Joaquim Cardozo, num texto de 1926, propõe a leitura de um sabor do mundo que se demora na inquietação daquele que olha com todo o corpo: uma expansão da terra. Seu exemplo é Cézanne e toma a isso como uma sobrevivência. Relata que o pintor francês costumava esperar que os primeiros raios de luz do dia penetrassem no interior da Catedral de San Giorgio, em Veneza, para perceber como aquele espaço interior minimamente deslumbrante poderia reviver o surgimento de uma linha de sombra envolvente tomando novas formas àquela hora. E chama a esse olhar de pupila aguda. O que interessa a Joaquim nunca foi a obra que Cézanne pintou, a exposta, material e visível, mas sim uma espécie de pintura impossível, porém ruidosa, que manteve ilegível e inaudita como um vapor e sempre atuante à escuta, que estaria assim muito longe de qualquer legitimação ou percepção autonomista, unânime e mímica, próprias da modernidade e que agora, de maneira praticamente conservadora e modelar, logo mapeada, repete-se com regularidade por dentro de uma expressão muitas vezes vazia, generalizadora e sem força para alterar qualquer coisa: a contemporaneidade imediata ou o contemporâneo absoluto. 

 

Numa outra ponta, Maria Gabriela Llansol toma posição e infere o que chama de “retribuição de escritora viva” ao expandir a ideia numa “espécie de poema sem EU” quando rasga, num gesto, o empenho ensimesmado de que o poema se transformara apenas na “testemunha dramática” pleno de “arroubos expressivos” e “histriônico”. Assim, numa curva às avessas, debruçada sobre Hölderlin, este diabo, sugere uma provocação libidinal entre a nudez e um sexo de ler – um tempo em que “a escrita lambe-se” – para armar-se aí uma linha de fuga ao destino cristão do poeta e escapar-se completamente à “mediocridade da autobiografia”. Diz ela, num combate ao imperativo do necessário, da precisão e do tem que, que imagina uma escrita com um pensamento em deriva capaz de “criar lugares vibrantes, […], de criar na linguagem comum lugares de abrigo, […], para reconhecer-se nobre na partilha da palavra pública, do dom de troca com o vivo da espécie terrestre, […], capaz de perguntas diretas e ferozes.” E, mais ainda, de uma “geografia imaterial por vir”. 

João Barrento refrata o jogo de Llansol à perspectiva aberta por Baudelaire, o poeta das máscaras, que ela traduziu fortemente infectando-o de oscilações, para lembrar que ali já estava o poema “palco das grandes tensões do mundo moderno e do sujeito em crise” que “recusa, os excessos de emoção [sem perda de sensibilidade] e a projeção autobiográfica”. O fragmento que salta, como um hiato, do pensamento de João é o de que “não há utopias no poema, elas estão todas fora dele”, mas que o poema – em alguma medida, se consegue esticar um pensamento ao encontro do improvável, impossível, imaterial e ilegível – pode acolher projetos utópicos. E aí, pode-se ler também que, numa generalização grosseira, estamos num tempo que se encolhe em suscetibilidades desconfiadas e se afasta da falta, do desamparo, do erro, do imperfeito, ou seja, das sensibilidades confiadas. 

O que mais interessa às grandes editoras é uma poesia conformada numa mesma dicção leniente que se imprime a partir dos eixos econômicos que fazem a grana circular

A questão é que estamos diante de um real que produz imagens que são completamente subjugadas à linguagem corrente, apenas entre a fala, um direito e um dever a falar, e o dizível. E se o poema – sempre ao largo, perseguindo solitário o indizível da linguagem –, para existir, entre a política e a ideologia, também se adequa compulsivamente à mercadoria e configura-se, como fetiche, na precariedade do sucesso e do acúmulo em torno do problema do poder, este fato muito em comum na vida de todas e todos, sem exceção, cola-se, por fim, ao que realmente interessa: consumo. A questão, como disse Llansol, “é a de saber: quem conduz quem?” Ora, basta reparar que na atribuição do consumo, o que mais interessa às grandes editoras, neste momento, as condutoras-chefe, é uma poesia conformada numa mesma dicção leniente que se imprime a partir dos eixos econômicos que fazem a grana circular [do que pode gerar prêmios até a participação desmedida na mesmice das feiras e, no pior dos planos, até produzir uma acomodação de discursos para que não haja maiores transtornos nos debates essenciais de nossa revisão política e social desses tempos difusos] e, com largura, como uma violência colonizadora e provinciana, uma praga, repete-se ao finito da fronteira e se torna o mapa do que se faz e se apresenta como circunstância modelar, naturalizada, banalizada, a todos os lados. 

Exterior à essa dimensão da forma, que mora sempre ali, vigilante, entre conformação e ausência de vagabundagem, sem uma paisagem que possa revigorar uma “espécie de poema sem EU ou terceiro sexo da língua”, esta força entre a crueldade e a displicência, “imagem de rendas, voo de plumas”, retratar-se o mais longe possível de qualquer imperativo, num limiar de uma khora, lembra João Barrento, por exemplo, é compor um pensamento que vem de matriz caótica, lugar indefinido, engendramento de sentidos, um mais-de-significação, para profanar até tocar o infinito de toda outridade. Ponto de insurgência: ver-se, até, mas principalmente vendo; desfazer o centro ou, minimamente, deixá-lo disponível. Num esforço, ou errância por mundos ao redor, pode-se imaginar alguns trabalhos que, inteligentemente, conseguem manobrar com força por dentro dessas editoras sem em nenhum momento negociar nada, caso de Veronica Stigger, por exemplo. Gesto político que apresenta a figura ruidosa de um “estranho substituto”, para usar a imagem que dá título a exposição de Jorge Molder, no Porto: “É sempre alguém que faz, que diz, que faz constar ou, com um ar mais profundo, se interroga sobre a autoria da obra. E a si que diferença é que isso lhe faz? É sempre o mesmo a insinuar aquis e alis diversos. Vá por mim, meu amigo, não se deixe influenciar tão facilmente.” E com essa disposição a um “estranho substituto” há poetas que, num esforço, se comprimem sem alarde com um trabalho que mais parece uma pequena proto-história da fotografia, inconsciente ótico, retratos em miniatura de uma realidade circunstanciada e vagabunda num gesto de rivalidade com o teatro do mundo, da vida, antes-agora-depois e num tempo mais lento, mais vagaroso, às vezes num livro só, às vezes num primeiro livro, às vezes sem livro algum e às vezes bem antes do livro. 

Repare-se o trabalho raro e singular, a cada modo, de Aline Prucoli, Annita Costa Malufe, Ana Estaregui, Chantal Castelli ou Júlia Studart: quando o poema é uma conversa de laceração coletiva, livre e asfixiante do desejo; não há desenhos de personagens que falam, mas sim figuras e vozes inauditas que sempre podem nunca estar ali, esferas e genealogias de vazio, porque nos textos não há um centro disparador nem muito menos um lugar de chegada. Depois, o trabalho de Ana Carolina de Assis, Joice Nunes, Micheliny Verunschk e Rita Isadora Pessoa: quando há um EU que escorrega, se embota e se desmancha diante de um emparelhamento, sem nenhuma hierarquia, entre a vida sensível das coisas e dos seres renitentes, traços místicos, bordejo e realidades rarefeitas. Ainda, os trabalhos de Juliana Krapp e Valeska de Aguirre: pequenos enfrentamentos de fúria e delicadeza com as superfícies da linguagem, corpos de silêncio e palavra imprecisa, sem perder de vista que Juliana espalha seus poemas por periódicos, sem livro, e Valeska parou de escrever e de publicar. Por fim, nessa lista esburacada e sem roteiro, os trabalhos de Bruna Carolina de Carvalho e Carolina Machado, que existem em processos de invento, força imaginativa e contaminação com outras coisas, como o ensaio, o cinema e a fotografia e radicalmente em desaceleração e inaparentes, sem EU e em abandono; e os desenhos de Raisa Christina, imensas figuras anônimas com rostos aparentemente conhecidos [ou comuns] que cumprem a rua, nuas, abertas, delirantes, seguindo talvez a peculiar convicção de Courbet ou as peças em desmonte, desequilíbrio, peso e queda de Bianca Madruga, que agora, entre estudo e retratação, imagina recomeçar um trabalho seguindo a linha de sombra percebida por Cézanne na Catedral de San Giorgio e que tanto interessou a Joaquim Cardozo, este modernista “muito mais ausente do que participante”, como salientava Drummond. 

Coluna Trabalhos no Subsolo, por Manoel Ricardo de Lima.

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPG-MS, UNIRIO. Publicou Pasolini: retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa), Avião de Alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015), entre outros. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios (Lumme Editor).

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