Por Tatiana Eskenazi

Costumo usar lápis para grifar os livros. Mas alguns, quando me dou conta, já estão tomados por caneta marca texto. Li John (Editora Âyiné), de Julia de Souza, há alguns meses. Fiquei com ele por perto, conversei sobre ele com algumas pessoas, reli alguns trechos. Passado esse tempo, percebo agora suas páginas marcadas por um rosa neon (medo do esquecimento?) e sigo sem saber muito bem como escrever sobre ele, um livro que fala justamente sobre a perda das palavras.

Bem, John é um livro sobre a perda de um pai, a doença e o luto. É também, em tempos de tantos relatos pessoais sobre o tema, um questionamento sincero sobre lançar ao mundo mais um desses relatos. “Afinal, a quem interessa o luto do outro?…Por que esse luto, e não outro, é digno de nota?”

Sim, John é mais um livro sobre o luto e, como em muitos outros relatos sobre o luto, nos identificamos com a experiência pessoal desta filha e lembramos que somos todos mais semelhantes e comuns do que imaginamos, que nossas dores não são, digamos assim, exclusividade nossa. Porém, por mais repetitivos que possam parecer, mesmo que façam parte de um grande coro coletivo, um relato de luto jamais será igual ao outro. Há sempre algo inédito no sofrimento humano, e um espaço de identificação para o leitor jamais será em vão.

Me identifiquei profundamente com a filha que sonha que o pai está de volta: “…ele tinha morrido, mas não de fato. Seu corpo reanimara logo antes de ser enterrado?…o que faríamos quando ele de fato morresse, ou morresse novamente?”. Quantas e quantas vezes tive esse mesmo sonho, que persiste há mais de trinta anos. É um sonho comum e recorrente, existem muitos relatos deste tipo, o que me faz pensar em uma frase do Mia Couto que diz que “o morto amado nunca para de morrer”, e no trecho do conto “Emma Zunz”, de Jorge Luiz Borges: “a morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria sucedendo para sempre.”

Me identifiquei com a filha que sonha que o pai está de volta: “…ele tinha morrido, mas não de fato. Seu corpo reanimara logo antes de ser enterrado?…o que faríamos quando ele de fato morresse, ou morresse novamente?”.

Encontrei também, na menina que sofre suas primeiras crises de pânico e depressão que a acompanhariam pelas décadas seguintes – e que assim como a demência fez com o pai também roubariam suas palavras – a mim mesma: “Meus olhos não só viam, mas eram invadidos por um mundo profundamente abstrato, impronunciável.”

Não, John não é apenas um livro sobre o luto. John é também, e sobretudo, um livro sobre a perda da linguagem, sobre o desligamento lento e gradativo causado por uma doença degenerativa ou psiquiátrica. É sobre não ter mais as palavras como elo com o mundo e com a nossas memórias: “O contato com o mundo se transforma radicalmente à medida que as linguagens oral e escrita minguam.” Desde que li John, não paro de pensar sobre esse lugar de desconexão, de silêncio.

John não é apenas um livro sobre o luto. É sobretudo sobre a perda da linguagem, o desligamento gradativo causado por uma doença degenerativa ou psiquiátrica. O que somos sem as nossas palavras? O que resta de nós quando elas nos faltam para nomear memórias e sentimento? Será que seguimos lembrando e sentindo?

O que somos sem as nossas palavras? O que resta de nós quando elas nos faltam para nomear memórias e sentimento? Será que seguimos lembrando e sentindo? São questionamentos que a autora, uma filha diante do desaparecimento do pai como o conheceu até então, de um lugar de profunda vulnerabilidade, se faz de forma sincera e corajosa: “Restariam lampejos, gostos, tridimensionalidades ou cheiros, ainda que sem conteúdo, sem palavras ou significados correspondentes? Restariam essas cicatrizes do humano, ou o que meu pai vivia era o presente puro, a sensorialidade pura…? ”

Depois de conviver algum tempo com as perguntas que Júlia me trouxe, entre elas a do filósofo Paul Ricoeur que diz “O esquecimento é mesmo uma disfunção?”, outras me vêm em mente e persistem: O que descobrimos quando tiramos da frente as palavras? O que brota, enfim, desse lugar de presença e silêncio?

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Tatiana Eskenazi, é poeta e tem dois livros publicados: Seu retrato sem você (Editora Quelônio) e Na carcaça da cigarra (Laranja Original).