humanidade: a possibilidade de todos serem, ao mesmo tempo, Dom Quixote e Sancho Pança (o representante da noção de “realidade” no enredo espanhol). Enfrentar os trinta ou quarenta moinhos de vento como a mais perfeita metáfora da loucura, vendo além do que parece ser.
Louco na ação e sensato no pensamento, Quixote sofre, pensa, se machuca. O pequeno fidalgo castelhano que fantasiava emoções e personagens em um cenário fragilizado, beirando o ridículo, perdeu a razão por muita leitura de romances. Na ânsia por imitar seus heróis preferidos, suas aventuras são sempre destruídas pela dura realidade. Assim como nos contos e sátiras ficcionais onde a alienação e o pensamento delirante assumem um papel cômico, a fantasia sempre foi considerada uma característica da loucura.
Mais de 400 anos após sua publicação, Dom Quixote continua uma obra influente e atual, presente na imaginação popular. A semelhança do psiquiatra com o cavaleiro ficcional se evidencia, sobretudo, no idealismo. “Criai, cultivai, consagrai altos e nobres ideais. Nada melhor para tonificar o espírito. As grandes épocas de nossa vida estão onde obtemos a coragem necessária de fixar as mais altas aspirações”, dizia uma carta de Clidenor de Freitas, destinada aos filhos e publicada nos jornais impressos em 21 de abril de 1954, data de inauguração do Meduna. Documentos e relatos de quem viveu próximo ao médico, revelam que ele se sentia responsável por reformas fundamentais na estrutura da psiquiatria do estado, bem como pela cura dos internos do Sanatório, encarnando uma espécie de herói.
Durante 20 anos (1990 a 2010) quem recebia qualquer visitante ou interno no Sanatório Meduna era ele mesmo: Dom Quixote, instalado na entrada principal de acesso aos pavilhões brancos, alpendres e corredores do prédio, que mais parecia uma aldeia. Estava lá uma estátua do cavaleiro, esculpida em bronze, com sua lança e seu escudo. A peça foi testemunha da reforma psiquiátrica que se iniciava pelo país nos anos 1980, antecipando a criação de políticas públicas para o tratamento da doença mental e almejando extinguir os manicômios.
A estátua, de quase dois metros, foi confeccionada sob encomenda pelo artesão carioca Honório Peçanha – o artista também foi responsável pela estátua cenográfica da novela Roque Santeiro, exibida em 1985 na Globo. O neto Felipe conta que, antes da estátua em tamanho real, Clidenor solicitou ao artista que fizesse uma versão menor, uma espécie de protótipo. Hoje, o Dom Quixote em bronze, símbolo da resistência e coragem de seu criador, encontra-se no escritório da família Freitas.
O sonho de um sanatório
O Sanatório Meduna foi o segundo hospital psiquiátrico do Piauí e o primeiro de administração privada. Inaugurado em 21 de abril de 1954, em uma região de 3.356 metros quadrados às margens do Rio Poty, era formado por oito pavilhões ligados por aleias cobertas, dois imensos pátios, um prédio com dois andares e 120 leitos. O hospital foi visto como inovador por utilizar métodos considerados avançados para a época como, por exemplo, a eletroconvulsoterapia.
Pelo Sanatório Meduna passaram homossexuais, negros, alcoolistas, meninas grávidas, pessoas com transtornos mentais, pobres e moradores de rua. A loucura era estigmatizada, tida como uma “mancha” na sociedade teresinense que se formava e as famílias internavam seus doentes, isolando-os do convívio social. Durante seus 56 anos de funcionamento, o Sanatório foi a casa e o mundo de milhares de pessoas, constando mais de 100 mil internações. Hoje a área pertence a um grupo empresarial que construiu um shopping center.
Clidenor de Freitas morreu no ano 2000 e seus filhos assumiram a administração do local. O hospital declarou encerradas as atividades em maio de 2010, porém, ainda seguiu em funcionamento até o ano seguinte, com número reduzido de internos. Visto como herói por uns e vilão por outros, o médico psiquiatra Clidenor de Freitas foi tachado como louco, tanto por ter concretizado um hospital psiquiátrico de alto investimento arquitetônico e médico em um estado pouco assistido na década de 1950, quanto pelo pioneirismo em métodos de tratamento pouco antes utilizados – desbravando caminhos, na dicotomia entre o bem e o mal, como Quixote.
(Publicada na Revestrés#34 – janeiro-fevereiro de 2018.)