O recente ataque violento de grupo paramilitar aos indígenas da etnia Gamela, no estado do Maranhão, despertou reações na mídia nacional e internacional, causando forte reação nos diversos setores da sociedade. Não foi diferente nas redes sociais, pois a gravidade dos fatos e a violência explícita das imagens despertou indignação na opinião pública que reagiu às informações de tiros e decepamento de membros dos envolvidos (todos indígenas!) com horror e consternação. Na ocasião, segundo testemunhas locais, os indígenas foram atacados por grupo de jagunços e moradores a mando de grupos políticos locais da região do município de Viana (MA),  convocados através de meios como rádios locais e redes sociais na rede mundial de computadores. Tais grupos de poder político local teriam atuação em todo Estado do Maranhão, e suas ramificações se ligam a outros grupos com a mesma característica conservadora, todas ligadas ao agronegócio nacional e internacional, noutros estados do Brasil, como é o caso de São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, além do Rio Grande Sul.

Em todos os episódios o emprego da violência frequentemente tem derramado sangue indígena e sido causa da morte de lideranças importantes, parte delas identificada com os movimentos políticos e a luta destas minorias no Brasil. As comunidades têm denunciado – inclusive no âmbito de órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) – os constantes episódios de ataques e ameaças às integridades físicas das diversas comunidades, além de denunciar o fio perverso que liga a maior parte dos atos: a impunidade dos atores envolvidos nas agressões na maior parte dos casos. Coincidência ou não, na mesma semana do ataque, desta feita na Câmara dos Deputados em Brasília, procedeu-se a leitura do relatório de uma das Comissões Parlamentar de Inquérito chamada de CPI da FUNAI / INCRA 2, em vigor na Câmara dos Deputados.

E o que isto tem a ver com a questão agrária no Brasil? Ambos os órgãos, a Fundação Nacional do Índio e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, parte de seus técnicos e contratados foram instados a manifestar-se sobre o processo de demarcação de terras indígenas e regularização de territórios quilombolas.  Ao final, o relatório criminalizou e pediu indiciamento de indígenas, antropólogxs, procuradorxs federais, funcionárixs de ambos os órgãos, missionários e ativistas ligados às organizações não-governamentais atuantes junto a diversas etnias indígenas nos estados da Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. As acusações da CPI, presidida pelo deputado ruralista Alceu Moreira (PMDB/RS) tem como integrantes outros deputados famosos pelas suas conexões com o agronegócio nacional e anti-indígena como o 1º vice-presidente Deputado Luís Carlos Heinze (PP/RS) e o relator deputado Nilson Sá (PSDB/MT), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, todos eles atuantes da bancada ruralista no congresso, que conta com cerca de cem parlamentares.

Mas o que estes dois fatos – o ataque aos indígenas Gamelas e a CPI da FUNAI INCRA 2- têm em comum além de dizerem respeito aos interesses dos povos indígenas e de quilombo e de todos os envolvidos no complexo formado sobre a questão agrária no Brasil? Ou ainda, porque o movimento dos indígenas, quilombolas, além de comunidades tradicionais (ribeirinhos, vazanteiros, pescadores entre outros) e seus apoiadores experimentam neste momento, forte ataque direto simbólico e físico de setores ligados ao agronegócio conservador, agregados ao esforço de setores da mineração, madeireiras e congêneres?

É importante destacar que o atual ministro da justiça Osmar Serraglio (PMDB/PR), por exemplo, é um dos titulares da comissão e ligado aos setores agropecuaristas. É ele o responsável pelas ações (ou a falta delas) da FUNAI (a nomeação de presidentes, como exemplo), o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro e criada em 1967, vinculada ao Ministério da Justiça, por sua vez a coordenadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal, cuja missão institucional é “proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil”. A FUNAI experimenta neste momento processo de desmantelamento com a perda de orçamento e o desarme efetivo de sua estrutura para atuação. Cabe ainda à FUNAI promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, além de monitorar e fiscalizar as terras indígenas. E é neste ponto que a CPI se manifesta e agride, defendendo interesse de setores epecíficos. A FUNAI também deve coordenar e implementar políticas de proteção aos povo isolados e recém-contatados. A direção do Ministério da Justiça nas mãos de um deputado ruralista evoca, por parte de setores apoiadores dos movimentos sociais, a inevitável anedota que liga raposas, aves e galinheiros.

A divulgação de um relatório considerado pelos setores especializados como anti-indígena e contrário aos interesses das comunidades tradicionais e seus apoiadores, mereceu pronta resposta de entidades como a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e Associação Nacional de Procuradores da República (ANPR), que manifestaram indignação sobre a “trágica solicitação de indiciamento de indígenas e de quem em diferentes funções contribui para a defesa dos direitos de indígenas e quilombolas, por parte de uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI FUNAI/INCRA 2 que se faz em nome de interesses de setores políticos e grupos econômicos”, de acordo com nota da ABA. A ANPR também emitiu nota afirmando que “defender o direito às terras de nossas comunidades indígenas é uma imposição da Constituição e um dever de toda a sociedade brasileira. Desconhecer estes direitos, e atacar os que atuam em sua defesa, por outro lado, apenas traz prejuízos à democracia, à lei e à paz”.

Embora os ruralistas pretendam – sem conseguir – deslegitimar estudos antropológicos através de uma CPI com repercussões nacionais e internacionais, encontram dificuldades para prová-lo justamente porque tais trabalhos são em sua maioria trabalhos antropológicos de boa – alguns de excelente – qualidade, amparados por outras fontes como a etno-história, estudos ambientais, documentais, cartográficos e fundiários realizados pelos Grupos de Trabalho (GT) sob a orientação de antropólogx. Estes têm a responsabilidade de demonstrar que as Terras Indígenas (TI´s) reivindicadas atendem aos requisitos existentes no parágrafo 1º do Art. 231 da Carta Magna de 1988, e cumprir os requisitos necessários para a aprovação e publicação pelo Estado brasileiro dos relatórios de identificação e delimitação de Terras Indígenas. As peças técnicas e documentos apensados aos autos dos procedimentos administrativos de regularização fundiária e considerados nos relatórios circunstanciados estão obrigados a comprovar a existência de vínculo indissolúvel entre povos indígenas e a porção delimitada do território tradicional.

Num trabalho sério e extremamente meticuloso – uma espécie de rito de passagem considerado importante no meio antropológico na carreira dos profissionais a serviço da FUNAI e que tem merecido a atenção da academia, enquanto trabalho técnico feito por antropólogos – as áreas delimitadas devem compor um conjunto de condições chamadas de imprescindíveis à manutenção da integridade física e cultural dos povos indígenas, e devem também apresentar características ambientais que possibilitem o exercício amplo e pleno das atuais e futuras gerações de indígenas, o que inclui unidades de paisagem de valor histórico, simbólico, produtivo e ecológico, além de recursos naturais necessários às suas atividades produtivas e seu bem-estar, tudo isto preconizado pela legislação constitucional brasileira.

Ao criminalizar os setores que detém o maior conhecimento técnico sobre o processo de delimitação de terras indígenas e na criação de territórios quilombolas, a CPI coloca em jogo relações delicadas e envolvimentos circunstanciais ou não entre instituições, profissionais, setores da justiça, com os maiores interessados no processo, ou seja, as próprias comunidades e seus aliados. A CPI claramente pretende deslegitimar e enfraquecer o movimento social, abrindo espaço para os quem veem lucros aonde indígenas e quilombolas veem territórios sagrados, tão antigos quanto memórias que alcançam gerações. Tal diferença, de olhares sobre o mesmo objeto neste caso o território, é essencial para se compreender a defesas coletivas de direitos primordiais de um lado, e de outro, investidas privadas que visam retirar tais direitos, e avançar violentamente sobre pessoas, histórias, territórios, ambientes, paisagens e memórias.

*Hélder F. de Sousa é mestre em antropologia social pela UnB (sub-área Etnologia Indígena)

(Artigo publicado na Revestrés#31 – Junho/Julho 2017)