Vá até o YouTube e digite Lo-fi. Você encontrará uma infinidade de músicas, transmissões ao vivo com duração de horas (até dias) e um clima de relaxamento, reforçado por imagens de pessoas lendo e escrevendo, usando fones de ouvido, em ambiente caseiro ou mesmo cenas que remetem a paisagens urbanas de grandes cidades do mundo. Com todas as circunstâncias de distanciamento provocadas pela pandemia de Covid-19 em 2020, o gênero musical conquistou um público cada vez maior e predominantemente jovem. Mas há registros  desse movimento ainda entre os anos de 1970 e 1980, ou mesmo antes desse período. 

O jornalista e pesquisador da música Lo-fi, André Santa Rosa, 21, explica que “nos anos 1950 já vemos esse tipo de produção, muito ligado ao rock de garagem. Tem uma concepção mais política, até, de desprendimento dos padrões estabelecidos pelo topo da indústria”. O termo Lo-fi vem do literal low fidelity – baixa fidelidade. Na música, registros indicam que o estilo surge em meio à ascensão da contracultura e pelo aumento nas produções de baixo custo, independentes de grandes gravadoras e que foram impulsionadas por DJs na década de 1980. A música Lo-fi então une em sua proposta experimentação, simplicidade e a ideia de DIY – outro termo em inglês que significa “Faça Você Mesmo”. O gênero parece alinhado ao estilo de vida contemporâneo. 

Dj Rodrigo Lagoa: “Temos produções focadas a ajudar quem tem déficit de atenção, insônia, ansiedade, depressão e, em sua grande maioria,  em aumentar a produtividade”

“A música tem a capacidade de mexer com o ser humano e o Lo-fi é produzido exclusivamente pensando nisso. Hoje temos produções focadas a ajudar quem tem déficit de atenção, outras em quem tem insônia, ansiedade, depressão e, em sua grande maioria, produções focadas em aumentar a produtividade”, conta o DJ Rodrigo Lagoa, 33, destacando que ouvia uma playlist Lo-fi enquanto escrevia para Revestrés. Ele reside em Goiânia, tem formação na área de produção de música eletrônica e é DJ desde 2013, tendo iniciado os trabalhos com Lo-fi em 2020. Rodrigo afirma que há diferenças entre o que ele produz e o que toca, carregando experiências vivenciadas no Brasil e em países como Argentina. 

Quem também reúne influências do exterior é Miyuki Kuzuoka, 28. Em 2019, ela e um parceiro da Megaphonic’s (banda de música japonesa independente, de São Paulo) foram para o Japão tocar faixas de um disco autoral nas ruas de Kyoto e Yokohama. A trajetória foi sendo modificada devido à Covid-19. “Queria fazer algo que pudesse, de certa forma, ajudar as pessoas neste momento difícil. E tenho recebido muitas mensagens de agradecimento, pois realmente a música tem ajudado a muitos”, conta sobre as produções de música Lo-fi. Miyuki planeja o lançamento de um EP ou álbum, mas ainda se divide entre os lançamentos de singles digitais e uma especialização em áudio para televisão. 

Miyuki Kuzuoka: “Queria fazer algo que pudesse, de certa forma, ajudar as pessoas neste momento difícil. A música tem ajudado a muitos”.

Esse aspecto de autoajuda ligado ao consumo de Lo-fi está relacionado com o ritmo cadenciado dos beats (as batidas da canção), a inclusão de sons ambientes como pequenos ruídos e chiados propositais e, em sua maioria, sem a presença de vocais. As criações partem de experimentações originais ou da inserção das batidas eletrônicas em canções de jazz, hip hop, MPB e uma infinidade de cruzamentos. 

André Santa Rosa retorna a outro conceito para caracterizar o estilo. “É o potencial desses sons como música de mobília. O conceito surgiu ainda no século XX, a partir de Erik Satie, para pensar uma composição com dinâmicas baixas, suave, sem tensões ou grandes mudanças tonais, elaborada para que os espectadores não prestassem atenção. No contexto da internet e desse uso multidesk, com várias abas e páginas, a experiência que mapeei do público com as rádios e playlists Lo-fi vem justamente da ideia de uma música para acompanhar outras atividades. Seja estudar, jogar videogame ou para dormir”. 

Se o ritmo é mais lento, a audiência na internet cresce de forma acelerada. “Tem uma playlist chamada ‘Concentração para Estudar’, com mais de 16 mil seguidores e que tem atividade de ouvintes muito grande diariamente. Outro exemplo é a playlist ‘lofi sleep lo-fi rain’, com mais de 13 mil seguidores e que tem uma atividade enorme durante a madrugada, o que nos mostra que realmente as pessoas escutam essa playlist para auxiliar na hora de dormir”, cita DJ Lagoa. 

Outros exemplos no YouTube são os canais ChilledCow (mais de 6 milhões de inscritos), Chilhop Music (mais de 3 milhões) e a nacional Rádio lofi BR 24H (mais de 20 mil inscrições). No Soundcloud é possível encontrar listas com mais de 50 mil curtidas, e no Spotify algumas marcam mais de 3 milhões de seguidores. 

O sucesso do Lo-fi é forte entre a chamada geração Y ou Millennials. A identificação aparece também através das ilustrações que acompanham as reproduções sonoras. “Com o que você se identifica? A imagem de uma menina na janela do trem voltando para casa? Uma menina estudando 24 horas? Ou seria um sentimento? Sentimento de querer ficar ‘de boa’ vendo o céu e escutando uma música relaxante? Eu também acredito que as imagens trazem o sentimento de nostalgia. Nostalgia de um sentimento que a gente nem sabe definir”, diz Miyuki sobre a relação entre imagens e sons. 

Laís Ezawa: “Com o Lo-fi eu consigo, mesmo que por alguns minutos, pensar menos em todos esses problemas e seguir”.

A respeito disso, a designer e ilustradora Laís Ezawa, 23, de Florianópolis, observa a presença das situações cotidianas, cenas de animações japonesas famosas e retratos de jovens em sensações de conforto e relaxamento. “As paletas de cores geralmente mais quentes, ou de cores pastéis, a ilustração de um dia levemente ensolarado, ou de uma noite bem tranquila em meio a vários cobertores e almofadas, passam essa ‘vibe’ que combina com o Lo-fi”. 

Laís confessa que o gênero vem “salvando” seus dias e se tornou auxiliar no trabalho que realiza totalmente em home office, além de estudos e projetos pessoais. “Como estou há muito tempo sem ver minha família e amigos, sem sair, sem viajar, sem ter quase interação social fora das redes e ainda recebendo diariamente notícias terríveis sobre o meu país e a pandemia, eu me sinto muito ansiosa e estressada. Com o Lo-fi eu consigo, mesmo que por alguns minutos, pensar menos em todos esses problemas e realmente seguir”. O sentimento de Laís virou ilustração. 

O agora e o futuro 

 

O gênero acompanha as transformações do tempo em torno do consumo, produção e distribuição, além de dialogar com a identidade de cada nova geração. Todo o alcance percebido nos últimos anos e que parece ter atingido o auge em 2020 se coloca diante de alguns cenários. Por um lado, o fato de ser fenômeno pode conferir ao gênero caráter momentâneo. E o interesse de grupos cada vez maiores por essas músicas impõe desafios relacionadas às dinâmicas de mercado. 

“É muito difícil para nós brasileiros entrarmos em playlists editoriais (que são as maiores do Spotify, com curadoria própria). Mas caso consiga, essa playlist vai dar um salto na sua carreira e, consequentemente, você irá ganhar ‘bons dólares’ com isso”, explica o DJ Rodrigo Lagoa. 

Rodrigo conta que os números atingidos por produtores de Lo-fi no Brasil são altos em termos de audiência, mas não há investimento ou apoio. Sobre a cena nacional, o DJ acredita que “não irá demorar para que o Brasil domine a cena, pois se tem uma coisa que o pessoal lá fora não tem, que a gente tem em abundância, é a criatividade. E criatividade no Lo-fi faz uma diferença enorme”. 

Trabalhar como artista independente tem ainda outras dificuldades, segundo Miyuki. “Tudo depende de quanto você tem para investir, do tempo que você se dedica ao marketing. Você pode fazer sua música e ela ser incrível, mas se não souber divulgá-la, dificilmente ela chega para as pessoas. No meu caso, tudo depende de mim, desde a criação da música, gravação, mixagem, postagem e divulgação. Por isso que eu digo, é trabalho de formiguinha! É difícil, mas a gente precisa continuar”. 

André Santa Rosa observa, a partir de um artigo publicado em 2018 (“Lofi Hip Hop Radio”: Youtube, Música Instrumental e Novas Escutas) e comparando com o atual momento, que as criações com baixos recursos e de modo quase caseiro devem permanecer. “Sempre vai surgir gente querendo lançar sua arte, mas que não tem esse dinheiro para gravar em um bom estúdio. Inclusive é possível que a melhora na qualidade dos computadores e dos gravadores dos celulares faça com que as pessoas invistam mais nos estúdios caseiros e na sonoridade Lo-fi. A quarentena pode fazer muita gente tente criar seu som através do próprio computador e descubra que é possível”. 

O sucesso dessas músicas vai de carona no alcance das redes sociais e na propagação de conteúdos em áudio e vídeo. O modo viral é visto pela designer Laís Ezawa como oportunidade para crescimento, conquista de público e rentabilidade. “O Lo-fi realmente ajuda a dar uma levantada no ânimo, no foco e a relaxar. Além disso, como é um tipo musical de baixo ou nenhum custo na produção e mais acessível, acredito que o número de pessoas criando novas playlists só vai crescer também. Aposto que num futuro – não muito distante- alguma banda ou cantor/a famoso/aa vai lançar alguma música ou clipe com referências do Lo-fi, justamente visando a viralização nas redes sociais”. 

O Lo-fi tem servido como “um remédio com doses diárias”, na opinião do DJ Rodrigo Lagoa. A metáfora ajuda a explicar os motivos para essas músicas ampliarem a audiência na promoção de alguns momentos tranquilos diante de um mundo acelerado. 

 

Publicado na Revestrés#47. 

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