Muitos de nós já escreveram algum tipo de diário. Porque queriam ser escritores e faziam, daquilo, a experiência de anotar. Porque queriam ter uma amiga, como Anne Frank e sua “diária”, Kitty. Porque queriam não esquecer. Porque queriam contar.

Teoricamente, a ideia é contar a si mesmo. Tornado público, o diário pode ser mal interpretado e, seu escritor, julgado. Hoje, talvez, cancelado.

 

Mas a verdade é que diários são escritos entre o pavor e a esperança de serem encontrados. Talvez isso os faça perder em sinceridade. Talvez o narrador calcule uma imagem que deseja projetar. E talvez esse passe a ser o maior segredo do diário: finge-se que não se quer ser descoberto.

Desde que começou a pandemia, pipocam textos confessionais por todos os lados. Nem sabíamos se era esse o tom que este Diário da Pandemia adquiriria, mas ele foi ganhando contorno com as páginas escritas. Parece que andamos querendo estender o coração em praça pública, contar o que aflige, esperar uma mão que venha em conforto.

Porque estamos em casa com um novo morador, que já parece menos visita do que nós: o medo.

Não é exatamente de ficar em casa que temos medo – com exceção dos casos de violência doméstica. Meus vizinhos da frente têm se tratado aos gritos. Gosto mais de saber do casal do outro prédio: ele desce para correr na garagem, ela deita no chão da sala. Em anos morando em frente a esses prédios eu nunca tinha me dado conta da vida que se passa neles e que, em parte, é agora completada pela minha imaginação.

Mas o que temos medo é da incerteza que passou a dormir na cama, trouxe a insônia e empurra os sonhos pra beirada do colchão. É do emprego, que pode não estar mais lá. É do desaparecimento do amigo – porque as pessoas deram para desaparecer: sem cerimônia, sem despedida, sem dizer adeus. Temos medo é da contabilidade dos mortos no final de cada dia.

Em meio aos medos coletivos, se espremem os mais particulares. Tenho medo de não rever meu pai, que está em outra cidade. De não conhecer a casa que meus amigos construíram no interior do Ceará. Que minhas filhas, numa idade de descobertas, percam o ar neste mundo em que os países são sala-cozinha-quarto. Tenho medo da consciência de saber que isso ainda é um privilégio.

Tenho medo de virar uma produtivistazinha de merda e não enxergar os diários nem um pouco secretos que as pessoas lançam como garrafas ao mar: tudo o que eles querem é ser encontrados.

Não há nada de discreto em um diário. Um diário é um grito.

Samária Andrade é jornalista, professora de jornalismo da UESPI, mãe e curiosa pela vida. @andradesamaria

Esse texto encerra a primeira temporada do Diário da Pandemia.

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