– Estamos aqui na Penitenciária do Estado para entrevistar João Moura. Hoje, a Editora Verdade estará lançando nas livrarias, o seu livro “Capítulo Final”. João está preso. Esta é sua cela e este é o João.

A câmera, depois de focar a bela repórter de cabelos e olhos pretos, dá uma panorâmica na cela. Cama de ferro, mesa de madeira e o chão de caquinhos de cerâmica. Na prateleira, muitos livros e a janela entreaberta. Então fecha em um homem branco, atarracado, rosto quadrado com enormes olhos claros. O sujeito parece em atitude defensiva.

– João, qual é a tua sensação de estar preso e lançar um livro lá fora? Questiona a repórter com voz fina, modulada, a recolher sua saia curta para sentar em um banquinho de madeira.

– Difícil explicar. Sonhei com isso, lutei tanto, quebrei minha cabeça para escrever e reescrever esse livro várias vezes. Agora que acontece, ficou um vazio. Parece que o concebi e agora estou dando para os outros criá-lo. Responde o presidiário, com voz rascante, se embaralhando com as palavras, pessoas, câmara e microfone.

– Do que trata seu livro? Volta à carga a garota, já sentada no banco, em frente ao entrevistado. O homem luta, visivelmente, para não perder seus olhos para dentro daquelas coxas.

Um homem barbudo e alto focaliza-os com uma câmara enorme de pesada. Move-se com extrema leveza, quase que deslizando pelas paredes, concentrado em conduzir o aparelho e focalizar.

– Basicamente, conto minha vida. Inicio a história no Juizado de Menores. Não conheci meus pais e fui criado por instituições para crianças abandonas. Em seguida a assimilação da cultura ambiente desses abrigos, onde aprendi a vencer o medo e roubar. Mais adiante, narro minha vida dentro e fora das prisões para menores de idade que havia em meu tempo. A relação de tortura e corrupção com a polícia. Então, entro na maioridade já totalmente envolvido pela cultura criminal. Assaltos, drogas, velocidade, sexo, emoções fortes, adrenalina a mil e a prisão aos 20 anos de idade. E ai sequencia para a vida que vivi na prisão até há pouco tempo.

O prisioneiro já vai se soltando e deixando escapar emoção diante da câmara. A cama em que esta sentado, aparece com lençóis esticados e o travesseiro na cabeceira.

– Há quantos anos você está preso e de quanto é sua condenação, você concorda em nos contar? Pergunta a moça, um tanto desconfortável, remexendo-se no banco. Seu corpo nervoso comunica alguma coisa estranha aos olhos nus do preso, que se agitam a cada gesto dela.

– Sem problemas. Estou preso há 15 anos. Minhas penas somam 45 anos. Diz num sorriso entre dentes e lábios crispados.

– Puxa, deve ter sido terrível estar tanto tempo preso. O que você fez nesse tempo todo? Não doeu muito? Interroga a jovem repórter, sensibilizada e já começando a se envolver com a entrevista. Joga os cabelos para trás, ajeita com a mão direita e sorri para a câmara.

– Sofri dia por dia, hora a hora. E me arrastei esse tempo todo em busca de conhecimento e saber. Logo no começo do cumprimento de minha pena, compreendi que estava preso por ser ignorante, analfabeto e, conseqüentemente, violento. Na verdade, a vida toda justifiquei a política criminal vigente. Nos últimos 20 anos, sempre estive lá nas estatísticas sobre a criminalidade. Vai dizendo João, soltando-se de sua inibição.

– Você considera justa sua condenação?

– Sim e não. Depende de que modo se encara o sentido de justiça. Acredito, em certa medida, que ser preso foi um bem para mim. Arguiu reflexivo, em busca de uma profundidade. Uma ruga aprofundou-se em sua testa, seus olhos centralizaram-se.

– Como assim? Questiona a garota, surpresa com a resposta inusitada.

– Na embalada que eu ia, a alternativa teria sido a polícia me matar. Do mesmo modo com que matou a maioria da molecada que foi criada comigo na FEBEM. Posso me considerar um sobrevivente de uma catástrofe social de elevadas proporções. Estava bastante revoltado e com muito ódio acumulado. Se continuasse a liberar o desespero que havia em meu coração, talvez ultrapassasse a minha humanidade. Então nem estaria conversando com você agora. Concluiu, relaxando e soltando o corpo, à vontade com a equipe de filmagem em sua cela.

– E o que mais? Perguntou a esperta garota.

– Por outro lado, sei que sou produto de um meio social extremamente adoecido e nocivo ao ser humano. Questiono até que ponto essa sociedade tão injusta, perversa e desigual tem o direito de me manter preso como um animal, por tantos anos. Não examinaram as relações sociais que podem ter gerado meu comportamento criminoso. Veja: a cultura criminal que me trouxe para a prisão foi assimilada nesses reformatórios para jovens delinquentes. Foi ali que aprendi a revolta e o desespero que me fizeram odiar o mundo e desvalorizar a vida humana.

– E agora, esse ódio, essa revolta, essa cultura criminal, até que ponto ainda são fatores determinantes em você? Indaga a garota, tentando elucidar, com armadilhas sutis de palavras. Seus olhos estão acesos, estrelinhas os circundam no globo ocular.

– Depois de preso encontrei pessoas que me provaram que existe gente boa no mundo. Até então, isso era ficção para mim. Todos que se haviam mostrado bons e amigos, depois usaram e fizeram sofrer. Conheci, já preso, pessoas que me amaram e às quais amei devotadamente. Experimentei valores, caminhos e as culturas que me ensinavam. Só então percebi que aquilo era exatamente o que eu procurava a vida toda e jamais soubera como. Claro, sou humano, me desviei várias vezes. As coisas não aconteceram de uma hora para outra. Tudo é sedimentar. A cultura criminal que absorvi durante tantos anos, não podia desaparecer assim num estalar de dedos.

– Que valores, caminhos e culturas são essas? Especula a moça, entre mordaz e descrente.

– Tem a ver com a busca de verdades pessoais. Sempre imaginei que tendo a alma exposta, a verdade existencial brotaria. Busquei responder perguntas fundamentais que todo ser humano faz ao erguer os olhos do chão e enxergar o universo infinito à sua frente. Quem somos nós; de onde viemos; para onde vamos; qual é o motivo de nossa vida; existe algo além do que percebem os sentidos; há um Deus? E vai por ai afora.

– Você conseguiu as respostas? Questiona duvidando da capacidade do preso em pesquisar questões tão complexas como aquelas.

– Com os olhos abertos como velas, procuro responder todos os dias, empiricamente. De uma coisa estou certo. Não estou só no mundo. É fora de dúvidas para mim que há uma preocupação por mim e por cada um de nós. Ao contar minha história nesse livro, ficou absolutamente claro isso. Nos piores momentos, algo aconteceu; a vida respondeu, e eu consegui sobrevive-los. Tudo o que acredito esta embasado em experiências pessoais palpáveis, consistentes. Há alguma coisa que me quer bem, até mais que eu mesmo. Isso exige de mim um procedimento conseqüente. Coerência entre sentir, acreditar e buscar tornar vivência. Claro, dentro de meu possível.

– Interessante… Mas, você se considera um homem regenerado, adaptado à convivência social? Quer saber a moça, assim pensativa, seus olhos expressam dúvida.

– Olha, eu não considero nada. Para mim existe o aqui e agora. Quando estiver lá fora então quero colocar em prática as ideias que povoam minha mente agora. Mas eu sei, minha cara, que preciso lutar muito contra a cultura prisional que me permeia. Vou encontrar uma sociedade sem muito espaço para quem chega marcado por um passado como o meu. Depende muito do que acontecer com esse livro. Se for bem aceito, então terei uma carreira e uma profissão. Então tudo poderá ser diferente.

– Senão?…

– Senão, há outros caminhos. Espero que bons caminhos e boas oportunidades. Confio que o que me protegeu até hoje, não há de me abandonar, quando eu mais vou necessitar.

– Pena nosso tempo ser limitado. Gostaria de não terminar tão cedo essa matéria. Bem, mas o assunto é o livro, o que mais você diria sobre ele, para encerrar?

– Ali está minha vida, meus muitos erros e bem poucos acertos. Tentei dar o melhor de mim no que escrevia. Estudei seriamente o problema da criminalidade para tentar falar disso com propriedade. Tentei contribuir, passar minha experiência e vivência. Não há uma mensagem. Há sangue, carne e verdade. Toda sinceridade que fui capaz. Agradeço a oportunidade de divulgar.

– Monica Rangel, da Penitenciária do Estado, entrevistando João Moura, autor do livro “Capítulo Final”, para o jornal da Cidade.

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Luiz Mendes

Novembro de 1990.