Tempo inflamado é o primeiro álbum de Daniel Filipe, um dos principais compositores da novíssima safra autoral de Parnaíba-PI. É composto de dez canções de Daniel e de membros do coletivo multilinguagem Ultrópico Solar, um dos principais núcleos da produção artística da cidade nos últimos anos. Assinam a produção Fábio “Crazy” Christian (Narguilé Hidromecânico e Elétrique Zamba) e Levi Nunes (Negative Green, Ultrópico Solar).

 

O álbum é o primeiro lançamento da Solar 6 Voltz, produtora encabeçada por Fábio Christian e Levi Nunes. Traz um notável combo de influências ancoradas na tradição musical popular brasileira sem, contudo, abrir mão de um frescor contemporâneo, notado na poesia afiada das letras e no capricho da produção, que mistura guitarras, beats, sintetizadores, e que aprofunda caminhos já trilhados pelo Ultrópico Solar, coletivo do qual Daniel é integrante.

A riqueza estética do álbum funciona como um sólido alicerce para a variedade de temáticas: tradições da cultura regional nordestina e brasileira (Cajuí, A Deusa), problemas psíquicos como a insônia (Viradeira), relacionamentos conturbados (Parei com você, Sem vergonha) niilismo e iconoclastia juvenil (Jovem descontente, Malditos cartunistas).

Mas o que parece ser o elemento unificador das faixas que compõem o álbum são as marcas do Brasil contemporâneo, pós-eleições de 2018. Tão tal que a música que dá nome ao álbum é Tempo Inflamado, um poético relato sobre os dias que correm no país.

Além das qualidades artísticas, Tempo inflamado tem um duplo mérito. Em primeiro lugar, o de promover o diálogo de gerações e de vertentes estéticas, verificado na variedade dos perfis dos músicos que participaram do projeto. Em segundo lugar, a capacidade de costurar um discurso de oposição política numa linguagem contemporânea, que supera o mero panfletarismo partidário.

As faixas de Tempo Inflamado

Cajuí: A faixa que abre o álbum traz um instrumental bucólico que representa a atmosfera do litoral do Piauí, menor e mais desconhecido do Brasil. Uma viagem psicodélica ao Delta do Parnaíba, numa reminiscência vocal que remete aos melhores momentos de Milton Nascimento no Clube da Esquina.

Viradeira: Quem alguma vez na vida nunca ficou sem dormir, se revirando na cama ou saindo à noite em busca de uma dose violenta de qualquer coisa? Aqui temos um reggae-bossa que ilustra o drama de uma geração que mesmo tomando os remédios e seguindo as prescrições (médicas e sociais), não engata um sono tranquilo: “Mais 20 gotas e eu não consigo dormir”.

A deusa: Aqui o suingue brasileiro serve de base para esta ode à rainha-deusa do mar. “Quero um canto forte que honre a sorte de ser filho teu…que afaste a morte e evite o Adeus”. Iemanjá, o sincretismo, o sobrenatural, Janaína, os peixes, os cantos, o agogô, o mar, amar, existir. Está tudo aqui.

Parei com você: O piano do maestro Beetholven Cunha e o encontro de gerações, estilos e concepções artísticas são o ponto alto da faixa. “Vou me embora, vou me encontrar com o tempo por agora, parei com você”. A ideia de que o ir embora é sempre uma chegada também, ou um recomeço, permeia essa viagem sonora. Mesmo que, às vezes, o amor se cale.

Tempo inflamado: Faixa que dá nome ao álbum e que parece resumir o seu mote discursivo. “Quem ainda sonha ao seu lado com ternura e pé no chão? Neste tempo inflamado quem percebe o seu ladrão”? Que frase explicaria melhor um Brasil contemporâneo que constrói cada vez mais cercas – reais e metafóricas – ao mesmo tempo em que sonha cada vez menos? O diálogo empático com o cânone da MPB é outro ponto marcante. Afinal, ”Mostrar com cuidado, ferir nem sempre é pecado”, corrobora os famosos versos de Belchior quando dizia “palavras são navalhas, e eu não posso cantar como convém sem querer ferir ninguém”, em Apenas um rapaz latino-americano. Mais uma vez a atmosfera Clube da Esquina estrutura um belíssimo instrumental.

Sem vergonha: Bolerão. Da melhor tradição música dor de cotovelo brasileira. O verso “Hoje eu tô pelada igual ao futebol e quarta” remete a Chico Buarque quando encarnava os personagens femininos.

Malditos cartunistas: “Eu sou o tempo, eu sou o mau”, brada enfaticamente Daniel. Seria uma “homenagem” a um famoso cartunista, personagem controverso da cultura piauiense?

Jovem descontente: Iconoclastia juvenil da mais alta categoria, universal e atemporal, resumida na frase: “Falar pra Deus, Adeus”.

Céu de Aldebaran: Rap e psicodelia estruturam essa viagem espacial. O refrão “Quem saberá, quiçá, quem saberá que saberá?” persiste na mente como uma provocação-revelação.

Ventilador: Última faixa. Relato comovente de alguém que “agora, seguidas horas fala em frente ao ventilador”. Alguém que perdeu o senso da realidade – não sem alguma razão – neste Tempo Inflamado.

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Tempo Inflamado, por todos os méritos elencados, é mais uma oportunidade ímpar de levar o nome da música feita no Piauí para outros territórios culturais, uma vez que o nível de composição e produção do álbum não fica em nada atrás do que de mais importante tem surgido no cenário musical alternativo brasileiro nos últimos anos. Ouçam e comprovem!

Álbum: Tempo Inflamado

Artista: Daniel Felipe

Selo/gravadora: Solar 6 Voltz

Ano: 2019

Ficha técnica:

Produção artística: Fábio Christian & Levi Nunes

Guitarra: Lucas Linhares

Baixo: Savina Alves e Paulo Slap

Beats: Levi Nunes

Teclados e synths: Levi Nunes, André Oliveira e Tahiana Meneses

Percussão: Pamela Cristiana, Tadeu Fontenele e Fábio Christian

Harmônica e Lap steel: Danilo Carvalho

Piano de cauda: Beetholven Cunha

Violões: Daniel Filipe

Masterizado por Valcer Avec

Thiago Meneses Alves é doutor em Sociologia pela Universidade do Porto (Portugal), professor de Comunicação da Universidade Federal do Piauí (Ufpi) e autor da tese “Genealogia, morfologia, dinâmicas e produtos do rock independente de Teresina no início do século XXI”.

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