O movimento das águas anunciado sob o manto da noite escura na capa produzida por Mariana de Matos ressoa uma configuração espacial e simbólica de O homem azul do deserto. Antes de abrir o livro vêm a minha memória a primeira vez que ouvi Cidinha da Silva, no VI Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as que aconteceu no Rio de Janeiro, em julho de 2010. Evento cuja temática centrava-se em “Afro-Diáspora, Saberes Pós-Coloniais, Poderes e Movimentos Sociais”. Na abertura, a leitura dramatizada d’Os nove pentes d’África, com Iléa Ferraz (que também é ilustradora do livro) e elenco, impactou os participantes. O livro, que não sei por que motivo, só viríamos a ler em 2015, revela-nos a “big pena”1 de Cidinha da Silva. D’Os nove pentes…, histórias que nos encaminham para o barco de memórias familiar e/ou ancestral, delineia pegadas de amor entre netos e avós e provoca desavisadamente uma revigorante sensação de afago com o contado por que diz do coração.  

Cidinha da Silva é mineira, contista, cronista, dramaturga e ensaísta. Como intelectual negra organizou dois livros indispensáveis para a compreensão e discussão quanto às relações raciais e as ações afirmativas no Brasil. São eles, Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras (2003) e Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014). Sua produção literária está traduzida para o inglês, espanhol, francês e italiano.  

Logo na abertura do livro O homem azul do deserto (2018), deparamo-nos com o signo da oferta do homem azul, e por ele identificamos a espinha dorsal – origem –fôlego de onde ginga da palavra. Início de alinhavo bioespiritual entre seu Antônio da Silva, os laços de irmandade e de afeto que confluem para a força do Axé. O Ori direciona o caminho já escolhido, de terras bem trançadas e há muito percorridas. O homem azul do deserto pode ser lido como resultado de uma escolha ou caminho literário que se consolida na encruzilhada dos saberes de Cidinha da Silva sob o pesponto entre fato e ficção.  

Percorrendo a linha limítrofe entre conto e crônica, como alguns estudiosos já afirmaram, Cidinha, com astúcia exúnica2, aponta a miragem do encantamento em que, por exemplo, pode-se confundir Estamira com Bispo do Rosário. Em “Ora iê iê ginga”, crônica em que a autora se permite brincar a exaustão com o jogo e sons das palavras, o contar concretiza-se pelo apelo de robustecer palavras e assim faz valer o efeito da exploração fonológica e sinestésica. No capricho, o efeito sonoro das palavras, escolhidas a dedo, através do contraponto fônico dá apoio à construção sintática que ludibria o (a) leitor (a) quanto aos aspectos semânticos que vigoram. Tudo concorre para a destreza da palavra que se exercita pelo movimento da ginga oxúnica3, que é, ao mesmo tempo, massa e argamassa, e sob o exercício da malandragem subsiste a ativAção da trama. Todavia, no gingado das palavras e da sintaxe, vai se acentuando o que se espelha no alto, pelo legue do título em saudação a Oxum. No corpo da narrativa, os sons repercutem o movimento das ondas figuradas na capa, numa redimensão da ginga em dupla face. Ora iê iê o! 

Este é uma das crônicas mais arrojada de Cidinha da Silva, em O homem azul do deserto, visto que, pelo jogo, no meio da encruzilhada – trama, diz e, ao mesmo tempo esconde o ouro. No ato de desencobrir a pedra onde está assentada o princípio do verbo, a autora escolhe construir camadas que modulam as chaves narrativas e por onde Exu Ogum, Oxum e Oxalá são evocados e têm assentos. A partir dessas guias acolhedoras, o (a) leitor (a) pode empreender várias leituras e por certos nenhuma descartada.  

Uma das vias leva-nos a refletir sobre os sentidos que os homens representam nas breves narrativas em que são títulos. A escassez do saber letrado do homem da mudança nos faz emudecer junto com ele. Por outro lado, seguimos o encanto que proporciona o homem azul Tuareg circunscrito mineiramente no Vale do Jequitinhonha. Talvez não haja um espaço mais apropriador no enredo para ficcionalizar e estabelecer pontes com os irmãos dos desertos africanos. Do mesmo modo, ondulam no nosso imaginário, sob o efeito quase mágico-encantador o homem que costura, o cobrador, acionado como representante dos que carregam em si o dom de costurar roupa, falas e caminhos como aludido em “O homem que costurava”.   

Por outra via, Cidinha procura manusear com maestria o imprevisível que surpreende o (a) leitor (a) pela capacidade de despistar, em “O homem de camisa vermelha”. Aí entra o poder da malandragem que, num átimo, apossa-se do alheio dos menos avisados.  

Virando a cumbuca, na crônica O brasileiro comum e o bumbum do Hulk!, Cidinha subverte o padrão machista hegemônico que prevalece nos vários cantos do mundo. O homem, comumente locado como sujeito do desejo, passa a ser objeto de desejo da “mulherada heterossexual” e, desse modo, a autora coloca em xeque as visões arraigadas que buscam a todo custo o confinamento do desejo e liberação da sexualidade feminina. A estratégia surte efeito quando focaliza a masculinidade torpe para provocar uma reflexão crítica sobre a masculinização, o falocentrismo.  Por fim, a crônica destaca enfaticamente certa posição da mulher heterossexual que reproduz a objetalização do outro na relação binária masculino X feminino e dá relevo a perspectiva de uma transversalidade em que o homem, impulsionado por uma mudança de paradigma, alinhado à liberdade e direitos femininos, conduz-se como parceiro da luta pela igualdade de direitos. Desse modo, assinalando choques e tensões, Cidinha joga luz sobre o assunto e remete ao (à) leitor (a) pensar sobre as rupturas da colonização, como possíveis medidas de conter poder e controle sobre o corpo do (a) outro (a).  

A veia denunciativa e irônica, o gosto pelo imprevisível e o jogo que ondula o corpo das narrativas iluminam os fatos do cotidiano, cenas brasileiras que podemos vivenciar a qualquer momento, mas que, na big pena da autora, transformam-se em atos literários de fortes vigas a sustentar seu projeto literário, emitindo senhas infinitas. As ondas vão e vêm. E o vento que chega …   

 

1 Expressão cunhada de um dos poemas de Conceição Evaristo. Pelo entendimento representa a explosão do universo poético daquela autora.  

Termo utilizado pela autora, em suas crônicas, que nos permite extrair vários sentidos em alusão à entidade Exu, mensageiro e “senhor dos caminhos”, que dobra e desdobra os sentidos das palavras.  

Termo utilizado pela autora numa alusão à entidade Oxum. 

Assunção Sousa é professora da Uespi e Ufpi, mestra em Letras (UFRJ), doutora em Letras (PUC/MG). Pesquisadora das literaturas africanas de língua portuguesa e afro-brasileiras.

Publicado na Revestrés#38 – novembro-dezembro de 2018.