O centro tem, ele todo, um charme especial. Ele está para a cidade como os velhinhos estão para a praça. O tempo corre sem pressa, ignora o novo, constrange o modernoso. Entra o concreto, passa um novo asfalto, mas ninguém consegue tocar no ar – as ruas tem o mesmo cheiro que eu sentia ao voltar da escola, subindo a Paissandu até a casa de vovó, uma portinha com janela a sombra da bela figueira. A rua de minha avó era para mim o nosso mundo.
A um quarteirão comprávamos leite na casa do seu Almeida, esquina da Rua Olavo Bilac – que eu nem sabia ser o poeta que ouvia estrelas. Aquela altura as únicas estrelas que eu via eram as que brilhavam pelas brechas do telhado à noite e, sim – às vezes eu conversava mesmo com elas.
Na Magalhães Filho a gente sentava no chão da calçada, brincando de tomar como nossos os carros que apontando lá em cima, virando na nossa rua-mundo. Ora você podia ser um fusca, ora ganhava um opala, numa disputa tão cruel quanto animada dentro da imaginação. Nosso prestígio de criança, bem como nosso destino, jogado assim, a própria sorte.
Foi nesta mesma calçada que meu pai fingiu lançar minha chupeta ao longe sem que ela nunca tivesse saído da sua mão. Eu, tola, acreditei, mas não chorei porque chorar era coisa de criança e não combinava com a adulta que eu me tornara ali, pelos 3 anos, ao tomar uma importante decisão – mal sabia que adultos são represas de lágrimas frequentemente tomando estúpidas decisões.
Íamos na quitanda do seu Luís, explorávamos as casas com quintais enormes numa espécie de curadoria de propriedade para ser feliz – alguns tinham balanço, outros merenda – aliás, foi num desses territórios que elaboramos um sofisticado plano de assalto a delicatesse da Rua São Pedro. Fomos bem sucedidos, não fosse o fato de sermos todos traídos por nossos próprios pais, pífios pagadores de dívidas. Comprar não tinha a menor graça se a moeda vigente não era de chocolate.
O centro tem a mesma cor e o mesmo cheiro que pelejo para não esquecer enquanto caminho pelas ruas hoje, apertando os olhos, no esforço de lembrar. Cada árvore a menos, cada muro indo ao chão, é um quadro arrancado a força da parede de memórias do meu coração.
Na Félix Pacheco, 1511, quase esquina com a 24 de Janeiro, passam carros, passam ônibus e eu também vou passando vendo a casa me vê passar. Dali, meu avô via meu pai, meu pai avistou minha mãe, e agora a casa toda parece uma pessoa a me observar. Seus janelões, imponentes, magistrais, parecem dois olhos a me espiar. A porta entreaberta faz as vezes de boca que eu quase consigo ouvir cochichar: “Ela quis explorar o mundo, ser global”, ri de mim: “Mas a verdade é que nunca saiu de seu quintal”.