Hayrabet Alacahan nasceu na Armênia, viveu parte da infância e juventude na Turquia e chegou a Buenos Aires em 1970. Apaixonado por cinema desde criança, acabou se tornando um dos grandes nomes do cinema independente na Argentina. Talvez o maior especialista e divulgador de filmes, diretores e desse mundo que, sem verbas, sem grandes salas de exibição nem mídia, movimenta milhares de pessoas em muitos países e que o “grande público”, provavelmente, nunca teria a oportunidade de saber que existe não fosse o trabalho de gente como ele.
Hayra é pesquisador, historiador, cineasta e, com amigos também loucos por cinema, criou a Fundación Cineteca Vida (FCV). A loucura “por las películas” e por esse universo quase paralelo em relação a Hollywood fez, de Hayra, um dos maiores colecionadores do mundo. Os números são impressionantes. Conseguiu reunir e arquivar informações sobre 80 mil filmes. São quase 15 mil dados biográficos de diretores, atores e personalidades do cinema de todo o planeta. Em VHS, o arquivo de Hayra tem 8.350 títulos. Em DVD, 5.500. Outros dois mil filmes estão em película, nas mais variadas bitolas. Sua biblioteca chega a cinco mil livros que falam , exclusivamente, de cinema e seus “arredores”. Um trabalho de abnegação, empatia e de entrega a quem ama o cinema: todo esse arquivo está disponível ao público.
Hayrabet Alacahan é um nome sempre citado em eventos de cinema independente na América Latina e também na Europa, sendo responsável por eventos na França, na Espanha, Bélgica e, claro, em toda a Argentina. Foi convidado para participar, em Teresina, da I Mostra de Cinema Artes de Março, realizada pelos Cinemas Teresina: uma semana inteira dedicada ao cinema independente argentino. Hayra fez comentários sobre os filmes exibidos e realizou uma palestra. Em praticamente todas as sessões, Hayra foi às lágrimas ao falar sobre a produção independente e as histórias por trás das câmeras.
Hoje, o louco por cinema Hayrabet Alacahan está concluindo “Filmografias”, um livro em que fala sobre 9.500 cineastas de todo o mundo e de todos os tempos. Revestrés conseguiu uma hora de papo com ele entre um filme e outro.
Você está concluindo o Filmografias. Por que um livro dedicado aos autores independentes e sua produção?
É um trabalho de mais de dezessete anos. Comecei fazendo para mim mesmo, me interessava muito. São 9.500 diretores de todo o mundo e de todos os tempos, uma espécie de homenagem aos diretores não conhecidos. Trabalhamos sempre com diretores conhecidos, há livros sobre eles, mas há muitos que ninguém conhece e têm feito um trabalho impressionante. A história não é feita de quatro pessoas, todo mundo faz a história. É uma homenagem a diretores dos quais ninguém fala, que poucos ouviram falar, que quase ninguém vê.
Você é um dos criadores da Fundação Cineteca Vida: como ela atua?
A Cineteca Vida funciona como qualquer cinemateca do mundo. É uma iniciativa minha e de cinco companheiros, começamos em 1981, mais ou menos. Mas chegou um momento em que eu havia juntado tanto material sobre cinema, livros, recortes de revistas, filmes, cartazes, elementos cinematográficos, que pensei: se isto não chegar ao público é o mesmo que nada. Então, iniciamos os trâmites para fazer uma fundação e conseguimos, em 1997. Até hoje funcionamos assim, com as portas abertas a qualquer pessoa que queira saber sobre cinema. Também temos algumas sessões como cineclube. É um espaço aberto ao público.
Vejam filmes independentes, há algo diferente e vai além de se gostar ou não, há outro mundo.
O que você diria para convencer uma pessoa leiga, não cinéfila, a assistir filmes independentes?
Até os 30 anos fui muito cinéfilo, ia ao cinema sem parar para ver filmes, mas nunca havia lido sobre nenhum diretor. Não me importava o gênero, se era documentário, ficção, eu queria era ver imagens em movimento na tela. Por acaso, cheguei a um clube, que não sabia que era um cineclube, e aí mudou completamente minha visão sobre o cinema. Hoje é muito importante quando sei algo de um diretor, de sua personalidade, entendo porque que filma, e isso é uma busca permanente, interminável. Conhecia o cinema independente, exibíamos material de diretores que faziam independente. Mas há 14 anos estava em uma cidade próxima a Buenos Aires, contratado por um grande festival, e me pareceram muito curiosas as coisas que escutei. Não acredito em milagres, mas creio na magia do cinema, e quando voltei a Buenos Aires recebi a ligação de uma revista que havia realizado uma mostra de vídeos há pouco tempo, e me perguntaram se queria colaborar com eles. Eis o milagre: me deram o nome de uma pessoa, que era o organizador desse festival e que só havia dois dias que sabia quem era. Me propuseram trabalhar com eles, e durante esses anos cheguei a conhecer mais de 800 diretores do cinema independente em todo o país. Então há 14 anos não me interessa mais o cinema comercial. Vejo os filmes que quero, claro, vou ao cinema, mas não escrevo sobre isso. Esse mundo, que me deu uma satisfação muito grande, é o que me interessa, trato de difundi-los por onde posso, exibi-los fora do meu país. As primeiras exibições sempre fazemos em nosso cineclube, e elas acontecem em sessões alternativas, sem estreia. A mim parece realmente um mundo ao qual não posso ser indiferente, é algo que existe ao meu redor. Para convencer a alguém? Digo que vejam que há algo diferente e que vai além de se gostar ou não, que vejam que há outro mundo, para que o conheçam.
Como anda a produção cinematográfica na Argentina?
Há graves problemas, como no Brasil. Já está anunciado que até 2019 não vai haver orçamentos para se filmar, exceto para diretores conhecidos. Mas vão filmar 10, 15 filmes e nada mais. Há cinco, seis anos, a produção de cinema era 100 filmes por ano, em média. E no cinema independente são mais de 300. Essa produção vai retroalimentar o cinema argentino. Isso está acontecendo na Argentina, mas creio que em muitos países também acontece. Em todo o mundo se filma esse tipo de coisa, mas em maior quantidade é na Argentina, não sei como e de onde sai essa força, fazem como uma brincadeira entre amigos, vizinhos que se animam a participar de um filme. É maravilhoso.
A produção independente do Brasil, tem visto algo? Você gosta?
Eu gosto, mas vejo muito pouco. E vejo graças a amigos como Douglas Machado (cineasta), que me envia vários filmes. Quando são filmes que chegam a Cannes ou ao Oscar se vê, são exibidos em Buenos Aires, senão, não se vê nada. Nada! Não se vê cinema italiano, não se vê cinema francês. Cerca de 90 a 95% dos filmes são do cinema norte-americano. Isso dói nos cinéfilos, não ter a possibilidade de ver coisas interessantes. Não me importa que às vezes sejam filmes ruins, o que me importa é a possibilidade de ver que existe isso, que se filma isso. Eu não sei como é a história dos cineclubes no Brasil, mas na Argentina havia muitos, eram muitíssimos. Era preciso fechar as portas para que não entrasse mais gente. Mas hoje não. Penso que o cinema comercial é uma decisão política, porque se vê o cinema norte-americano e não outras coisas. Vejo muito nebuloso o futuro do cinema, e suponho que no Brasil isso não seja diferente. É uma realidade, e não se pode esconder, que na Argentina grandes distribuidoras estrangeiras compravam os direitos de um filme argentino para que ele não estreasse. Há dados concretos, não é uma coisa que eu inventei, e os críticos não falam sobre. Os que sabem não abrem a boca.
Ricardo Darín recebeu há pouco tempo um convite para filmar em Hollywood e o recusou. Isso repercutiu no Brasil de modo dividido: “que louco, porque ele não vai?” ou “é um orgulho para o povo argentino”; como foi na Argentina?
Exato, recusou o convite. Perguntou “porque um latino-americano tem sempre de ser um narcotraficante?”, coisa e tal, e recusou. Eu o admiro, por sua coragem. Ele ocupa muito espaço na TV argentina e lhe perguntavam assustados como recusava tanto dinheiro, então Darín dizia: “não há que se pensar em dinheiro, amanhã tomo banho com água quente, tomo café da manhã e está bem, para quê querer mais?”. Ricardo Darín realmente ganhou pessoalmente, além de bom ator é muito boa pessoa, e ganhou muito carinho com essa postura.
Você deve estar acompanhando as questões sobre o assédio às mulheres no cinema. No Brasil está muito em evidência, inclusive, a pouca visibilidade dada às mulheres diretoras e seus filmes. E na Argentina?
Na Argentina isso é ao contrário. As diretoras têm muito boa acolhida por parte das pessoas, pela imprensa, e não se pode dizer que haja uma discriminação contra uma realizadora. Muito além de se gostar ou não dos filmes elas estão aí, lado a lado com os homens.
Publicado na Revestrés#36-maio-junho de 2018.