Ainda na prisão, depois de anos de reflexões e experiências pessoais, conclui que o problema da reincidência do homem aprisionado é cultural. Somente quando entendi que estava impregnado pela cultura criminal é que consegui ultrapassá-la. Até então, todas as oportunidades que escavei até sangrarem os dedos, haviam dado no concreto duro das muralhas. Cheguei a frequentar uma universidade (PUC/SP) e cumprir pena no regime semi-aberto. E fracassei em ambas as chances, depois de muitos sacrifícios. Conclui então que talvez melhor fosse não houvesse conquistado tais oportunidades.

Concomitante a esses esforços, desenvolvi capacidade de auto-crítica, que, então, me massacrou impiedosamente. Comecei a me questionar se eu não era um psicopata, um psicótico, um sociopata, um criminoso contumaz, pessoa incapaz de conviver com os demais seres humanos. A auto-estima situou-se abaixo da poeira do chão. Havia algo estranho porque eu me sentia plenamente capaz de conviver numa boa com as pessoas. Gostava delas, sentia-me capaz de amá-las e sabia que podia ser útil para a sociedade. Sai a procurar. E foi lendo sobre antropologia cultural que comecei a puxar a linha do novelo.

Era óbvio: Anos, décadas sendo aculturado dentro de instituições para menores de idade delinquentes e depois prisões, haviam me impregnado daquela cultura. E cultura é algo que não morre, é preciso que seja ultrapassada, se não queremos que predomine. Por mais desejasse conviver, a cultura da qual era vítima, impedia. Os livros e as pessoas que me procuravam na prisão me salvaram. Pude oferecer uma contra partida à cultura prisional, confrontar e vencer. Estou há 12 anos aqui fora sem sequer haver passado na porta de uma delegacia. Não roubo uma bala no supermercado. Vivo em paz com as pessoas, disposto a colaborar e, se possível, ajudar e servir.

Ao final de minha pena, alfabetizei muitos companheiros em 6 ou 7 anos como professor. Quem ensina na prisão é mais que professor. É amigo, confidente, faz as vezes de psicólogo, às vezes até pai ou irmão. Pude, então, conhecer melhor os companheiros de sofrimento. Estudei, esforcei-me muito para fazer face às demandas que os alunos me apresentavam.

Quando sai da prisão, imaginei fazer a diferença com o conhecimento adquirido. Quis levar minha experiência pessoal, o que havia estudado e tudo o que pudera observar aos ex-companheiros. Procurei entidades, ONGs, OCIPs e Institutos que trabalham com presos na certeza de que meu conhecimento seria levado em

consideração. Mas não fui bem aceito. Consegui financiamentos e apoios para fazer Oficinas de Leitura e Escrita. Consegui promover o livro em alguns lugares e até em outros Estados. Estive até na Fundação Casa trabalhando com adolescentes. Mas jamais pude ir mais fundo e discutir meu conhecimento e experiência acerca da cultura criminal e sua ação nefasta nos estabelecimentos penais. Cheguei a falar disso em faculdades, empresas, institutos, escolas, mas ligeiramente, jamais como se fazia necessário.

Até que nos ano passado fui convidado pelo Instituto Ação pela Paz (IAP) para, junto com o psicólogo Maurício Cardenete, montar um projeto. Afinado comigo e com muito mais conhecimento teórico que eu, Maurício me deu a base que eu carecia. Também ele acreditava que o problema da reincidência criminal é cultural. Montamos um projeto de 5 módulos cada um com 4 aulas de 3 horas. Começamos a apresentá-lo semanalmente no Centro de Reintegração de Limeira, para 30 homens aprisionados. A intenção era de empoderar, ajudar a formara uma capacidade crítica e auto-crítica, trabalhar em cima de valores aplicados, confiança, escolhas, emoções, comunicação, consumismo, ansiedade, amor: seriam 37 temas ao todo.

A semana passada concluimos nosso projeto-piloto com as 20 aulas. Foram cerca de 5 meses de debates, reflexões, discussões, textos e conversas, entremeadas de dinâmicas, filmes curtos, desenhos, entrevistas e tudo o que tínhamos a oferecer em termos de experiência e diálogo. Vamos iniciar mais um grupo, dessa vez com 4 estagiárias em psicologia de uma Universidade da cidade, que vamos ensinar a aplicação do projeto. Nosso objetivo é passar para outras prisões e elas continuarão por ali com o projeto, até atingirem todos os presos.

Estou feliz: realizei meus sonhos; os ex-companheiros que participaram estão voando baixo e o projeto terá continuidade naquela e em outras prisões. Os indicadores avaliaram o aproveitamento e comprovaram o sucesso deste projeto. A cultura e a educação são a salvação, o que aprendi, estudei e observei fizeram a diferença.

**

Luiz Mendes

20/05/2016.