“É uma dívida. E, ao mesmo tempo, uma dádiva”. É como Manoel Ricardo de Lima [Parnaíba, 1970] projeta o seu A guerra da água [7Letras], publicado recentemente, volume 4 de uma série vertiginosa e descontínua: “Livros de guerra”. Seu trabalho se dirige a uma experiência telúrica, a que modula a terra, ao lado do também parnaibano Assis Brasil. Escreve com Assis Brasil porque o convoca em sua biblioteca como se permitisse, após a morte desse piauiense genial, uma continuação, um convívio, para que juntos – Manoel e Assis – toquem alguns infinitos. A escritura da biblioteca com o risco radical da experiência, todos os livros em nenhum.
Escrever com e contra, esta parece ser a ciência errante de A guerra da água, primeiro a partir de uma ideia da infância e, depois, através de um personagem que é um número-nome / um nome-número, Oito, e de um narrador que pouco sabe sobre o que narra. Oito, por exemplo, poderia tanto ser uma mistura de Cobra Norato com Macunaíma, quanto um Yoshua revolucionário, tal como o anotado por Paulo Leminski: beduíno, morador do deserto, espada em punho; “um nabi com a revolução na ponta da língua”, diz Manoel. É a literatura como um procedimento imanente e díspar, jogo e vida diante do que sempre, a cada instante, é o agora.
Luiz Ribeiro: Estou imaginando o leitor da Revestrés, que acompanha a sua coluna, diante do seu livro e os imagino querendo saber do Oito. Este oito vertical, como você mesmo diz, diferente do oito deitado, do infinito e do Zero, a grávida, e o diabo (de Osman Lins). Quem é e quando é esse Oito?
Manoel Ricardo de Lima: Oito é um personagem que aparece na parte dois do Jogo de Varetas [7letras, 2012]. Ele provoca pequenos seres invisíveis a uma conversa em torno de uma espécie de genealogia de vazios do mundo, num ao redor, em 3 pequenas narrativas. A partir daí fiquei com essa construção no pensamento, no corpo. Anos depois, quando já havia desistido de escrever ou de qualquer coisa parecida, em 2018, um encontro com um amigo muito especial, o Domenico Lancellotti, que é músico, numa troca de sentidos, e por causa de um poema foda de um irmão-amigo de vida, o Carlos Augusto Lima, sandra bullock passeia pelo espaço, recuperei alguma força e uma pequena vontade de escrever. Escrever nunca é um ato ou gesto solitário, ao contrário, é um movimento extremamente populoso. Oito reaparece pois nesse trabalho, O método da exaustão [Garupa, 2020], que vem dessa tentativa de recuperação da alegria, da vida. O exercício e a experiência com o poema longo. Num desses poemas, cingapura, Oito se faz presente, e ali imagino o que pode ser a composição do personagem. Quando termino o livro, no começo de 2019, e que João Barrento faz o prefácio mais bonito, começo a escrever o A guerra da água. O método da exaustão só vai aparecer em agosto de 2020, muito tempo depois; e é um livro recusado, sabia? [risos], 2 editoras bem grandes disseram “não” com respostas praticamente iguais, que “é um livro incrível, mas a gente não quer e boa sorte” [risos]. E aí veio a Juliana Travassos, que é uma editora das melhores, muito-muito foda, da Garupa, e publicou o livro. Já estava empenhado no projeto e desenho do A guerra da água. Oito é uma deriva de tudo isso, um rastro, um vestígio, uma sombra, uma assombração em travessia e atravessada, um espectro, uma linha orgânica e matemática ao mesmo tempo.
LR: Em determinado momento, você pensa nas crianças como “máquinas de guerra”. A infância atravessando tudo, rasgando tudo, perguntando tudo, silenciando tudo, cena ancestral e apostólica, o corpo que se come. Como você vê as crianças como máquinas de guerra, mas numa guerra às avessas da guerra (porque preparação) do dinheiro?
MRL– Há uma questão seminal nessa ideia das crianças, ou pequenos seres, como “máquinas de guerra”, porque, primeiro, o uso não vem apenas no sentido do conceito de Deleuze e Guattari, mas até ao contrário, depois, porque esta guerra traçada como um buraco sem fundo, infinito, não é apenas civil-militar etc., mas muito mais uma guerra dos dias, entre cotidiano lacerado e circunstâncias derruídas. Gosto da perspectiva imaginada por Ruy Belo: a “das imagens vindas dos dias”. É isto. Tem a ver com isso. Daí, quem acha que esses pequenos seres podem ser crianças, vá saber, é Oito ou o narrador que pouco sabe ou quase nada sabe sobre o que narra. Depois, tudo é uma imensa cilada: pode ser morto por elas ou pode matá-las; é um giro elíptico, uma dança de morte. Este dilema é muito mais perto de Hamlet, o de que “o mundo está fora dos eixos”, do que de qualquer outra coisa. E não há jeito ou saídas: a merda que somos, aqui, nesta Terra e neste mundo que criamos, advém do cristianismo como capital e do capitalismo como uma encenação cristã, ou seja, dinheiro. E isto não tem nada a ver com Yoshua, que nunca ouviu falar na palavra “Cristo”, que é um termo grego, porque não conhecia grego, falava aramaico; ademais, era um beduíno, um homem do deserto, espada em punho. Um nabi com a revolução na ponta da língua.
LR: Eu lendo sobre essas crianças pensei muito no livro Os meninos da Rua Paulo [traduzido por Paulo Rónai], em que as crianças simulam mesmo uma guerra de trincheiras na disputa de um território. Eu sempre vejo esse livro como a primeira guerra mundial. Lembrei também do Senhor das Moscas, também sobre criança e guerra. Como A guerra da água se inscreve nessas literaturas com e sobre crianças?
MRL: Não lembro se esse livro foi lido, acho que não. O Senhor das moscas sim, foi, William Golding, há muito-muito tempo. Nenhum dos dois é referência agora. Um livro que mora por perto o tempo inteiro, e enquanto escrevia A guerra da água, é o A cruzada das crianças, do Marcel Schwob. Este sim, fodaço. Referência o tempo todo, a tudo. Mas não é perceptível que o A guerra da água se inscreva nessa linha, ou linhagem, de uma literatura com ou sobre crianças. Mas num apagamento dessas mesmas linhas e linhagens traçadas também como ‘territórios’, este termo com inflexão entre poder e controle, quase fascista, que de todos os modos se projeta sobre nós através do caráter indômito do narco-capitalismo de agora. Esses seres, se num plano impossível, as crianças que Oito vê e tenta tocar, poderiam ser lidos como fragmentos demoníacos contra a hipocrisia de um sistema tão violento, o do dinheiro, que não suporta o demoníaco como imanência porque delibera a vida no falseamento binário entre condenação e salvação. Triste, né? E pois. Muito.
Assis Brasil era foda. Seus livros são impressionantes. A primeira vez que o li, era um garoto pobre e encantado com a força daquilo tudo. Ao mesmo tempo enfrentava Kafka, Dostoiévski, Machado de Assis, Parmênides. (Eu era) Leitor de biblioteca pública, porque não tinha vintém pra comprar livro.
LR: Impossível também não lembrar do Assis Brasil, inclusive do parágrafo só de frases retiradas de livros dele, a caixa de costura, a escuridão ampla e envolvente, a cela que só parecia… mas também da sua cidade natal, Parnaíba, porém também ao lado e fora dela, distante e fora dos centros. Uma tetralogia piauiense, só que outra, agora. Como é escrever com Assis Brasil e com sua terra?
MRL– É uma dívida. E, ao mesmo tempo, uma dádiva. Você sabe disso: ler o que faz parte da mediocridade e da banalidade do mercado e de um sistema cretino como o da arte, da literatura etc., não projeta nenhum interesse. Não faz raspa nem produz aderência alguma, ferida, cicatriz, sangue. Interessa, no mínimo, enfiar a mão na lama, na merda. Assis Brasil era foda. Seus livros são simplesmente impressionantes. A primeira vez que textos como Beira rio, beira vida ou Os que bebem como os cães, por exemplo, fincaram presença de leitura, era um garoto, sei lá, 19 anos, 20, 21. Um menino pobre e encantado com a força desmesurada daquilo tudo. Ao mesmo tempo enfrentava Kafka, Dostoiévski, Machado de Assis, Parmênides etc. Leitor de biblioteca pública, Luiz, saído de uma placa de chumbo de miséria, impedido de morar na cidade de nascimento pra não morrer à míngua. Horas, mas horas mesmo, na biblioteca da universidade pública, porque não tinha vintém pra comprar livro, mas mesmo assim, vez em quando, comprava 1 livro num sebo e praticava o sonho da porra de uma biblioteca impossível em casa. Assis Brasil, você também sabe, morreu sozinho ao lado de um copo e uma máquina de escrever numa casinha de 1 cômodo, em Teresina, e, ao que parece, muito sereno e alegre com a literatura como convívio. Não há nenhum drama nisso, nem piedade. E aí, num moralismo precário, Torquato Neto, repare-se, o cara do pensamento desintegrado, como dizia dele o Hélio Oiticica, ainda morre todos os dias porque é julgado, condenado, porque tinha um filho pequeno, não poderia ter se matado, era muito jovem etc. Ora, vão se foder! Este país, cara, é de uma hipocrisia doente, uma lástima moralista; “é lasso”, como afirmou o Mário de Andrade. Lembro do Pasolini, sempre: “o moralista é aquele que só aponta o dedo a um outro, nunca a si mesmo.”
Torquato Neto ainda morre todos os dias porque é julgado, condenado, porque tinha um filho pequeno, não poderia ter se matado, era muito jovem. Ora, vão se foder! Este país é de uma lástima moralista.
LR: Você na sua tetralogia reescreveu As mãos saindo da primeira pessoa, fez o mesmo com os poemas de Geografia aérea e refez parte de O jogo de varetas, retirando e movendo coisas. Sua literatura sempre foi infinita, mas agora você sente que encontrou os seus infinitos? Finalmente chegou no seu Oito?
MRL: Ah, se isso, do “infinita” vem como um elogio, é também de se acolher como um abraço. A imagem é forte, imensa, se descabe nela mesma. E aí, se também, como potência e dimensão inoperosa, poderia ser um encontro, mas nunca um resultado, aquilo que resulta num modo de fim, um “finalmente”. Oito é um número natural, a melhor definição é a que diz que “segue o sete e precede o nove”. É defectivo, cubo de 2, cubo perfeito de 27 e tem o lance de que é ou seria o número da sorte chinês. Tem a presença de Poseidon [tanto que a marinha dos EUA desenvolveu um avião militar que nomeou como Boeing P-8 Poseidon] e não teria nenhuma relação com o símbolo do infinito que, talvez, tenha advindo muito mais da letra grega ω [ômega]. Oito, no A guerra da água, é uma tomada de posição entre duas coisas: fazer-se presente na hora de morrer e dizer com força a porrada mais generosa dessa vida: “muito obrigado”. Ao mesmo tempo, é uma tomada de posição política para tentar cumprir, primeiro, uma alteração do vocabulário, ou seja, uma palavra mais antipática como dispêndio ou ao menos como oscilação aos enfados mais óbvios e nulos, as palavras de ordem, coisas como ‘tolerância’, ‘empatia’, ‘afeto’ etc. que não projetam sentido a nada; depois, imaginar o mundo sem demarcação de territórios e expandindo os jogos de convivência entre não-aparentados, o que sugere uma exigência, uma emergência: a atenção; e, por fim, a ideia de Belchior, de que o “delírio é a experiência com coisas reais”, e isto porque já estamos completamente sem saídas neste mundo que criamos, apenas diante do sistema de capital, a violência do dinheiro. Terra arrasada, Luiz, já era, acabou. O futuro foi antes de ontem.
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Manoel Ricardo de Lima é professor de literatura da UNIRIO. Publicou, entre outros, Xenofonte [Cultura e Barbárie, 2021], O método da exaustão [Garupa Edições, 2020], Pasolini: retratações [7Letras, 2019, com Davi Pessoa], Avião de alumínio [Quelônio, 2018, com Júlia Studart e Mayra Redin], Maria quer o mundo [Edições SM, 2015, para crianças] etc. Coordena a coleção “móbile”, de mini-ensaios, desde 2006 [Lumme Editor] e coordenou a edição da poesia completa de Ruy Belo no Brasil [7Letras]. Ele é titular da coluna Trabalhos no Subsolo, em Revestrés.
Luiz Ribeiro é doutor e mestre em Memória Social e Bacharel em Artes Cênicas/Teoria do Teatro pela UNIRIO. É dramaturgo e membro fundador do Teatro Voador Não Identificado, com quem escreveu as peças Ponto Fraco (2011), Shuffle (2012), O Processo (2014), O Figurante (2016) e As Mil e Uma Noites (2017) e co-escreveu Último Ancestral Comum (2017). É autor do romance Conjugado (Patuá, 2021).