Preciso, a todo momento, provar a mim mesmo que não há nada a temer. Que sou forte e tenho a alma animal. Vivi tantos anos (décadas) sendo desvalorizado, minimizado, que careço de me convencer, a cada desafio, que sou capaz de encarar e mesmo que tenha dúvidas, enfio os peitos. Quebro a cara constantemente, é preciso dizer. Mas, na minha idade e com minha experiência de vida, tenho afinado minha sensibilidade e aprendido a amenizar esses prejuízos. Então jamais me machuco excessivamente. Bem, não até agora; como futuro é um conjunto de instantes vividos, até lá então pode acontecer. Estou procurando me manter preparado para o pior também, embora lute desesperadamente pelo melhor. Ainda sou desses idiotas que acredita que é possível ser feliz, e mesmo que for infeliz, ainda assim vale a pena.

Às vezes a substância líquida e insossa da vida me assusta. Não sei mais se sou um homem tecendo minha vida, ou é o artesanato da vida me entrelaçando em seus fios tênues. Conheci, a tempos atrás, um grupo enorme de jovens no bairro encostado ao que moro. Conhecer pessoas hoje é meu grande barato. Aos poucos, fui conquistando confiança e amizade. A princípio, eu era uma grande curiosidade para eles. A criminalização dos jovens na periferia dos grandes centros é um processo lento, mas progressivo. A luta para conseguir um emprego é de foice no escuro, por mais chavão soe. Não há trabalho para quem ingressa no mercado de trabalho agora. Claro, sempre há o “quebra-galho”, o “bico”, e é disso que eles vivem.

O “beck” sempre aparecia, era inevitável. É quando, ali unidos na roda de amigos e iguais, amortecem suas tristezas, preocupações, frustrações e se divertem entre si. Quase todos se conhecem desde crianças. As meninas, quase todas, já são mães, e algumas de mais de um ou dois filhos. Brincam, namoram entre crianças e adultos, perdida que foi a adolescência. Andam, notívagos, pelos bairros circunvizinhos, em busca de outros grupos de jovens. Quando se encontram, é festa. Beijos, abraços e fortes apertos de mão. Ninguém tem nenhum tostão no bolso, mas o “beck” aparece como que por encanto. Sei como, por isso falo em criminalização do jovem da periferia. Vaguei com eles algumas noites insones.

O mundo ameaçava me engolir pelos seus excessos. TV, rádio, jornais e revistas viviam me procurando para entrevistas. Aquilo me desfocava, causando angústia. Uma palavra mal colocada poderia causar estragos. Enquanto isso as prisões tremiam, rebeladas e meu coração ficava pequeno. Às vezes surgia sensação de estar lá dentro, esperando a PM entrar dando tiros ou batendo. E eles viriam em busca de retaliação. Supostamente, o PCC havia liberado matança a policiais e carcereiros. A polícia, por sua vez, estava matando mais que a peste negra aqui fora. A guerra me deixava sem saber o que pensar. Será que todo mundo havia enlouquecido? As ruas desertas me comunicavam pânico. Aquilo parecia quando ia morrer alguém assassinado na prisão. O clima da morte encharcava todos de gravidade. Quase ninguém falava e todos tensos.

Então uma das garotas se aproximou mais de mim. Sua intenção era me pedir que ajudasse sua amiga. Eu a conhecia e não havia percebido. A garota estava no olho do furacão, como eu estive inúmeras vezes. Contou-me com a voz sumida e quase sussurrante. Tinha dois filhos e moravam com

os pais. O pai das crianças estava faltando com a pensão há 3 anos. A mãe queria colocá-la para fora de casa com as crianças. Motivos? Nem sei se há motivos para que pais coloquem suas filhas para fora de casa, sabendo-os com filhos pequenos, grávida, e sem recursos sequer para sobreviver.

Sim, ela gostava da gandaia. Amava sua liberdade. Queria ficar a noite andando com seu grupo de amigos. E, pior, estava grávida. O namorado, ela não sabia se ia querer o filho. Havia até dúvidas quando à paternidade. Havia contado os dias e nem ela tinha absoluta certeza. Sim, era mais uma que me procurava querendo abortar. E agora? O que eu poderia fazer com uma situação tão grave como aquela? Fui tomado por uma compaixão tão grande pelos problemas aquela garota e seus filhos, que ficou insuportável.

Sou pobre, como todo escritor neste país. Vivo do que escrevo. Vendo meus livros, faço palestras quando me convidam, faço Oficinas de Leitura e Escrita, crio projetos educativos, ataco de free lancer com textos para sites, revistas e jornais. Eu me viro. Não dava para driblar a garota, não consigo ser insensível. Só havia uma saída. Eu pagaria o deposito do aluguel da casa que ela e as crianças careciam. Compraria fogão, camas, colchão e mantimentos para um mês. Mais fácil (e mais barato) seria pagar o aborto, mas reverencio a vida, como Albert Schweitzer. Seria um sacrifício. Precisava comprar roupa de verão para meus filhos, fiquei preocupado que o dinheiro não desse. Mas não consegui ficar indiferente e muito menos omisso diante a gravidade dos fatos. Compreendo a morte, mas o nascimento e a vida estão além da minha capacidade de compreender, então lido com fatos e efeitos.

Esse tempo passou, como tudo na vida. A pressão sobre mim foi se escoando e voltei a viver na bendita obscuridade novamente. As pessoas não queriam acreditar, mas o que aconteceu na semana de terror em São Paulo era previsível, e muitos alertaram, inclusive eu. A bomba que foi jogada ao ar, não sairia do casulo para virar borboleta e sair voando para longe, com certeza. Continuava lagarta e cairia, como caiu, e explodiu com toda sua intensidade.

Logo depois a garota veio aqui em casa me procurar. Estava feliz. Havia procurado o pai da criança que iria gerar e este acolhera com alegria a notícia. Queria que ela vá morar com ele, junto com seus filhos. Senti alívio. Tirei peso enorme de sobre meus ombros. Sabia que o que iria fazer não se sustentava no tempo. Não tinha condições de arcar com outra família.

Fiquei feliz comigo mesmo sem ter feito nada. Sabia que, mesmo com imensa dificuldade, faria e iria até o fim.

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Luiz Mendes

06/09/2016.