Em 2016 Raúl Antelo, professor de literatura brasileira e crítico cultural, argentino-brasileño, este limiar, projeta mais um livro, A máquina a-filológica [EdUERJ/Faperj], que finalmente será publicado neste ano ruim a todos os lados, 2021, como um vento inoperoso, hexis, a vida em potência: “a possibilidade de seu não exercício”. No conjunto de ensaios o que se tem é a articulação improvável, como sempre, que Raúl vem montando e remontando há alguns anos em seus textos e livros, num jogo de vozes e séries, sempre imprevistas, em torno de questões que tensionam um pensamento acerca da modernidade, a vida moderna, e não apenas a arte moderna, entre distinção e arremesso à América Latina. É a tentativa deliberada e anacrônica de ler o presente, o tempo inteiro, numa sobreposição de superfícies e expandindo sentidos e possibilidades, quando a experiência ainda é o lance de dados que não pode abolir o lance de dados, lançando-a também num jogo de interfícies 

Este último conceito, o de interfície, que diz muito de uma ideia de Walter Benjamin, por exemplo, a de que a história é uma sucessão de catástrofes ou do pequeno mundo das coisas, aparece na esferologia do pensamento de Raúl quando se apropria, incorpora e amplia a ideia imaginando-a [e aí está o ponto de insurgência, uma política radical da e com a imaginação] sugerindo assim uma modulação e um esgotamento, para reagir engendrando o que toma, pois, como “uma máquina a-filológica”: a história advém numa imaterialidade da literatura e da arte e não a literatura e a arte em mais uma materialidade da história. Ou seja, a política inoperosa da imaginação como dispêndio num procedimento arquifilológico: dispor e colocar em contato dados distantes, por sua vez, não-aparentados, para que se produza um choque entre eles [vínculo e anterioridade, mas não intimidade] e nunca uma história autoconsciente. Relato desfocado e deslocado, fora de si. A linguagem se esquece de si mesma, ou seja, remover esses dados a partir de memórias inaparentes e séries heterogêneas. 

O pensamento e o procedimento de Raúl Antelo são, singularmente, arejamentos intermitentes e contrapontos àquilo que, numa naturalidade mímica, costuma-se ler e ver também como um “ponto real” num imenso conjunto imediato e raso de teorias afásicas de aporte centralizador, nacionalizantes e “fronteiriças”, de grupo, servidão ou repetição sem diferimento: quase sempre formas-formadas, estruturas-estruturadas; quase nunca formas-formantes, estruturas-estruturantes. E essa singularidade do que lança aparece – como deriva, salto, saliência, contato, contágio, contaminação, disrupção extensiva [disruptio] etc. – na extremidade dialética e oscilante do limiar. Assim, por exemplo, na proposição interrogativa e sem necessidade alguma de resposta: “como, com a crítica, criar vida?”. A luta impossível com a vida, e não apenas com uma sobrevivência, para deixar [repare-se: deixar, nunca manter ou precisar manter] as perguntas ativas e não encontrar meras respostas ajustadas; expor-se àquilo que não cessa de dizer com uma mínima força [a dos fracos] que possa, de todos modos, não cessar de dizer também. Deixar implica um gesto, uma remoção: como destruir a destruição?, um corte, um engendramento, potência e a impotência de dizer. Daí que persiga, sobremaneira, a arquifilologia: um enfrentamento aos impasses da formalização, ou seja, o real. O que Alain Badiou já pensara ao dizer que “o real é o impasse da formalização, o ponto do impossível de formalizar”. Raúl, por sua vez, imagina, como política, depois como lição, aula, seguindo outra vez Benjamin, “ler o que nunca foi escrito”, tocar o impossível do pensamento porque o impossível solicita existir, porque o impossível existe.  

A ideia mais radical de Raúl é devolver o pensamento ao pensamento, ou seja, à sua ilegibilidade, que é de onde ele provém, tal como o poema.

Num ensaio publicado em Ausências, seu livro de 2009 [Editora da Casa], “Sentido, paisagem, espaçamento”, ele anota um reverso explícito e generoso que, de alguma maneira, convoca às perguntas deixadas, abertas, acerca do desenho da modernidade latino americana, por vezes autocentrado na dicotomia simplista entre centro e periferia, lei e força de lei, poder e contra poder, violência e contra violência, golpe e contragolpe etc. E aí, remove a cena da “desregulação regrada” e acena que Mário de Andrade enganou-se: “A Patagônia é um significante vazio. ‘Il ne s´agit pas de pauvreté mais d´abscence’ – observa Caillois. A Patagônia, local não de pobreza mas de ausência, é o espaço do sem-sentido. Absence, ab-sens. Mas é essa carência, precisamente, que abre a possibilidade de refletir sobre o sentido. Sabemos que, para que haja sentido, deve haver série, uma vez que o sentido não é imanente a um objeto, mas fruto de articulações no interior de uma série de discursos. Mas, mesmo separado do objeto, o sentido é igualmente exterior à consciência do intérprete, para o qual o sentido sempre se impõe por acaso e coação. A palavra, portanto, não dispõe, a rigor, de uma forma ou valor específicos mas ela é dotada de uma força, de uma potência de disseminação e proliferação próprias. Melhor dizendo, o nome nada vale por si, isolado, mas tão somente por sua combinação. Todo nome é, em última instancia, um tropo, uma figura e, assim sendo, vários teóricos, não só Paul de Man ou Derrida, mas também Ernesto Laclau, vão extrair dessa equação consequências políticas da maior relevância. Tomemos a equação que iguala Patagônia e vazio. Mário de Andrade chegou a dizer que ‘não existe para o argentino o problema patagônico que nem mesmo existe para a gente o problema amazônico’. Enganou-se. Assim como não existe unidade sem zero, da mesma forma, argumentará Laclau, o zero sempre aparece na forma do um, do singular. Em outras palavras, o nome é o tropo do zero mas o zero, na verdade, é sem nome, já que ele não pode ser nomeado. Essa soberana acefalidade da Patagônia nos ilustra que ela, da fato, é heterogênea com relação à ordem dos espaços, notadamente, a do espaço primordial da lei, do nome, do Estado. Porém, a série do nome e do nomos não poderia se constituir enquanto tal sem referência a esse vazio originário. Ele é um suplemento ao sistema nacional-estatal que, entretanto, é estrutural a ele. Em relação ao sistema, o vazio patagônico, sua falta de história, encontra-se em situação de indecibilidade, numa posição sublime, de inclusão, mas também, simultaneamente, de exclusão. Ela faz parte da geografia mas é na história que se lhe compreende a configuração. Ele se integra à nação mas, ao mesmo tempo, é inerente ao espaço internacional, ora pela exploração, ora pelo turismo.” 

O que se entende é que sem o fio a marionete está livre e, assim, pensa. O pensamento livre se estende numa espiral, até o infinito. Ou como disse Blanchot: treme. O que Raúl postula, e lembra, o tempo inteiro, diante dessa liberdade, é que todo fazer é sujo, logo, é rascunho, esboço, garatuja: “o isto já é um não-isto”. E que entre voar e não voar, como a flecha que voa por não voar, a contrapelo, é que estamos constantemente diante da luta de classes, agora também luta das imagens, ou seja, o confronto é entre liberdade e servidão. Ou, como disse mais recentemente, em 2019, numa conferência no Rio de Janeiro, na Fundação Casa de Rui Barbosa, que neste país a questão tem sido e é, agora, mais do que nunca, entre liberdade e dignidade. O que se confirma, dia a dia, passo a passo, no buraco sem esperança a que milhares de corpos mortos nos remetem cotidianamente. O pensamento que Raúl Antelo se esforça para elaborar – acefálico e anacrônico, quando o nome não tem nome – se dispara para longe de toda monumentalização monopolizadora, daí que Duchamp, infraleve, quando aparece mesmo é ao lado de Maria Martins, e nos trópicos; ou Sylvio da Cunha, que escrevera uma pequena história da fotografia concomitante à de Benjamin e, pasme-se, girando os mesmos e outros sentidos; depois, mais poucos exemplos numa infinidade desmedida, Victor Delhez ou Jacques Maritain, a obnubilação de Araripe Jr., Héctor Alvarez Murena e Carl Eisntein, Ramon Gomez de La Serna e Juan Ramón Jiménez, Lamborghini e Arturo Carrera, Cesar Vallejo e “el analfabeto a quién escribo” etc.  

Ler, como sugere Raúl Antelo, é correr o risco de imaginar que ao enfiar a mão no bolso cheio de merda há ali pequenas moedas falsas que podem nos valer uma vida.

A ideia mais radical de Raúl é devolver o pensamento ao pensamento, ou seja, à sua ilegibilidade, que é de onde ele provém, tal como o poema. Quando o pensamento ainda não pensa, mas existe em potência; quando o pensamento ainda pode pensar o impossível que é. Daí que uma imagem de Walter Benjamin reabra essa alteração ao modo de Marx, quando o homem pode alterar sua natureza para alterar a natureza: há livros sobre a mesa, a mesa é alta demais. Se o pensamento de Raúl Antelo é a aposta numa retratação, como queria Santo Agostinho, a imagem de Walter Benjamin dispõe um percurso em que a própria ideia de máquina, como mapa e modelo, se engana, se desmonta e se quebra por completo, por isso a-filológica: um pensamento um pouco mais ameaçador para intervir na história. O extremo da crítica com a vida não é que se suba ao tampo da mesa alta para reafirmar toda e qualquer hierarquia; mas espatifar a mesa para dispor também, no jogo intenso da queda, todos os livros no chão à altura do abjeto. O pensamento a uma exigência, a uma emergência; deixar o centro vazio ou, no mínimo, disponível: desmontar severamente a metafísica da presença. O que o mar apreende do canavial, o que o canavial apreende do mar, o que o mar se ensina do canavial, o que o canavial se ensina do mar: ler o óbvio ainda não é pensar. Ler torto como torso ou que torto é um contrário a adestramento é só capitular, sem demora, numa conformação corriqueira: palavras de ordem, quando a atenção deixa de ser a atenção que se faz porque, diz Blanchot, o torso só se realiza quando se lhes corta a cabeça. Ler, como sugere Raúl Antelo relendo Carrera, é correr o risco de imaginar que ao enfiar a mão no bolso cheio de merda há ali pequenas moedas falsas que podem nos valer uma vida: contra o tempo, contra o contemporâneo imediato e diante do presente que não é senão uma “nave del aire”. 

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou Pasolini: retratações (7Letras, 2019, com Davi Pessoa), Avião de Alumínio (Quelônio, 2018, com Júlia Studart), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015), entre outros. Coordena a coleção Móbile de mini-ensaios (Lumme Editor).

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Publicado na Revestrés#48. 

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