Pollyana Ferrari tem urgência em descolonizar: as narrativas, a história, a educação e as mídias. Após quase uma década pesquisando as camadas da desinformação em rede, a jornalista e professora, com pós-doutorado em Comunicação pela Universidade Beira Interior – UBI – de Portugal, percebeu que era necessário mais do que “sair das bolhas” – para citar seu último livro sobre fenômenos como fake news e pós-verdade, lançado em 2018. Para combater a desinformação, era necessário unir processos de descolonização.
Em suas palestras, debates e nas turmas da PUC em São Paulo, onde ministra aulas de Comunicação Digital para graduação e mestrado, Pollyana sempre defendeu a ideia de que as “bolhas” de percepções equivocadas e perigosas só poderiam ser combatidas pelo pensamento crítico, a ética e a educação midiática. Agora ela vai além do letramento digital. Acrescenta o combate às camadas estruturais que sustentam a indústria das fake news: discursos racistas, homofóbicos, machistas e xenofóbicos.
Na sua mais recente obra, “Descolonizar pelo afeto” (Editora Veríssima, 2023), a pesquisadora chama o leitor para uma conversa – nem sempre confortável – sobre o avanço avassalador de desinformação racista e homofóbica nas redes. “Eu vinha pesquisando desde 2016 as camadas informacionais da desinformação, e essa pesquisa me levou a perceber que ela se sustenta, como parasita, do racismo, dos discursos de ódio, da homofobia, do sexismo, entre outros (des)afetos”, explica Pollyana, que propõe um processo de mudança social passando pelo reconhecimento dos privilégios de cor e de classe e desconstruindo o discurso eurocêntrico difundido por séculos.
Para a autora, o combate não precisa estar somente no discurso de ódio nem no exercício diário da política, mas também no afeto. “Não falo daquele afeto romantizado, criado pelo marketing para vender casais perfeitos e estimular o consumo, mas o afeto pelo ser humano, pelo outro, que emerge dos não ditos, dos privilégios não reconhecidos de nós, brancos”, completa.
Em entrevista exclusiva para Revestrés, Pollyana fala sobre a polifonia presente na obra – bell hooks, Chimamanda, o piauiense Nêgo Bispo -, reflete sobre a regulação das big techs e da Inteligência Artificial Generativa (IAG) e ainda sobre o ano eleitoral em tempos de desincorporação do ser humano.
Pollyana Ferrari lança “Descolonizar pelo afeto” em Teresina, no próximo dia 22 de fevereiro, em evento aberto ao público a partir das 19h no Maria Café. O lançamento tem apoio do hotel Villa Leste, Bee Mel, Entrelivros e Pitanga Gastrobar.
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Revestrés: “Descolonizar pelo afeto” é quase um chamamento, um convite, um lema que, muitas vezes, parece impossível. Após George Floyd, 8 de janeiro, para citar alguns episódios violentos… o afeto pode ser mesmo uma arma de combate?
Pollyana Ferrari: Acredito que o afeto é uma ferramenta muito poderosa. Para os autores Shoshana Zuboff, bell hooks, Nêgo Bispo, Luiz Rufino, precisamos resgatar as ambivalências, as imprevisibilidades, as contaminações, os atravessamentos, os não ditos, as múltiplas presenças, sabedorias e linguagens para retomar a presença do ser humano, diluída pelas telas. E o afeto – não aquele romantizado, criado pelo marketing para vender casais perfeitos e estimular o consumo – mas o afeto pelo ser humano, pelo outro, emerge dos não ditos, dos privilégios não reconhecidos de nós, brancos. Tem um trecho de “Principia”, no álbum Amarelo, de Emicida, que traduz bem a força do que quis trazer com “Descolonizar pelo afeto”: “Enquanto a terra não for livre, eu também não sou […] Então, será tudo em vão? Banal? Sem razão? Seria… Sim seria, se não fosse o amor. O amor cuida com carinho. Respira o outro, cria o elo. O vínculo de todas as cores. Dizem que o amor é amarelo” […] “Tão simples como um grão de areia. Confunde os poderosos a cada momento. Amor é decisão, atitude. Muito mais que sentimento”.
A autorregulação é uma falácia. As ações que existem neste sentido só aconteceram, e acontecem, com pressão popular e governamental.
Ainda sobre o novo livro… ele dialoga com Chimamanda Ngozi Adichie e “O perigo de uma história única”, quando propõe diversificar as fontes e rever os apagamentos e a narrativa eurocêntrica. Que relação tem tudo isso com o conceito de colonialismo de dados?
Pollyana Ferrari: O livro conversa muito com Chimamanda e outras vozes como bell hooks e Pap Ndiaye, embaixador e ex-ministro da educação na França, quando diz que “não nascemos racistas, nos tornamos racistas”. Participar da transformação digital que a Inteligência Artificial vai causar, sem perder de vista a descolonização de saberes, requer muita educação midiática e força de vontade, pois o colonialismo de dados vem sendo reforçado pelas big techs. “Os dados explodiram e as big techs sabem como se aproveitar disso. Inventaram uma nova forma de capitalismo, que chamo de acrobático: capitalismo de dados, de plataforma, neocolonialismo de dados”, diz a pesquisadora Lucia Santaella. Vou dar um exemplo que trago no livro: Por que nossas crianças aprendem na escola tudo sobre o imperador D. Pedro I, sua esposa, hábitos da corte portuguesa, o palácio em Petrópolis, as músicas portuguesas da época e nada sobre as danças e a religião de matriz africana? Ou mesmo sobre a história da população indígena – verdadeiros donos do Brasil? Por que sempre uma narrativa única? “É preciso contracolonizar a estrutura organizativa”, como ensinava Antônio Bispo dos Santos.
Em relação às big techs, um dos debates da atualidade é a regulamentação das mídias como forma de fortalecer a democracia. Qual sua opinião a respeito?
Pollyana Ferrari: Regular é preciso. A autorregulação é uma falácia. As ações que existem neste sentido só aconteceram, e acontecem, com pressão popular e governamental. Para o historiador Brendan Mackie, da Universidade da Califórnia em Berkeley, as big techs se utilizam das mesmas estratégias de colonização da Cia das Índias, o que concordo, basta olharmos suas fusões, aquisições e exploração dos nossos dados. E ainda temos, como sociedade, de lutar contra o lobby dessas plataformas, basta lembrarmos da ação do Google no Brasil dizendo que a votação de um Projeto de Lei (PL 2630) podia piorar a internet, publicados em 27 de abril (“Como o PL 2630 pode piorar a sua internet”) e 11 de março (“O PL 2630 pode impactar a internet que você conhece”) nos veículos oficiais da marca.
Os políticos são majoritariamente brancos no Brasil e a máquina da desinformação reverbera este cenário.
As últimas eleições brasileiras registraram o maior número de candidaturas de pessoas negras da última década. O aumento, entretanto, não se reflete na eleição nas urnas. O enfrentamento à desinformação com base no racismo tem um peso diferente na política?
Pollyana Ferrari: A frenesia de exterminar o outro transformou-se em necropolítica de Estado com as eleições de 2018. Recuperamos um pouco do fôlego com as eleições de 2022, mas ainda estamos pagando um preço alto. Estamos avançando, mas muito lentamente. Para Lia Vainer Schucman, professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), “a branquitude é produto e resultado de nossa história de dominação colonial, e somente com uma sociedade que desmonte suas hierarquias, e na qual absolutamente todas as vidas humanas tenham exatamente o mesmo valor, a brancura de pele poderá se tornar apenas uma característica da diversidade de fenótipos humanos e não um lugar de poder”. Os políticos são majoritariamente brancos no Brasil e a máquina da desinformação reverbera este cenário.
Nas eleições municipais será pior o estrago. Em tempos de desincorporação do ser humano, as imagens da inteligência artificial oferecem cenários convidativos para uma audiência pouco atenta e mergulhada em crenças e preconceitos.
E por falar em eleições, este ano corremos o risco de ver uma reprise do que aconteceu em 2016, com a campanha de Donald Trump recheada de fake news? Isso pode refletir no cenário brasileiro, com eleições municipais próximas?
Pollyana Ferrari: Será muito pior em matéria de estragos do que foi em 2016. Em tempos de desincorporação do ser humano, as imagens sintéticas da inteligência artificial oferecem cenários muito mais convidativos para uma audiência pouco atenta e mergulhada em crenças e preconceitos. Não há como postergar essa necessidade de regulação das big techs e da Inteligência Artificial Generativa. Vou citar o exemplo da eleição presidencial na Argentina, que foi decidida em segundo turno, tornando-se o primeiro grande caso da interferência de ferramentas de inteligência artificial no processo democrático.
Sobre a autora:
Pollyana Ferrari é pós-doutora em comunicação pela Universidade Beira Interior (UBI) – Portugal, Doutora e Mestre em Comunicação Social pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Departamento de Comunicação da (PUC-SP). Autora de 10 livros sobre comunicação digital, entre eles, “Como sair das bolhas”, “Jornalismo Digital” e “A força da mídia social”. Seu mais recente livro é “Descolonizar pelo afeto” (Editora Veríssima, 2023).
Lançamento em Teresina: