Não há outra saída senão exercer a liberdade de escolha sempre. Não há decisão se não houver circunstâncias. Estamos sempre envoltos em circunstâncias e, obviamente, tendo que decidir e decidindo. Sem circunstâncias não há mundo e, não havendo mundo, não há existência:

Eu tinha cerca de 21 anos. Estava preso na Penitenciária do Estado, condenado a mais de 100 anos e cumprindo regime de castigo. Não havia me desenvolvido normalmente por viver desde os 11 anos de idade na rua. Pequeno, frágil e com cara de menino. A pederastia selvagem imperava na prisão; não havia visita íntima. Os presos me olhavam qual eu fosse uma moça, cobiçosos. Odiava aqueles olhares. Estava no castigo por haver matado um sujeito que tentara me estuprar.

Estávamos na cela do Fórum da Capital. Eu sumariava um dos meus muitos processos. Junto comigo, cerca de 20 companheiros de prisão. Meia dúzia deles estava em regime de cela-forte como eu, e quase todos por crimes dentro da prisão. Eram os “matadores”. Tiraram três facas improvisadas da parte posterior da coxa, que estavam presas com esparadrapos. Haviam passado na revista assim armados. Eu os conhecia, cada um deles havia matado duas, três ou até quatro vezes dentro da prisão. Perguntei a quem eles iriam matar. Era um plano de fuga. Tentariam sequestrar o Juiz quando fossem atendidos em audiência. Estavam todos no mesmo processo; um crime que um deles cometera e os outros haviam sido arrolados como testemunhas. Enfrentar PMs armados com facas era um plano suicida, na minha opinião.

Não consegui me tranquilizar. Com certeza seríamos todos espancados. Os PMs se vingariam em nós. Era situação limite cujas circunstâncias já haviam sido dadas quando escolhemos dar motivos para sermos presos. Restava as consequências. Depois da pressão ali naquela cela lotada, soubemos que tanto a minha como a audiência deles, haviam sido adiadas. Os demais companheiros haviam sido ouvidos. Os guardas que abriam os portões estavam ressabiados; abriam a cela de armas embaladas nas mãos. Aquilo ativou nossos sensores. Algum daqueles que saíram e voltaram, com medo das facas serem utilizadas contra eles, denunciara.

Eu não tinha nada a ver com aquilo. Mas sabia como os policiais eram sádicos e que gostavam de nos espancar. Nem era preciso nem dar motivo. Fomos deixados por último na hora de sermos embarcados no camburão para voltar à prisão. Quando percebi, só havia eu e os “matadores” na cela. Trataram de esconder as facas dentro da privada. Não podiam voltar com elas; seriam descobertos na revista de praxe.

De repente, fomos tirados da cela e colocados lado a lado contra a parede. Os PMs, de armas nas mãos, exigiram que nos despíssemos. Havia cerca de 50 policiais e 6 presos nus na sala. Eles queriam saber das facas, que não acharam. Claro, ninguém sabia de nada e eu, muito menos. Estava na ponta e era o menor e o mais mirrado de todos. Os soldados não tiveram dúvidas: em meia dúzia me juntaram, ergueram no alto e levaram para outra sala. O Tenente me questionou sobre as facas. Sabia que seria torturado, mas escolhi nada dizer, não abriria a boca para nada. Gritaria ao ser espancado para avisar os outros.

Eles estavam impacientes. A pancadaria veio rapidamente. Pior que apanhar é esperar para apanhar. Foi um alívio quando choveu cacetadas e pontapés. Era tanta gente me batendo que eles se batiam entre si no afã de me acertar. Racharam minha cabeça, quebraram o nariz e estouram a boca. O sangue esguichava e eles batiam ainda. Já nem doía mais de tanto que haviam me machucado. Quando pararam eu estava lavado de sangue, vários deles também. Ainda queriam saber e bateram mais ainda. Eu estava firme por dentro, decidido, cuspindo pedaços de dentes e sangue. Saíram me arrastando de volta à sala de revistas e jogaram em um canto. Pegaram o Joca, que era o próximo. Ele era grande e forte; saiu batendo neles também. Os outros quatro avançaram e formou-se um bolo de presos e PMs no chão, uma gritaria, um escândalo que chamou a atenção de Juízes e autoridades. Tiveram que parar.

Os parceiros me ajudaram a me vestir, agora eu era um deles, o que mais apanhou, não denunciou e que mais precisava de ajuda. Fomos jogados dentro do camburão a pontapés. Sabíamos o que nos aguardava ao chegar na Penitenciária: mais espancamento. Desmaiei dentro do carro de aço. Acordei na enfermaria com armação de pau no nariz, cabeça costurada, costelas quebradas, cheio de hematomas, com o corpo todo doendo. Meu braço direito e as costelas estava enfaixados, as pernas machucadas e a canela sangrando. Mas por dentro estava contente. Havia provado que, mesmo sendo menor e mais fraco, era tão forte quanto qualquer um deles.

Quando voltei para a cela-forte, 15 dias depois, ainda com o braço na tipóia, todo enfaixado e nariz inchado e com armação de palitos de sorvete, o silêncio foi total. Quando os guardas saíram, todos queriam falar comigo e perguntavam sobre minha saúde. Eu era alguém, um homem respeitado.

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Luiz Mendes

23/01/2015.