Depois de três décadas vividas em Nova York, posso dizer que conheço a cidade razoavelmente bem. Sempre fui adepto das longas caminhadas. Algumas, planejadas, com rotas específicas, incluindo o que ver, onde comer, lugares de interesse para adultos e crianças. Assim, dessa forma, conheci bem as cidades onde vivi, por longos ou curtos períodos: Nilópolis, Rio de Janeiro, Londres, Paris, Haifa, Genebra, Estocolmo, Teresina, Nova York. Ou, às vezes, aventurava: fechava meus olhos e, dedo em riste, apontava para o mapa da cidade, deixando a sorte decidir a rota. Onde meu dedo caísse no mapa, para lá iria.

 

Gosto desses mistérios, de caminhar sem ou com destino, a favor do vento, no lado da calçada banhada pelo sol. Não é por acaso que algumas das minhas palavras favoritas em português são chance, casualidade, acaso, destino. Assim, dessa forma, conheci os cinco distritos (boroughs) que formam a cidade de Nova York: Manhattan, Queens, Brooklyn, Staten Island e Bronx, esse o único que não é ou não faz parte de uma ilha. Também gosto muito do anonimato do transporte público, particularmente, ônibus. Gosto de imaginar quem são e para onde estão indo os passageiros. E observar a vida através da janela, devanear, sonhar acordado. Pensar, imaginar, ter ideias: vivo disso.

Nova York é, fundamentalmente, uma cidade barulhenta. Especialmente Manhattan, o distrito em que vivi nessas ultimas três décadas. O trânsito, as sirenes, são a trilha sonora Nova Iorquina, certamente o lugar mais retratado do mundo (o que sempre foi uma grande jogada de marketing para a cidade). Sirenes de todos os tipos e para todos os gostos: ambulâncias, polícia, corpo de bombeiros. Nesse aspecto, a trilha sonora da cidade mudou desde o início da pandemia: aumentou enormemente o barulho de sirenes. Constante, dia e noite, sem cessar. Isso significa mais emergências, pessoas sendo levadas para hospitais, mais casos de polícia, suicídios, acidentes em casa, e um aumento significativo de violência doméstica, sem sombra de dúvidas. Por outro lado, noto a enorme diminuição de outros barulhos: gente, automóveis, música alta. Um silêncio artificial, meio fantasmagórico, quase apocalíptico.

Mudou também a dinâmica das ruas: umas das principais fontes de irritação do residente em Nova York é a velocidade (ou lentidão) com que as pessoas caminham nas calçadas. O lado direito para quem anda devagar, o lado esquerdo para quem anda depressa. E ai de você não prestar atenção ao caminhar (escrevendo textos no telefone, por exemplo) e esbarrar em alguém. Mas, agora, isso também mudou. As pessoas estão bem mais atentas, caminham prestando atenção umas nas outras, evitando assim a possibilidade de se esbarrarem, de romper o acordo tácito de permanecer a uma distância de dois metros entre elas.

Finalmente, sob o ponto de vista de permanecer trancafiado em casa, para mim não é um grande problema. Tenho muito o que fazer. Cuido de pessoas, isso ocupa meu tempo e minha mente. Tenho, felizmente, a companhia de meus filhos, passo muitas horas olhando à janela, imaginando. Escrevo. Penso. Planejo. Organizo. O fato de não poder sair, de sentir me preso, não me preocupa. A imaginação ainda é a maior fonte

de liberdade do ser humano. Nada pode impedir nossa capacidade de imaginar, sonhar, transcender. Essa pandemia, como tudo na vida, é transiente, temporária. Vai passar, como tudo tem que passar. Além do mais, acima de tudo, sempre me espelho na experiência de vida do meu pai e mãe. Ambos passaram anos em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Acordavam de manhã e não sabiam se estariam vivos ao final do dia. Isso que estou passando é fichinha, comparado com o que eles passaram. Tenho certeza disso. Mas reconheço meu privilégio e entendo que bilhões de pessoas vivem em situações muito difíceis. Minha solidariedade a todos que estão sofrendo infortúnios, enfermidades, dificuldades econômicas, traumas. Nelas penso. E nos meus pais.

Sou otimista por natureza. Acho que o entusiasmo e a curiosidade são os combustíveis que movem a humanidade. Sempre espero o melhor – mas erro minhas previsões com frequência. Tive a sorte (olha ela aí de novo) de ter vivido uma vida cheia de aventuras e conseguido manter uma dose de ética, escrúpulos na vida pessoal e profissional. Mas, confesso, sinto falta das minhas longas caminhadas pelos distritos de Nova York.

Chaim Litewski é realizador, documentarista, diretor do filme Cidadão Boilesen. Dirigiu a seção de TV da ONU e vive em Nova York.

A cada terça e sexta um novo texto nessa nova seção. Acompanhe.

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