Quando a conheci, não gostei nem um pouco do que vi. Sentia-me mesmo agredido pelo seu comportamento e suas idéias. Eram diametralmente opostas às minhas. Havia saído da prisão há bem pouco tempo; foi duro teste de adaptação. Sua vida era mentira constante. Representação. Seus preconceitos, a mania de grandeza, de superioridade, não sendo grande ou superior, até muito pelo contrário, era quase ofensiva.

O pior é que se acha mesmo. Mera funcionária do Estado, ganhando pouco mais de dois salários mínimos, pousava de madame a peruar. Seus dedos são cheios de anéis que imitam originais. Entra nos hipermercados feito madame; esperando ser servida. Apanha o carrinho de compras, e vai enchendo dos produtos caros, exibindo-se pelos corredores da loja. Quando cansa da “brincadeira”, encosta o carrinho em algum canto e sai de queixo erguido, como se nada ali lhe agradasse.

Conhece os Shoppings com intimidade. Invade lojas sofisticadas e experimenta roupas qual as pudesse comprar. Sua representação é impecável. Vem para fora do provador para se mostrar vestida. Conta histórias de um filho milionário que paga todas as contas. As vendedoras e clientes que se deixam impressionar ficam de queixo caído ouvindo-a. Todos acreditam. Depois sai sem levar nada, distribuindo sorrisos e encantamento.

Enfrenta frio, sono e fome para comprar produtos falsificados de griffes famosas na feira da madrugada no Braz. O tênis de segunda linha aperta um pouco, mas engana qualquer um. A calça e a camiseta piratas não se ajustam bem, mas enganaria o fabricante original. O lindo relógio “falsiê” não pode sentir cheiro de água que já inunda. As “jóias” extravagantes são do Paraguai. Os perfumes “franceses” só exalavam cheiro quando esparzidos. Depois é só álcool e água. Quase se sufocava fechando os vidros do carro usado do marido, para fingir ar condicionado interior.

E lá vai ela, toda faceira, atraindo olhares com aquela roupa colada e que corta a pele, de “marca”, como quem vai à academia. O cabelo loiro-platinado balança (as raízes escuras denunciam o real), mas teme à chuva. Leva sombrinha na bolsa com o enorme logo da griffe estampada, em dia de sol. Anda feito louca com aquele tênis arrochado que lhe enche os pés de bolhas, para manter a forma física. Volta da “academia” com a toalhinha rosa enxugando suor da testa e do pescoço. Faz caras e bocas de cansada, afirmando que o “personal treiner” exigiu muito dela naquele dia…

Depois de conviver com esse falseamento da verdade, a gente acostuma e começa a achar engraçado. A indignação que me afetava vira motivo de rir. O trágico transformou-se em comédia. Hoje pouco vejo essa falsa bacana, mas quando a encontro me divirto com suas ultimas peripécias. Ela mesma acredita em suas representações. Vive-as com todo empenho e intensidade que é capaz.

Parece menina brincando e esta beirando a terceira idade. Depois de um tempo descobri que essa é a forma que ela encontrou de, em sendo pobre, lidar com a sociedade de consumo. Passei a valorizá-la. De alguma forma ela zomba de tudo ao tempo em que preenche seu imaginário de substância. Embora pareça, sua solução não é nem um pouco original. Todos nós fazemos um pouco disso. Caso contrário o mercado da pirataria iria à falência. E não é o que acontece, muito pelo contrário.

Todos nos vemos e fantasiamos com as roupas e as coisas que desejamos ter. Quantos não compram e depois não têm como pagar? Quantos, inadimplentes, emprestam de um banco para pagar financiamento de outro?  Ela não tem, mas fingindo ter, dribla a frustração, inventa e chega a ter. É quase poético. Lembra um poema de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor…”

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Luiz Mendes

19/09/2016.