No segundo semestre de 2019, participei da oficina Poesia em condições adversas, com o poeta Tarso de Melo. Havia um ano, vivíamos sob o desgoverno que assumira o controle do país, e quando vi a chamada para a oficina me interessei pela oportunidade de estar perto de um poeta que é uma grande influência para mim, acima de tudo, pela forma com que as adversidades deste mundo aparecem na sua poesia e pela sua sensibilidade para as questões
sociais e coletivas.

Assim como os poetas “quando falam, falam por/ todos os outros seres”, Tarso sempre falou por mim, e eu queria pensar mais sobre fazer poesia em tempos difíceis, quando “tudo é urgência/ tudo angústia”, sobre como escrever acerca das nossas pequenas tragédias (ou alegrias) pessoais diante de imensas tragédias coletivas, sobre como falar por todos os outros seres, também. Na época, apesar dos sinais, “A floresta vem visitar, vem visitar. Vai cair o céu”, não imaginávamos que se aproximavam tempos ainda mais adversos.

Em outubro de 2022, passado o pior da pandemia, quando pudemos, enfim, recuperar o fôlego – e como um presságio do que viria: o resultado das novas eleições presidenciais e o fim do pesadelo dos últimos quatro anos – Tarso lança As formas selvagens da alegria, pela Alpharrabio Edições, com escritos produzidos entre 2019 e 2022, nos dando o prazer de ter em mãos o que ele mesmo produziu durante o período mais difícil que vivemos nos últimos tempos.

O que Tarso de Melo fez neste livro foi responder com a sua poesia – como quem ensina pelo exemplo – àquelas perguntas: onde e como encontrar a alegria em tempos tão adversos? “Como ‘construir um tempo em que haja futuro’, como “recolher o país/do chão/recomeçar”. As Formas selvagens da alegria carrega, já no título, a resposta.

E não é apenas sobre como encontrar alegria diante das grandes catástrofes coletivas mas, também, diante das pequenas tragédias pessoais. Não é apenas sobre o que o poeta fez da sua angústia, que é a mesma que a minha, e de muitos de nós, diante dos eventos que nos assolaram mas, também, o que ele fez das suas dores pessoais, as que pertencem somente a ele.

Em As formas selvagens da alegria, Tarso de Melo não desvia nem por um segundo da sua angústia e mantém olhos e ouvidos atentos para as tantas dores do mundo, ele observa e questiona: “Quem são aqueles vivos nas ruas/ encolhidos?”. É na contramão da alienação que ele traça novos caminhos possíveis: “rever a rota/ mudar o rumo/ até se encontrar/ no descaminho”.

É observando o próprio pensamento, na tentativa de escapar ao seu emaranhado, “como escapar ao labirinto/ do próprio pensamento”, que podemos tomar distância e escutar o que vem de fora, “você se afasta um pouco/ para ouvir o que o mundo diz/ e invade outra forma de vida/ ainda intacta – e mais selvagem”.

Neste livro, Tarso de Melo nos ensina que é preciso estar presente e atento, “enfrentar todo dia/ a luta do dia” e, ao mesmo tempo, voltar, resgatar o olhar da criança, “olhar para tudo como se pela primeira vez”, ou do cão, que “morde/ as normas/ da casa”; que é preciso insistir, perseguir pelos lugares mais incertos, nas formas mais selvagens, até desvendar “na lágrima/ que corta a cara/ torta a palavra/ alegria.”

As formas selvagens da alegria é um livro importante, uma meditação sobre como seguir em frente com dignidade diante das adversidades que nos atingem sem jamais desviarmos delas, ao contrário, de olhos abertos e atentos ao que está fora – se é que existe uma fronteira – e ao que está dentro; um livro com o poder de apontar caminhos, “plantar no dia a bomba do novo”, a síntese do que este grande poeta tem feito até aqui, não só como poeta mas,
imagino, como ser humano também.

Voltar à pergunta primordial
olhar para tudo como se pela primeira vez
construir um tempo em que haja futuro.

Novelo
como escapar ao labirinto
do próprio pensamento
se as paredes que nos prendem,
a criatura disposta a nos engolir
e o fio a que nos apegamos
são uma mesma e única coisa?

Sopro
um mapa do país
uma tesoura
a janela aberta
cortar com cuidado
estado por estado
respeitando as fronteiras
pela última vez
jogar o país
em pedaços
para o alto
agora – deixar
soprar – o vento
até reinventar
a velha geografia
recolher o país
do chão
recomeçar.

Comércio
alguém que não se vende
alguém por quem não dão nada
alguém que tem valores
alguém que (dizem) não vale nada
alguém que não quer troca
alguém que (dizem) é zero à esquerda
alguém que se doa
alguém que se poupa
alguém que
alguém que merece seu (a)preço.

Entretanto
todo dia é apenas mais um dia
do fim dos tempos: ele dizia, enquanto
mergulhávamos no longo entretanto
era difícil saber, àquela altura,
que não restaria nenhuma Grande História
em que lançar nossos músculos
nenhuma missão à nossa espera
apenas acordar, acordar de novo
coberto pelo dia imenso, lançar os pés
sentir a hora descendo quente
o que de melhor se pode fazer?
fazer tudo de novo todos os dias
dizer tudo de novo todos os dias
plantar no dia a bomba do novo.

***

Tatiana Eskenazi, é poeta e tem dois livros publicados: Seu retrato sem você (Editora Quelônio) e Na carcaça da cigarra (Laranja Original).