José Luis de Barros Guimarães

A condenação, em primeira instância, do comediante brasileiro Leo Lins pela 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, a oito anos e três meses de prisão por produzir um show de humor cujo alvo da sátira foram preconceitos dirigidos a grupos historicamente oprimidos –
como negros, idosos, obesos, pessoas com HIV, homossexuais, indígenas, nordestinos, evangélicos, judeus e pessoas com deficiência – gerou ampla repercussão pública nos principais meios de comunicação. A decisão provocou manifestações de intelectuais e artistas, de
diferentes espectros políticos, tanto a favor quanto contra a sentença, o que torna o caso digno de atenção e reflexão.

O show intitulado “Perturbador”, enquadrado pela juíza como crime de racismo recreativo e cuja pena foi agravada pela divulgação e obtenção de lucro com discursos de ódio dirigidos à diversidade dos grupos supracitados, nos convoca a uma reflexão mais ampla sobre
os limites da liberdade de expressão em contraste com a responsabilização por discursos de ódio. A tensão entre humor e violência simbólica, arte e ética, liberdade e responsabilidade, abre caminho para uma análise que transcende o caso jurídico específico e nos lança a questões fundamentais que atravessam o campo da linguagem, da estética, da política e da ética. O julgamento, nesse sentido, não diz respeito apenas ao comediante e do conteúdo do seu espetáculo em específico, mas, em nosso entendimento, expõe as linhas de fratura de uma sociedade que ainda busca delimitar – e compreender –, diante dos limites de democracia burguesa brasileira, os contornos do que pode ser ou não pode ser dito em nome do riso e da arte.

A tensão entre humor e violência simbólica, arte e ética, liberdade e responsabilidade, abre caminho para uma análise que transcende o caso jurídico e lança a questões fundamentais que atravessam o campo da linguagem, da estética, da política e da ética.

O caso em questão nos convida a revisitar perguntas que há muito inquietam quem pensa a arte para além do deleite estético: afinal, em nome da arte, pode-se tudo? Ou há limites que, por razões éticas e políticas, devem ser firmemente observados? É possível, ainda, traçar uma linha clara entre realidade e ficção — sobretudo quando falamos de expressões artísticas que se alimentam justamente do cotidiano, com suas dores e tensões? No caso do stand-up comedy, essa zona cinzenta ganha contornos ainda mais ambíguos, em nosso avaliação. Trata-se de uma arte em que o cômico se confunde com o autor, a personagem com a pessoa, e o relato ficcional com o testemunho.

A persona cômica, muitas vezes, fala como se estivesse nua diante do público, sem a máscara da ficção tradicional — e é nessa zona híbrida entre o íntimo e o performático que surgem novas questões: podemos — ou devemos — imputar responsabilidade moral a quem cria ou interpreta uma obra cômica? Ou, no território da comédia, o sujeito da enunciação permanece sempre oculto, protegido pelo manto da liberdade criativa? E mais: no humor, há limites que devem ser respeitados? Ou a liberdade de expressão artística deve ser, por princípio,
irrevogavelmente irrestrita, mesmo quando se ri às custas de quem já é historicamente silenciado?

Quero convidar o leitor para uma reflexão que, embora carregue uma densidade filosófica na construção dos argumentos, toca em temas bem presentes no nosso dia a dia. Entendo que devemos problematizar esse caso sob quatro eixos: o político, o linguístico, o estético e o ético. Vou partir da distinção entre liberdade negativa e positiva, ideia que o filósofo e historiador britânico Isaiah Berlin trouxe em seu escritos para iluminar o que significa ser livre numa perspectiva liberal — não só estar livre de impedimentos, mas também ter a capacidade de agir por si mesmo. Como o pressuposto da arte é a liberdade, e o caso do Leo Lins nos faz mergulhar de maneira inevitável no debate sobre os limites da liberdade de expressão em contextos estéticos humorísticos, torna-se fundamental explicitarmos as noções de liberdade que são mobilizadas quando nos deparamos com expressões artísticas que geram as reflexões sobre a própria natureza da arte.

Na zona híbrida entre o íntimo e o performático surgem questões: podemos — ou devemos — imputar responsabilidade moral a quem cria ou interpreta uma obra cômica? Ou, no território da comédia, o sujeito da enunciação permanece sempre oculto, protegido pelo manto da liberdade criativa?

Ao reconhecer e analisar a arte na sua dimensão linguística pretendo me apoiar na noção dos jogos de linguagem, presentes na filosofia wittgensteiniana. Entendo que essa reflexão do uso da linguagem – a partir de uma compreensão sobre a especificidade do universo da arte – é um outro elemento fundamentalmente pertinente para o debate que propomos sobre o caso do show de humor do Leo Lins, já que em um poema, uma letra de música, uma performance teatral ou, mesmo, um comediante contando piadas para um público, em um ambiente institucionalmente reconhecido como artístico, traz regras estéticas distintas de outros contextos linguísticos. Nesse sentido, compreender os jogos da linguagem da arte e do humor, de maneira mais específica, pode nos ajudar a pensar com clareza sobre os limites políticos e éticos quando encontramos textos e/ou performances que trazem algum tipo de incomodo social e que aparentam ultrapassar os limites da própria liberdade, por mais contraintuitivo que essa afirmação aparente ser.

Não podemos nos furtar de refletir, já que a temática gira em torno de uma análise de um texto cômico, a respeito da função social do riso. Tese problematizada pelos filósofos antigos, desde Aristóteles, mas que ganha uma certa consistência com a reflexão promovida por
Henri Bergson, na sua famosa Teoria do riso. O autor nos permitir perceber que o riso não pode e nem deve ser visto apenas como um ato de distração ou diversão ingênua por parte dos indivíduos, essa é apenas a ponta do iceberg. Devemos reconhece o ato de rir como um
fenômeno social que, muitas vezes, funciona como correção social do ponto de vista moral, seja para incluir ou excluir.

Henri Bergson, na sua famosa Teoria do riso, nos permitir perceber que o riso não pode e nem deve ser visto apenas como um ato de distração ou diversão ingênua. Devemos reconhecer o ato de rir como um fenômeno social que, muitas vezes, funciona como correção social do ponto de vista moral, seja para incluir ou excluir.

Como ato final deste espetáculo, vale trazer para o centro do palco a ideia da estética da violência — esse recurso tantas vezes utilizado, de forma consciente, pelos artistas nas mais diversas expressões, inclusive no humor. A violência, quando estilizada, dramatizada ou
deslocada pelo riso, pode funcionar como espelho e denúncia; pode escancarar o que a sociedade tenta esconder sob o tapete. O problema começa quando não sabemos mais se o riso está rindo com ou de alguém. Quando a estética da violência deixa de ser crítica e passa a
reproduzir exatamente aquilo que pretendia confrontar. Mas iniciemos a nossa questão pelo eixo da política, com uma pergunta fundamental: o que significa, afinal, ser livre nas democracias liberais burguesas? Que tipo de liberdade está em jogo quando falamos de direitos individuais, expressão artística e convivência coletiva? A partir dessa inquietação, abrimos espaço para pensar os limites — e os usos — da liberdade no campo da cultura, do humor e da arte.

Nas democracias liberais burguesas, ainda que com diferenças significativas entre si, observa-se um conflito constante entre as concepções de liberdade negativa e positiva. De um lado, a liberdade negativa, centrada na proteção dos direitos individuais frente à interferência
Estatal, constitui um dos pilares fundamentais dessas democracias. A liberdade positiva, por sua vez, é uma concepção de liberdade que vai além da simples ausência de coerção externa (como na liberdade negativa) e enfatiza a realização da autonomia e da autodeterminação humana. Ela pressupõe que o indivíduo é verdadeiramente livre quando participa ativamente das decisões coletivas que moldam a vida na sociedade em que vivemos. Nesse sentido, a liberdade positiva reconhece que os interesses coletivos — como justiça social, bem comum e igualdade de oportunidades — devem prevalecer sobre interesses puramente individuais, pois apenas em uma comunidade politicamente organizada e solidária é possível a realização plena da liberdade de todos.

A violência, quando estilizada, dramatizada ou deslocada pelo riso, pode funcionar como espelho e denúncia; pode escancarar o que a sociedade tenta esconder sob o tapete. O problema começa quando não sabemos mais se o riso está rindo com ou de alguém. Quando a estética da violência deixa de ser crítica e passa a reproduzir  aquilo que pretendia confrontar.

No caso das produções culturais artísticas, fundamentais para a construção da identidade de uma nação, há pessoas que acreditam que humor não deve ter limites. Que o artista — principalmente o humorista — precisa de um palco sem amarras, onde possa dizer tudo, rir de
tudo, zombar de tudo. É o velho mito da liberdade absoluta, aquela que se contenta em ser apenas ausência de freio. Com a repercussão pública do show do Léo Lins, esse debate voltou à tona com força: de um lado, há os que dizem que ele tem o direito de falar o que quiser, doa a quem doer; do outro, encontramos aqueles que defendem que há, sim, um ponto em que a piada deixa de ser riso e vira violência.

Por trás dessa disputa, mora uma velha discussão filosófica sobre o que, afinal, significa ser livre em uma sociedade democrática. Para uns, a liberdade é negativa: é não ser impedido, não ser censurado, não ter o Estado, a lei ou a moral no seu encalço. Para outros, liberdade é positiva: é agir de forma responsável num espaço comum, sabendo que viver em sociedade implica reconhecer o outro e aceitar que existem limites — não para calar, mas para conviver diante da diversidade existente no mundo. É aí que a coisa complica do ponto de vista social. Este é, sem dúvida, um nó que precisamos constantemente tentar desatar para o aperfeiçoamento da vida em sociedade. Porque, no fundo, ninguém vive só. Precisamos construir coletivamente um tecido social que nos ampare. E talvez a verdadeira liberdade não seja a de falar o que quiser sem nenhum tipo de responsabilização, mas a de saber quando o silêncio, ou pelo menos a escuta, também tem seu valor.

Nesse contexto, levantar a bandeira da liberdade negativa — aquela que defende uma expressão irrestrita, sem freios nem responsabilizações — é, muitas vezes, ignorar que certos discursos não recaem sobre todos da mesma forma e que devemos sim exigir do ponto de vista ético, ou mesmo jurídico, responsabilização sobre o que, como, para quem e, principalmente, o porquê se diz determinadas coisas, ainda que em contextos artísticos essas delimitações e fronteiras sejam indubitavelmente mais difíceis de estabelecer com clareza, se comparados há contextos não artísticos. Há palavras que pesam mais quando ditas contra corpos que são excluídos, pois não se trata de uma dor puramente particular, íntima, subjetiva, mas um ferida histórica, comunitária, ancestral. Levantar a bandeira de uma liberdade sem limites, nesse cenário, é escolher não ver quem sempre pagou o preço por ela. Na prática, essa concepção de liberdade negativa tende a privilegiar aqueles que já dispõem de capital econômico, social ou cultural, reproduzindo desigualdades estruturais sob o manto da ilusão da neutralidade jurídica. Defendê-la de maneira irrestrita, neste sentido, é coadunar com práticas discursivas que podem
a vir a naturalizar a barbárie.

Levantar a bandeira da liberdade de expressão irrestrita é, muitas vezes, ignorar que certos discursos não recaem sobre todos da mesma forma. Há palavras que pesam mais quando ditas contra corpos que são excluídos, pois não se trata de uma dor puramente particular, íntima, subjetiva, mas um ferida histórica, comunitária, ancestral.

Por outro lado, a liberdade positiva — que pressupõe participação ativa na vida política e acesso efetivo aos meios de realização pessoal e coletiva — esbarra em barreiras concretas impostas por essas mesmas desigualdades. Isso significa que, embora formalmente todos tenham os “mesmos direitos”, inúmeros grupos sociais — marcados por questões de classe, raça, gênero e/ou território — não conseguem exercer plenamente esses direitos. O resultado é uma tensão permanente: enquanto os bens individuais de alguns são protegidos em nome da liberdade negativa, as demandas por justiça social e inclusão — expressões da liberdade positiva — são muitas vezes tratadas como ameaças à ordem ou ao direito adquirido. Expressando-se em outros termos, a defesa da liberdade irrestrita — como fez, de maneira
escandalosamente irresponsável, o apresentador de podcast Monark ao declarar que seria favorável a criação de um partido nazista para disputar eleições — revela o abismo entre o discurso abstrato sobre uma liberdade irrealizável e a realidade social que nos interpela. Em
uma sociedade profundamente marcada por desigualdades estruturais, como a brasileira, defender esse tipo de “liberdade” é, no mínimo, uma irresponsabilidade moral e política do ponto de vista coletivo.

Quando esse tipo de argumento ganha espaço nos meios de comunicação ou nas produções culturais, ele não apenas banaliza experiências históricas de opressão, como também corre o risco de reforçar as mesmas estruturas que deveríamos estar tentando desmontar. A liberdade, assim concebida, deixa de ser um princípio ético e passa a ser escudo para o cinismo. E o que se defende, no fundo, não é a liberdade — mas o privilégio de poder ferir sem ser contestado socialmente, para não ser alvo de riso diante da sua decadência moral. Walter Benjamin, filósofo alemão que sofreu na pele as perseguição do nazismo, com sua lucidez cortante, já havia nos alertado: “não há um documento da cultura que também não seja um documento da barbárie”. É uma daquelas frases que não se esquece — talvez porque nos obriga a encarar o que preferíamos não ver. A cultura, essa senhora tão reverenciada, tão celebrada em salões, livros e teatros, em shows de humor, tem muitas vezes o hábito de falar por poucos e calar muitos.

Suas vitrines reluzentes escondem os escombros onde ficaram as vozes abafadas, as histórias apagadas, os corpos que não serviram ao enredo dos vencedores. E a arte, que poderia ser o espaço da ruptura, tantas vezes se ajoelha diante do poder, da perpetuação do status quo. Em vez de provocar, conforma. Em vez de libertar, legitima. Em muitos casos, ela também aprende a falar a língua dos donos da voz — e, ao fazê-lo, ajuda a naturalizar desigualdades, tornando-as quase invisíveis. É por isso que até a palavra “liberdade” pode ser sequestrada. Repetida nos discursos, nas canções e nas propagandas, e em textos cômicos, ela corre o risco de virar símbolo vazio, usada para proteger os que já são livres demais, enquanto os outros continuam presos às grades que nem sempre se veem. O trágico é que são justamente esses últimos que mais precisam da liberdade — não como ornamento cultural, mas como condição para existir com dignidade, com humanidade.

A cultura, essa senhora tão celebrada em salões, livros e teatros, em shows de humor, tem muitas vezes o hábito de falar por poucos e calar muitos. E a arte, que poderia ser o espaço da ruptura, tantas vezes se ajoelha diante do poder, da perpetuação do status quo. Em vez de provocar, conforma. Em vez de libertar, legitima.

Diante dessa tensão entre liberdade positiva e negativa no contexto das democracias burguesas, e considerando que a produção cultural — longe de ser neutra — pode reforçar narrativas que sustentam a exclusão de grupos historicamente oprimidos, torna-se urgente refletir sobre os limites éticos e políticos da liberdade de expressão, inclusive na esfera artística. No Brasil, país cuja abolição da escravidão ocorreu de forma burocrática, sem reparação real e sem ruptura com as estruturas racistas que sustentavam o regime, ainda carregamos profundas marcas desse passado. E não podemos ignorar o fato de que durante séculos o racismo foi sendo perpetuado, legitimado e naturalizado em nossa sociedade por meio de inúmeras expressões artística. Inclusive, por meio de ‘piadas” que reproduziam o discurso de desumanização dos corpos negros. Tenho certeza de que você, caríssimo leitor que me acompanhou até aqui, consegue lembrar sem esforço uma piada de cunho racista que ouviu quando criança ou adolescente nas reuniões de família do “tio engraçadinho” ou, mesmo, na roda de amigos da escola por aquele “colega descolado”.

É por isso que podemos afirmar sem receio que o racismo estrutural não apenas sobreviveu, como se infiltrou nas instituições, nas relações sociais e em nos discursos cotidianos, tendo, em muitos momentos, as produções artísticas culturais naturalizando estereótipos, reforçando desigualdades e silenciando vozes dissidentes. Quantas mulheres negras cresceram acreditando que seus cabelos eram feios por ouvirem repetidamente versos como “Nega do cabelo duro / Que não gosta de pentear / Quando passa na baixa do tubo / O negão começa a gritar?” Esse trecho, retirado de uma canção popular da música brasileira, carrega um estigma profundo que atravessa a história e reforça o racismo estrutural presente nas manifestações culturais do país.

Disfarçada de brincadeira ou samba alegre, essa letra opera como mecanismo de opressão simbólica, ensinando desde cedo que o cabelo crespo, natural da população negra, é algo a ser corrigido ou motivo de vergonha. Muitas meninas negras, ao ouvirem essas palavras,
passaram a rejeitar sua imagem, sentindo-se pressionadas a se adequar a um padrão branco de beleza que invalida suas origens. Por isso, torna-se um exigência moral, questionar onde termina a liberdade de expressão e onde começa o discurso de ódio, mesmo nos espaços
destinados a criação artística.

O fato de algo estar sob o rótulo de “expressão artística” não o torna imune a crítica ou a consequências. A liberdade artística não pode ser um salvo-conduto para o cometimento de crimes. Quando a arte esquece que também vive no mundo — e não acima dele — corre o risco de reforçar justamente aquilo que deveria confrontar.

As músicas, as histórias contadas nos livros, os filmes que assistimos e até as piadas que ouvimos são formas de linguagem que, consciente ou inconscientemente, moldam nossa formação e influenciam a construção da identidade nacional. Esses elementos culturais carregam valores que se infiltram no cotidiano, podem contribuir para reforçar estereótipos ou naturalizar as mais diversas desigualdades. Por isso, é essencial reconhecê-los como ferramentas poderosas na produção de sentidos sobre quem somos e sobre o lugar que ocupamos na sociedade. O artista e a sua arte, que conseguem como pouco mobilizar com intensidade os afetos humanos, deveria minimamente ser sensível às violências históricas que moldaram — e ainda moldam — o nosso presente.

Não é razoável, sob nenhuma abordagem séria do ponto de vista ético ou político, defender uma concepção de liberdade irrestrita — como a liberdade negativa em sua forma mais radical — especialmente quando aplicada ao campo da produção simbólica. Isso porque, ao nos recusarmos a estabelecer limites, corremos o risco de legitimar a atuação de indivíduos e grupos que, sob o manto da “liberdade de expressão”, se apropriarem da arte como instrumentos para disseminar discursos de ódio. A arte não pode servir de escudo para que nazistas, racistas, machistas ou misóginos digam o que quiserem sem qualquer responsabilização. O fato de algo estar sob o rótulo de “expressão artística” não o torna imune a crítica ou a consequências. A liberdade artística não pode ser um salvo-conduto para o cometimento de crimes. Quando a arte esquece que também vive no mundo — e não acima dele — corre o risco de reforçar justamente aquilo que deveria, sob formas e expressões distintas, confrontar.

Nesta direção, rechaçar a ideia ingênua — e muitas vezes mal-intencionada — da liberdade negativa, como fazem irresponsavelmente tantos agentes da extrema direita ao redor do mundo, não significa atentar contra a liberdade de expressão. Muito menos é sinônimo de
defesa da censura. Ao contrário: trata-se de um esforço legitimo por aperfeiçoar a vida em comum, de avançar no sentido de uma liberdade real — aquela que reconhece que não há expressão verdadeiramente livre onde há desigualdade profunda, silenciamento histórico e violência simbólica naturalizada. Defender limites éticos e responsabilidades coletivas não enfraquece a democracia e a arte, muito pelo contrário, trata-se de um movimento que a alimenta e fortalece. Porque liberdade sem responsabilidade é privilégio. E uma sociedade democrática não se sustenta sobre o privilégio de alguns falarem tudo enquanto outros mal conseguem ser ouvidos.

Racistas, misóginos, machistas, pedófilos, LGBTfóbicos — todos esses agentes podem recorrer à estética e à linguagem simbólica para encobrir ou suavizar práticas profundamente violentas, transformando crimes morais e, muitas vezes, jurídicos, em expressões artísticas
supostamente protegidas. Essa postura não apenas desresponsabiliza os emissores dessas mensagens, como também pode contribuir para reforçar os sistemas de opressão que sustentam a desigualdade social de qualquer país. Defender a liberdade sem considerar suas implicações coletivas, especialmente em sociedades profundamente marcadas por desigualdades estruturais — como é o caso do Brasil —, é, na prática, contribuir para a perpetuação de injustiças. Se levamos a sério a ideia de que a arte deve participar da construção de uma sociedade mais justa, torna-se necessário buscarmos estabelecermos estas demarcações entre liberdade e discurso de ódio, por mais difíceis que elas possam vir a ser no reinado das artes, no caso em específico, de um texto ou personagem cômica.

É fundamental que os debates sobre arte, ética e liberdade de expressão sejam conduzidos com rigor conceitual, escuta ativa e compromisso com a dignidade humana — reconhecendo tanto a singularidade da linguagem artística quanto seu poder de agir sobre o mundo a partir da legitimação de determinados discursos.

Aqui chegamos ao segundo ponto fundamental desta reflexão: a necessidade de compreender os jogos de linguagem da arte. Reconhecer que a linguagem artística opera segundo lógicas distintas daquelas que regem outros discursos sociais é essencial para que possamos analisar as suas manifestações com o devido rigor, mas também com o necessário cuidado. Diferentemente do discurso jornalístico, jurídico, religioso ou pedagógico — nos quais há, em geral, um compromisso explícito com a objetividade, com a norma, com a verdade
factual ou com a transmissão direta de saberes — a linguagem da arte se move por outras vias, ainda que todos os outros elementos da linguagem também estejam presentes nela. Ela se constrói a partir de ambivalências, metáforas, exageros, ironias, silêncios, rupturas,
mobilizando uma diversidade de afetos humanos, seja por meio do trágico ou do cômico presente no humano.

Na arte, nem sempre as coisas são o que parecem ser. É justamente essa ambiguidade — essa capacidade de dizer uma coisa enquanto sugere outra, ou de provocar sentidos múltiplos a partir de um mesmo signo — que confere à arte sua potência simbólica difícil de capturar. Por isso, quando tratamos dos limites entre liberdade de expressão e discurso de ódio no campo artístico, a discussão se torna inevitavelmente mais complexa, comparada a outras esferas. As fronteiras não são fixas nem imediatamente evidentes. Uma imagem, uma performance, um verso, um filme, ou, mesmo uma personagem humorística podem, à primeira vista, parecer ofensivos, agressivos ou moralmente condenáveis, mas podem também operar de modo crítico, subversivo, irônico ou paródico — desafiando convenções justamente para desmontar os discursos hegemônicos.

Nesse sentido, diferenciar uma obra que reproduz uma violência simbólica de outra que a denúncia ou a problematiza exige sensibilidade interpretativa e contextualização. O risco de julgamento apressado é real, mas o risco de conivência também o é. Por isso, é fundamental
que os debates sobre arte, ética e liberdade de expressão sejam conduzidos com rigor conceitual, escuta ativa e compromisso com a dignidade humana — reconhecendo tanto a singularidade da linguagem artística quanto seu poder de agir sobre o mundo a partir da legitimação de determinados discursos. Por mais exigente e complicada que esse movimento de estabelecer os limites da própria arte seja, não podemos nos furtar enquanto sociedade de fazê-la, para a própria transformação da sociedade e da arte como expressão cultural responsável pela construção daquilo que somos.

Um bom exemplo da complexidade desses jogos de linguagem pode ser encontrado no campo do humor, onde a ironia, a sátira e a caricatura são recursos centrais. Personagens como Justo Veríssimo, criado por Chico Anysio, e Caco Antibes, interpretado por Miguel Falabella, tornaram-se emblemáticos justamente por dizerem, sem rodeios, coisas abertamente elitistas, preconceituosas e socialmente cruéis. Justo Veríssimo, político cínico, dizia odiar o povo — a quem deveria representar — enquanto se beneficiava descaradamente do poder. Já Caco Antibes, típico burguês arrogante, não escondia seu desprezo pelos pobres, tratando-os como ameaça à sua suposta superioridade social.

Personagens como Justo Veríssimo (Chico Anysio) e Caco Antibes (Miguel Falabella), emblemáticos por dizerem coisas cruéis, não necessariamente expressam a opinião dos autores, mas operam como espelhos distorcidos de uma realidade que se pretende criticar. Essa estratégia não está isenta de riscos: há quem ria da piada não como denúncia, mas como confirmação de suas próprias visões de mundo.

A complexidade desses casos reside no fato de que tais personagens não necessariamente expressam a opinião dos autores ou do programa, mas operam como espelhos distorcidos de uma realidade social que se pretende criticar por meio da hipérbole e do escárnio.
No entanto, essa estratégia não está isenta de riscos: nem todos os espectadores captam a ironia ou percebem a crítica subjacente. Há quem ria da piada não como denúncia, mas como confirmação de suas próprias visões de mundo. Diante da problematização que estamos
construindo sobre os limites do humor e sobre a possibilidade — ou não — de responsabilizar moral ou juridicamente quem produz arte, a partir dos exemplos escolhidos, podemos realizar o seguinte questionamento: Chico Anysio e Miguel Falabella deveriam responder, de alguma forma, pelas falas preconceituosas, elitistas ou ofensivas proferidas por Justo Veríssimo e Caco Antibes?

Embora a resposta à pergunta pareça, à primeira vista, autoevidente, isto é, não — especialmente nos casos de Chico Anysio e Miguel Falabella, em que o contexto cênico deixa clara a separação entre a realidade e a ficção —, a provocação proposta não se encerra em uma
resposta simples. Isso porque ela nos obriga a pensar com mais profundidade sobre autoria, intenção, contexto e, principalmente, sobre aquilo que um texto, mesmo artístico, comunica socialmente. É justamente nesse ponto que muitos intelectuais, comunicadores, jornalistas e comediantes — de diferentes espectros políticos — se apoiam ao se posicionarem categoricamente contra a condenação de Léo Lins.

Para defendê-lo, argumentam que há uma confusão indevida, no campo do humor e, em particular, no universo específico do stand-up comedy, entre a figura do comediante e a do personagem que ele representa no palco. Afirmam que o humorista encarna uma persona cínica ou provocadora, e que as falas proferidas nesse contexto não deveriam ser interpretadas literalmente, mas entendidas como parte de uma performance. Ademais, que as ideias defendidas por uma personagem em um contexto artístico não deve ser confundida com as suas convicções pessoais quando as luzes se apagam e as cortina do teatro se fecham com os aplausos do público.

Por mais que reconheça que o caso de Léo Lins, do ponto de vista estético, ético e político, está distante dos exemplos de personagens como Justo Veríssimo e Caco Antibes — tanto pelo contexto quanto pela densidade crítica envolvida —, é inegável que a discussão levantada em sua defesa toca num ponto absolutamente legítimo. Afinal, somos, sim, convocados a refletir sobre as fronteiras entre ficção e realidade, autoria e personagem, intenção e efeito do que é produzido no âmbito da cultura. Independentemente da qualidade ou do
propósito do discurso, a pergunta permanece: até que ponto o que é dito sob o manto da ficção pode ou deve ser responsabilizado?

Essa é uma interrogação fundamental, sobretudo em tempos em que discursos de ódio circulam com liberdade e muitas vezes se travestem de humor, arte ou provocação intelectual. Não se trata, portanto, de blindar o artista, mas de compreender com mais profundidade as condições de produção e recepção de sua obra — e de lembrar que, mesmo na ficção, as palavras têm consequências. É nesse ponto que a crítica se fortalece: quando consegue reconhecer a legitimidade da dúvida sem abdicar da responsabilidade ética que toda forma de expressão pública deve carregar.

Para entender por que o show de Léo Lins escorrega para bem longe da galeria de personagens ficcionais é preciso fazer uma pausa — e pensar no riso, que não é neutro — ele pune, educa, molda. E é aí que começamos a ver com maior nitidez as diferenças entre provocar o riso como crítica social e usá-lo como arma simbólica contra os já vulnerabilizados.

Para entender por que o show Perturbador, de Léo Lins, escorrega para bem longe da galeria de personagens ficcionais como Justo Veríssimo ou Caco Antibes, é preciso fazer uma pausa — e pensar no riso. Sim, o riso. Essa coisa aparentemente simples, que chega como quem não quer nada, mas que carrega uma força ancestral. Henri Bergson já nos alertava que o riso não é apenas um espasmo alegre e involuntário; ele é um fenômeno social, quase uma espécie de vigilante invisível da norma. Rimos, muitas vezes, não por leveza, mas para marcar o que está fora do esperado, para corrigir, por meio do constrangimento coletivo, o comportamento que se cristaliza, que vira máquina dentro do fluxo vivo das relações humanas. O cômico, dizia Bergson, brota justamente quando a vida perde a flexibilidade e adquire a rigidez de uma engrenagem. Nesse sentido, o riso não é neutro — ele pune, ele educa, ele molda. E é aí que começamos a ver com maior nitidez as diferenças entre provocar o riso como crítica social e usá-lo como arma simbólica contra os já vulnerabilizados.

Pensemos, por exemplo, na figura do sujeito que escorrega na calçada molhada — e todos ao redor caem na gargalhada. Não rimos da dor, exatamente, mas do descompasso entre o corpo e o ambiente, da quebra de uma expectativa de domínio, da falha em manter a compostura pública. Ou então da senhora que insiste em atravessar fora da faixa e leva uma buzinada seguida de uma risada sarcástica do motorista — o riso aqui funciona como um puxão de orelha social. Até mesmo a criança que erra ao usar uma palavra complicada e ouve dos adultos aquele riso meio condescendente está sendo, à sua maneira, ensinada: o riso, nesse caso, corrige.

Para Bergson, tudo isso é expressão de um mecanismo moral que opera por meio da comicidade: quando alguém se comporta de forma “mecânica” num contexto que exige espontaneidade ou adaptação, o riso entra em cena como forma de sanção simbólica. Ele vigia
os desvios, ajusta comportamentos, ensina pelo constrangimento. E, justamente por isso, que não se pode ignorar seu peso social: rir de alguém é, muitas vezes, uma maneira de colocá-lo em seu “devido lugar”, seja sob uma avaliação positiva ou negativa. O problema é que, quando esse “lugar” é historicamente o da exclusão — como ocorre com negros, pobres, pessoas com deficiência —, o riso, em determinadas circunstâncias, deixa de corrigir a rigidez para reafirmar a hierarquia.

O riso, em determinadas circunstâncias, deixa de corrigir a rigidez para reafirmar a hierarquia. O riso não é mero passatempo: é ferramenta de formação. Ele educa sem parecer aula, critica sem apontar o dedo, reforma sem ditar leis. E é por isso que precisamos olhar com atenção para como — e contra quem — se ri.

E essa visão, curiosamente, já encontra eco lá na Antiguidade, em Aristóteles. Para ele, as comédias — origem do que mais tarde chamaríamos sátiras — serviam justamente para denunciar os “o seres humanos inferiores”, ou seja, os comportamentos que corrompiam a ordem ética da cidade. Ao expor o ridículo, a sátira oferecia, por contraste, uma imagem dos valores que deveriam ser cultivados para o florescimento de uma vida comunitária mais justa. Em ambas as perspectivas, o riso não é mero passatempo: é ferramenta de formação. Ele educa sem parecer aula, critica sem apontar o dedo, reforma sem ditar leis. E é por isso que precisamos olhar com atenção para como — e contra quem — se ri.

Levando em consideração as implicações morais do humor, podemos, sem qualquer receio conceitual, afirmar que a comédia não está — nem pode estar — isenta de avaliação ética, e, em certos casos, também jurídica, sobretudo nas democracias liberais burguesas. Isso
porque determinadas narrativas, ainda que travestidas de brincadeira ou ironia, têm o poder de reforçar preconceitos estruturais, cristalizar estereótipos e alimentar discursos que legitimam a exclusão. Quando o riso deixa de provocar reflexão e passa a servir como instrumento de humilhação ou apagamento simbólico, ele deixa de cumprir sua função social positiva — aquela descrita por Bergson e Aristóteles — para se tornar ferramenta de violência. E em contextos historicamente marcados por desigualdades profundas, como o brasileiro, esse tipo de humor não apenas entretém: ele pode vir a educar para o ódio, autorizar a barbárie, ainda que sob o véu de um texto cómico.

À primeira vista, diante das considerações éticas e políticas sobre a função social do riso, poderíamos cair na tentação de achar simples a tarefa de traçar os limites entre liberdade de expressão e discurso de ódio no campo da arte — sobretudo na arte cômica. Seria quase
intuitivo afirmar que o ponto de ruptura ocorre quando a linguagem, em sua forma e conteúdo, se converte em instrumento de violência simbólica contra grupos historicamente oprimidos. Quando o humor, em vez de tensionar o poder, mira aqueles que já vivem sob sua opressão, ele não diverte — ele perpetua. E, nesse momento, a liberdade deixa de ser expressão e passa a ser agressão. A expressão deixa de se artística e torna-se discurso de ódio. Mas, mesmo essa linha que parece clara no papel, torna-se borrada quando entra em cena o jogo complexo da linguagem artística.

As coisas começam a se embaralhar justamente quando o artista decide atravessar a cena com os pés descalços sobre cacos — opta pela violência, não apenas como tema, mas como linguagem. Não é mais só o que se diz, mas o modo como se diz: a cadência das palavras, o
timbre da voz, as imagens que se insinuam por trás do texto o escarnio do texto cômico encenado. A arte, como bem sabemos, nem sempre busca agradar. Às vezes, sua tarefa é ferir, provocar, despertar o desconforto necessário para que algo em nós se mova. É por isso que a
decisão estética de recorrer à violência — seja ela simbólica, verbal ou imagética — é absolutamente legítima.

Georges Bataille, em A Literatura e o Mal, afirmou que a arte não deve evitar o mal, a transgressão ou a dor. Pelo contrário, deve encará-los de frente, como quem sabe que só ao reconhecer o abismo pode compreendê-lo. A violência, nesse registro, não é gratuita: é expressão de uma experiência humana radical, da qual fazem parte o sofrimento, o erotismo, a morte, o cinismo e o escarnio diante de uma situação. Quando transfigurada em linguagem, ela deixa de ser ferida aberta para se tornar pensamento, símbolo, crítica. Mas — e esse “mas” é
crucial — tudo depende do olhar que conduz, da intenção que move e, sobretudo, do alvo a quem se dirige.

A arte não fala como um juiz, um professor ou um político — ela insinua, fragmenta, tensiona, inclusive, por meio do escárnio. É por isso que, nesse terreno, não basta julgar apenas o conteúdo ou a forma isoladamente: é preciso considerar o contexto, a intenção, o gesto estético e, sobretudo, os efeitos sociais que determinada obra pode produzir.

O que torna essa distinção entre liberdade artística e discurso de ódio uma linha tão tênue, quase desfocada, é justamente o fato de que, nos jogos de linguagem da arte, as palavras e as imagens não obedecem à lógica literal da comunicação direta de outros espaços institucionais. Aqui, as cores se misturam, os sentidos escorregam, e o que parece agressão pode ser ironia, o que soa como denúncia pode ser celebração, e vice-versa. A arte não fala como um juiz, um professor ou um político — ela insinua, fragmenta, tensiona, inclusive, por meio do escarnio, da zombaria, da gargalhada que se expressa como desprezo. É por isso que, nesse terreno, não basta julgar apenas o conteúdo ou a forma isoladamente: é preciso considerar o contexto, a intenção, o gesto estético e, sobretudo, os efeitos sociais que determinada obra pode produzir.

Uma abordagem estética que recorre à violência simbólica — por mais desconfortável ou perturbadora que pareça — não está, necessariamente, desprovida de conteúdo ético. Muito pelo contrário. Seguindo a linha de pensamento, essa violência, quando verdadeiramente artística, não é um fim em si mesma, mas um meio de provocar, tensionar, deslocar o olhar do espectador. Pensemos, por exemplo, em um personagem cômico que escolhe dizer coisas cruéis: o riso que nasce desse incômodo pode carregar mais do que escárnio; pode revelar contradições, denunciar estruturas, escancarar o grotesco daquilo que, em sociedade, costumamos mascarar com normalidade. A crueldade, nesses casos, é propositalmente exagerada, não para ser celebrada, mas para ser desnudada. É nesse espaço — entre a forma violenta e o conteúdo crítico — que a arte pode agir como uma espécie de bisturi simbólico: corta fundo, expõe de maneira nua e crua as vísceras do corpo social doente, mas não sem motivo.

Não é difícil encontramos essa abordagem estética nas mais diversas expressões artísticas. Ela está presente em obras como as de Lars von Trier, que em filmes como Dogville e Anticristo utiliza a violência como linguagem para tensionar o espectador e desestabilizar qualquer leitura confortável da realidade. Em Dogville, a crueldade escancarada da comunidade contra a protagonista expõe de maneira brutal as hipocrisias morais e os limites da compaixão humana. Já em Anticristo, a violência atravessa o corpo, o desejo, o luto e a culpa, não para
chocar gratuitamente, mas para pôr o espectador diante da vertigem do sofrimento como elemento constitutivo da existência. É evidente que essas análises sobre a obra do cineasta possuem também um caráter subjetivo, uma vez que as pessoas podem ter interpretações
diferentes do filme.

O riso que nasce do incômodo pode escancarar o grotesco daquilo que mascaramos com normalidade. A crueldade, nesses casos, é propositalmente exagerada, não para ser celebrada, mas para ser desnudada. É nesse espaço — entre a forma violenta e o conteúdo crítico — que a arte pode agir como uma espécie de bisturi simbólico: corta fundo, expõe de maneira nua e crua as vísceras do corpo social doente, mas não sem motivo.

Nitidamente, Léo Lins, em seu show, recorre à estética da violência como pilar na construção de seus textos cômicos. A crueldade simbólica ali não é um acidente de percurso — está entranhada tanto na forma quanto no conteúdo dos comentários proferidos pela persona cômica criada pelo comediante. O reconhecimento inicial dessa produção como expressão artística não depende da nossa avaliação subjetiva, em um primeiro momento, sobre seu mérito ou valor; institucionalmente, é inegável que o humorista brasileiro é reconhecido como tal. Artistas, imprensa e público o identificam como comediante, e suas apresentações são classificadas como espetáculos de humor — ainda que possamos ou não achar graça no que é dito em seus espetáculos.

Além disso, essas apresentações ocorrem em espaços concebidos para a produção artística — como teatros e programas de televisão —, e os relatos ou testemunhos, por mais espontâneos que aparentem ser ao público, são cuidadosamente roteirizados. Eles são pronunciados por uma persona cômica com o intuito explícito de provocar riso, seja no palco do teatro, nos programas de auditório, ou, mesmo, no palco digital da internet.

O título do show de Léo Lins, Perturbador, não é uma hipérbole artística — é uma definição precisa do que se presencia. O comediante estrutura sua performance com piadas dirigidas justamente a grupos historicamente marginalizados, fazendo da vulnerabilidade social
e da dor coletiva o principal combustível de sua comicidade. Em uma de suas falas, ao zombar de pessoas com HIV, a personagem cômica disse: “Tem que dar emprego para soropositivo, sim. Mas não na cozinha, né?” — reproduzindo e reforçando estigmas cruéis que já ceifaram vidas por medo e preconceito. Em outra, ao tratar da questão racial, disse: “No Brasil é complicado ser racista. Você chama o cara de macaco e só depois descobre que ele é seu primo’, ou, mesmo, ao ironizar a escravidão e o povo negro afirmou: “Na época da escravidão, os negros reclamavam do emprego… É porque não viram o salário.”

As falas seguem o mesmo padrão de crueldade. Ao falar sobre crianças com hidrocefalia, nos deparamos com o seguinte comentário: “Se você chutar a cabeça de uma criança com hidrocefalia, ela quica igual bola.” Sobre indígenas, a persona cômica disparou: “Índio bom é índio com Wi-Fi, para parar de encher o saco.” E, numa das passagens que produziu maior incomodo do ponto de vista moral, encontramos a personagem fazendo uma alusão à pedofilia ao dizer que: “A vantagem de namorar uma mina de 12 é que se der problema
na relação, ela só chora e dorme.” Sobre incesto, a personagem diz sem rodeios: “Sou a favor do incesto. Inclusive, se você tiver uma irmã gostosa, tem que aproveitar.” Já a misoginia aparece de forma brutal na frase: “Mulher feia merecia apanhar duas vezes: uma por ser feia e
outra por ter deixado apanhar.”

Indubitavelmente, o comediante opta, de forma consciente e deliberada, por uma estética da violência — tanto na forma quanto no conteúdo — direcionada a grupos vulneráveis ou marginalizados, como ilustram os comentários citados anteriormente. Essa escolha não é
acidental nem fruto de um deslize momentâneo: trata-se de uma estratégia artística pensada, roteirizada, encenada. Mas é justamente a partir disso que se impõe uma pergunta que considero incontornável. O que pretende essa persona cômica que sobe ao palco para verbalizar crueldades dirigidas, quase sempre, aos mesmos corpos e identidades historicamente feridos? Que tipo de consciência estética ela mobiliza quando transforma o sofrimento alheio em gargalhada?

Quando o palco vira trincheira contra os oprimidos, ainda estamos falando de arte ou já cruzamos a linha entre expressão e opressão?  O comediante neste espetáculo utiliza da violência de maneira explicita como um fim em si mesma! É como se o escárnio e a glorificação da violência bastassem, como se o desconforto dos outros fosse, por si só, o próprio espetáculo.

A quem serve esse riso que nasce do desconforto — não o desconforto provocador que instiga o pensamento, mas aquele que reafirma o desprezo, a humilhação, o escárnio? Quando o palco vira trincheira contra os oprimidos, será que ainda estamos falando de arte, ou já
cruzamos a linha tênue entre expressão e opressão? Fico me perguntando, honestamente, com certa inquietação, se no caso de Léo Lins a violência estética — esse recurso tão delicado e controverso no campo da arte — estaria a serviço de algum propósito mais elaborado, algo que nos desestabilize para fazer pensar, provocar, deslocar sentidos. Ou será que ali, naquele riso rápido e cruel, a violência não é meio, mas fim? Entendo que o comediante neste espetáculo utilizada a violência de maneira explicita como um fim em si mesma! É como se o escárnio e a glorificação da violência bastassem, como se o desconforto dos outros fosse, por si só, o próprio espetáculo.

Levando em conta que a defesa de uma liberdade irrestrita — essa forma negativa de liberdade —, nos contextos das democracias burguesas, pode muitas vezes funcionar como uma espécie de salvo-conduto para a legitimação de discursos de ódio contra grupos historicamente oprimidos; e considerando ainda os jogos de linguagem da arte, as especificidades do stand-up comedy, os ritos institucionais da comédia, a ambientação do palco e o papel da persona cômica; levando em conta também a função social do riso e o uso consciente da estética da violência por parte de Léo Lins — uma violência que não está apenas na forma, mas também no conteúdo —, o que resta, ao fim e ao cabo, é uma constatação desconfortável: quando retiramos a camada simbólica da crueldade que sustenta o riso, sobra muito pouco além da própria violência. E penso, que nestes casos, aí a piada deixa de ser piada — ou talvez nunca tenha sido, ainda que tenha produzido em um público específico o riso, em razão dos aspectos formais que estão por traz do discurso produzido pelo humorista.

Não se encontra, sob nenhuma perspectiva, ao longo do show, qualquer esforço que se contraponha à glorificação da maldade ou à desumanização humana. Não aparece de maneira implícita ou explicita, na ambientação cénica produzida, nada que explicite um contraponto do horror do que foi dito. Tudo parece cuidadosamente estruturado para que o riso emerja justamente da dor alheia, sem qualquer gesto de reflexão, deslocamento ou crítica — apenas a celebração cínica do escárnio pelo próprio escarnio, da dor pela própria dor. O ato de fazer rir, neste ambiente estético criado pelo comediante, completamente destituído de responsabilidade social sobre o que se enuncia, o autor possui plena consciência disso, acaba por glorificar deliberadamente a barbárie, a desumanização dos corpos que seguem socialmente excluídos daquilo que se institui como padrão — e, assim, contribuir para naturalizar e legitimar a própria
exclusão.

Não parece razoável, considerando as dimensões jurídica, política, linguística, estética e ética, que se defenda que os artistas não devem ser responsabilizados pelo que dizem, mesmo quando o fazem em contextos artísticos. Por que devemos conceber a liberdade para o artista escolher reforçar discursos e práticas que, na verdade, precisam ser combatidos e superados?

O palco, que poderia ser um espaço de subversão crítica, é transformado em vitrine para reforço de estigmas. O riso, que em outros contextos opera como ferramenta de denúncia ou desestabilização de poderes instituídos, aqui serve para confortar o preconceito e reafirmar hierarquias sociais violentas existentes na sociedade. Quantas pessoas na vida real buscaram se blindar de um comentário preconceituoso, quando alguém corajosamente resolve interpelar tal impertinência, com o seguinte comentário “eu estava só brincando”, “deixa de bobagem, era apenas uma piada”. O argumento que sustenta a narrativa construída no show Perturbador repousa sobre a velha e conveniente tese da “arte pela arte”, isto é, de que tudo é permitido, e que o artista, por estar sob o manto da liberdade criativa, estaria dispensado de qualquer responsabilidade ética ou política pelas violências que sua obra eventualmente reencena ou alimenta, ainda em contextos ficcionais.

Diante dessa linha de raciocínio, parto da ideia de que o show Perturbador, do comediante Léo Lins, ultrapassa os limites da liberdade no campo da arte para promover, de forma deliberada, discursos de ódio — ainda que revestidos por uma linguagem estética humorística em sua forma, ainda que as ideias da personagem cômica não expressem a visão de mundo do seu criador. Muitas pessoas que riram dos comentários cômicos talvez não tenham consciência plena do peso simbólico daquilo que ouviram, ainda que eu não esteja totalmente
convencido dessa afirmação. No entanto, não podemos dizer o mesmo do comediante responsável pela produção do texto, que, inclusive, é autor de um livro no qual reflete sobre os segredos da comédia stand-up, o que evidencia o grau de consciência por trás da sua performance humorística.

Se o riso serve para banalizar a violência, e a violência pela violência é usada como conteúdo para conduzir esse riso por meio do escárnio direcionado aos excluídos — sem absolutamente nenhum propósito artístico além da glorificação e naturalização da barbárie —, contrariando historicamente o lugar da arte cômica de explicitar as contradições da decadência da vida social, não parece razoável, considerando as dimensões jurídica, política, linguística, estética e ética, que se defenda, por ingenuidade, que os artistas não devem ser
responsabilizados pelo que dizem, mesmo quando o fazem em contextos artísticos. Podemos, diante destas considerações, apresentar o seguinte questionamento: por que devemos conceber a liberdade para o artista escolher reforçar discursos e práticas, que, na verdade, precisam ser combatidos e superados? Fica o questionamento para os leitores que me acompanharam até o
momento, respondam.

Se o riso é, como pensavam os gregos, um phármakon — o melhor remédio para curar as dores da alma, uma cura capaz de aliviar as tensões da vida —, então a arte que se coloca a serviço da banalização da violência representa uma inversão trágica desse propósito. Em vez de curar, agrava a enfermidade social, administrando uma dose errada desse remédio a um corpo já doente.

Se o riso é, como pensavam os gregos, um phármakon — o melhor remédio para curar as dores da alma, uma cura capaz de aliviar as tensões da vida e proporcionar uma catarse —, então a arte que se coloca a serviço da naturalização e da banalização da violência enquanto
violência representa um inversão trágica desse propósito. Em vez de curar, ela agrava a enfermidade social, administrando uma dose errada desse remédio a um corpo já doente, que é a sociedade marcada pela exclusão, pelo preconceito e pela desigualdade. O texto cômico
apresentado no show Perturbador, ao rir da dor e do sofrimento dos marginalizados sem nenhum propósito estético que não seja naturalização da barbárie humana, não apenas falha em sua função terapêutica, como também reforça os mecanismos de opressão, perpetuando o ciclo de violência simbólica e material. Assim, o riso perde seu potencial libertador e se converte em instrumento de dominação, contribuindo para a anestesia moral de uma comunidade que deveria se curar coletivamente.

Ainda que reconheça como absolutamente legítima a avaliação jurídica do caso, com base na aplicação da lei que trata do chamado racismo recreativo, não pretendo aqui entrar no mérito penal — se a pena é adequada ou inadequada, ou se haveria formas alternativas de
responsabilização moral que não a prisão no caso específico do comediante Leo Lins. Tenho, inclusive, minhas dúvidas se esse tipo de responsabilização, nos moldes apresentados, será capaz de produzir o efeito transformador que se espera no âmbito da cultura. Deixo esse debate aos colegas do Direito, que certamente podem trazer nuances do ordenamento jurídico de maneira bem mais consistente.

Como filósofo interessado na educação e na formação ética dos seres humanos em sua integralidade, minha obstinação é fundamentalmente outra: será que as pessoas já pararam para pensar por que riem do que riem? A ideia aqui não é moralizar o senso de humor de ninguém, mas provocar uma reflexão social sobre como o riso pode nos revelar valores que, muitas vezes sem perceber, acabamos por naturalizar — sem o devido questionamento sobre se, de fato, esses valores contribuem ou não para a nossa humanização, para o aperfeiçoamento da nossa democracia burguesa, marcada por problemas estruturais de todas as ordens.

O problema talvez não esteja apenas no que é dito, mas no que nos faz rir — e no que esse riso revela sobre quem somos, sobre o que aceitamos como normal e, sobretudo, sobre o que ainda estamos dispostos a naturalizar em uma sociedade profundamente marcada pela
violência, tanto física quanto simbólica, dirigida aos grupos historicamente excluídos. Afinal de contas, quem não compreende a forma, não enxerga o conteúdo. Mas a reflexão mais aprofundada sobre aquilo de que rimos — e porque rimos — ficará para outro momento, para
uma outra provocação, na medida em que partilho da tese de que o humor não deve ser encarado apenas como um estado momentâneo do espírito, mas como uma cosmovisão que revela por meio da linguagem os limites do nosso próprio mundo. De todo modo, ainda que não pareça à primeira vista, rir é coisa muito séria.

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REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Antônio C. de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução de Luís Leal. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BERLIN, Isaiah. Liberdade: quatro ensaios sobre liberdade. Tradução de Pedro Sette-Câmara. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de Marco Antônio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2009.

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José Luis de Barros Guimarães é músico, filósofo e docente efetivo da Universidade Federal do Piauí ( UFPI) do campus de Picos. Tem como interessante de estudo o problema da formação cultural humana a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos da Teoria Crítica. Alimenta o sonho coletivo de um dia decretaremos o fim do capitalismo.