Isto não é uma resenha. E, portanto, desde agora anuncio citações sem referências bibliográficas, desconfie, pois o que partilho aqui é a dúvida, a dádiva e a dívida. Trata-se apenas de impressões (talvez sensações) de um tempo passado com Oito, o infinito vertical de A guerra da água, de Manoel Ricardo de Lima. Há também outros seres com quem atravessei a guerra, uns rejeitos feito crianças não-existentes, memórias adicionais. E o descompromisso é tanto diante da tarefa protocolar da resenha crítica, que só agora fico sabendo que A guerra da água já é o fim de uma série de Livros de guerra.
Eu não diria que é uma narrativa distópica, porque o tempo e o espaço de Oito estão aqui e agora numa dimensão paralela encoberta por um filtro prestes a se romper abrindo buracos por onde o real ameaça irromper à toda, não cessando de acontecer, tornando-se de vez a falta, a ausência, o vazio, a troça, a piada, a gargalhada, o irrepresentável, o informe, o abjeto. A guerra da água responde no presente a uma solicitação lançada do futuro, para além de filtros. E o autor, como diria Raul Antelo, “já não seria, como Orfeu ou Dante, um vivente que desce ao inferno dos defuntos, mas um morto que retorna ao reino dos póstumos e cuja palavra de ordem é repetir, redundar e relembrar, para a frente, prospectivamente” e no instante de morrer fazer-se presente.
Mas falando em buracos do real e nos vetores temporais coexistentes de Antelo, lendo A guerra da água, me veio à memória uma aula na graduação de Literatura, na UFSC, quando ele disse que a carta de Pero Vaz de Caminha tinha um furo do meio da folha, e que esta carta deveria ser lida posicionada com esse furo na frente de uma tela com Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber, passando numa TV ao fundo. E dentre todas as sensações de leitura, uma imagem surgiu, de um buraco no meio do livro do Manoel, um furo como aquele da mão do personagem de Não verás país nenhum, do Ignácio de Loyola Brandão. Ao fundo, passaria um filme do Glauber, talvez Terra em Transe. Ou melhor, talvez o cenário mais propício fosse o Congresso Nacional tramando a destruição do bioma da Mata Atlântica ou a exploração de petróleo na Foz do Amazonas.
Enquanto passa a boiada e o futuro lança suas reivindicações, Oito fuma seu cigarro de plástico, cevando lentamente os pulmões de catarro e sangue num corpo moldado em metal resistente à corrosão do tempo. Em intervalos de alucinações com o paraíso perdido, a tosse, o cuspe e a frase espalhada na pele: no instante de morrer fazer-se presente, malgrado a endocolonização dos órgãos. E com ele, os guias, seus lagartos do deserto, esquecidos por deus, mas não necessariamente perdidos, porque livres e leves e até capazes de saltar telhados inexistentes.
Há também outra camada de sensação que entraria no inventário deste texto, uma sensação da ordem do estranho familiar. O livro tem um inapreensível que paira no ar e se revela algo místico – como se fosse possível o milagre no nada” – Luciana Tiscoski.
Há também outra camada de sensação que entraria no inventário deste texto, uma sensação da ordem do estranho familiar. O livro tem um inapreensível que paira no ar e se revela algo místico – como se fosse possível o milagre no nada – uma espécie de aura que me lembrou a vertigem de “Avalovara”, de Osman Lins.
Gostei muito dos diálogos beckettianos, e de todas as aparições da água, que embora seja ausência e tudo seja tão seco, está sempre presente em todos os formatos, memória, dor, veneno, fumaça, doença, mar, rios. Fiquei impressionada com o labor, a labuta mesmo com a palavra. E nas vezes que levantei os olhos do livro, em muitas delas eu pensei no estado corporal do autor dessa escrita. É uma linguagem sem distrações, sem pausa, sem concessões. E assim me justifiquei de não ter parado a leitura para consultar as tantas referências desconhecidas, porque A guerra da água de fato não cede, não concede interrupções, é abrupta, impõe um ritmo que torna quase arriscada a parada (para não dizer sacrílega) para consultar o Google. Não digo que não farei um dia, em breve, pois há grandes possibilidade de me aventurar um pouco mais nesse retorno do real. Até porque há momentos de poesia que exigem ser relidos e articulados novamente em voz alta, exigência esta da poesia, quando boa, como o trecho da fala do fantasma vivo Euré, a balaia, bugra, índia Muypurá, fruto do rio.
“E o rio, Oito, o rio, um corte no meio da cidade. A tarde inteirinha parada, parada, parada, parada, espada em punho, pra ver se o rio volta. Um pedaço do lugar da gente mora no peito, no meio do peito. Tudo colado com goma no escuro e muitas vezes tenho medo, um medo danado, mas muitas vezes não sinto nada. É que olhar para trás às vezes dá medo, às vezes alegria, sabe o que é, Oito?, é um ranço, sei lá. Às vezes é quase impossível, um infinito vertical e a pergunta de sempre: e Holofernes, o que me diz, e Holofernes? Se me disserem que nunca olho para frente nem para os bolsos, acredito e posso garantir, nem sei se estão cheios de merda como se fossem moedas, falsas, mas moedas. E você? Percebo que esquecer é muito, quase tudo nesta vida. Uma lembrança pode também morar numa imagem ruim ou pode matar. E, você sabe, no Instante de morrer fazer-se presente. Você consegue dizer alguma coisa?”
Um pedaço do lugar da gente mora no peito, no meio do peito. Tudo colado com goma no escuro e muitas vezes tenho medo, um medo danado, mas muitas vezes não sinto nada. É que olhar para trás às vezes dá medo, às vezes alegria” – Trecho de A guerra da água.
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Luciana Tiscoski é jornalista e escritora. Doutora e mestre em Literatura – UFSC. Tem pós-doutorado em Artes Visuais na linha História, Teoria e Crítica – UDESC. Publicou ensaios, artigos, poemas e contos em livros, revistas e periódicos literários e acadêmicos. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca, publicou os livros Abrasabarca, lançado em 2018, pela Editora Medusa, e Revoluta, de 2019, pela Caiaponte Edições. Lançou o conto Uma menina gorda, pela Editora Butecanis, e Área de broca, seu primeiro livro individual de contos, pela Editora Nave, ambos em 2021.